Rodrigo R.C. Boavista[1]
rodrigorcboavista@gmail.com
Porque é que, tendo tudo, há de ficar
O passarinho mudo,
Arrepiado e triste, sem cantar?
(…)
Não quero a tua esplêndida gaiola!
Pois nenhuma riqueza me consola
De haver perdido aquilo que perdi …
(O pássaro Cativo – Olavo Bilac)
Exposições iniciais.
Muito vem sendo dito acerca dos efeitos psicológicos do isolamento. Em mesma frequência são sugeridas condutas, dicas e todo um arsenal de soluções para as dores provocadas pela quarentena forçada que vivemos neste primeiro semestre de 2020.
Gostaria de falar de outro “lugar”, e com outro propósito.
Como clínico que sustenta sua prática na pirâmide epistemológica da análise do comportamento tenho recorrido ao que temos de mais precioso nessa estrutura – a ciência básica – para compreender o que meus pacientes (entes queridos e eu mesmo!) têm vivido tão intensamente.
Como clínico, meu medo é perder a mão no cientificismo e acabar por “abandonar” a pessoa que está (virtualmente) ali na minha frente. Diante do sofrimento do outro é menos doloroso se evadir por entre o labirinto de teorias e conceitos, concordam?
O esforço tem sido árduo na tentativa de manter um balanço no ir-e-vir entre processos comportamentais básicos e idiossincrasias dos indivíduos que me deram a honra de lhes acompanhar em suas jornadas – que hoje são intensamente marcadas pela dor do isolamento.
Convido o leitor a transitar comigo neste percurso: imergir no conhecimento laboratorial e emergir na relação “à vera” com o outro. Não me proponho a oferecer uma verdade absoluta, muito menos uma discussão exaustiva do tema. Reconheço que são possíveis infinitas derivações do que tenho para dizer, e, especialmente, daquilo que escolho não dizer nesta oportunidade (e.g. modelos que abordam o efeito da exposição a aversivos incontroláveis, e do distanciamento social). Compartilho apenas as reflexões que venho fazendo e que têm me ajudado no dia-a-dia da clínica. Se você topa esse limite, fique comigo.
O que está acontecendo?
Em cerca de 90% dos atendimentos que tenho feito as discussões abordam diretamente, ou findam por tangenciar uma interação entre as sensações de infelicidade e perda de liberdade. Por vezes, numa perspectiva causal, em outras como fenômenos que ocorrem paralelamente.
Mas… Por que, se nos acomodamos na nossa tão sonhada “gaiola dourada”, estamos infelizes? Quantas e quantas vezes nos queixávamos das exíguas oportunidades de usufruir dos encantos das nossas casas?
Obrigado Bilac pela poesia tão atual!
A análise do comportamento há tempos investe na tentativa de cobrir as mais diversas facetas do que se chama “liberdade”, uma síntese (brilhante!) delas está disponível em (de Fernandes & Dittrich, 2018). Só para ilustrar o argumento, temos (Skinner, 2002) que defendeu o uso do seu modelo de operantes verbais – em especial, o tato – como mecanismo adequado para encontrar as definições do termo.
Segundo o autor, fala-se em liberdade em diferentes contextos, por exemplo, quando: a) se projeta uma – utópica – condição em que o comportamento estaria liberto de suas variáveis controladoras, e/ou b) se descreve fração dos eventos encobertos que são produzidos colateralmente em contingências em que há atenuação ou posposição de consequências aversivas.
Mais recentemente, (Baum, 1994; Goldiamond, 1975) discutiram a importância das contingências de escolha na definição do que seria um contexto produtor da experiência de liberdade. Apesar dos fantásticos insights provocados pelas ideias dos autores acima elencados, vem do modelo experimental descrito por (Catania, 1998) a análise que tenho percebido como mais profícua no que diz respeito à compreensão dos fenômenos clínicos que vêm se apresentando a mim durante este período de exceção[2].
No modelo de “escolha livre Vs. escolha forçada” um pombo é exposto a uma contingência concorrente: se bica o disco de uma dada cor (braço A) acessa uma consequência “valiosa” (comida, por exemplo). Se bica o disco de outra cor (braço B) produz a oportunidade de uma nova escolha que, independentemente qual seja, permitirá que o animal acesse consequência semelhante à do primeiro cenário. O esquema abaixo (Fig. 1) pode ajudar na compreensão do arranjo experimental.
(Catania, 1998) aponta que há uma “predileção” natural dos organismos[3] pela escolha livre (braço B). Tal tendência é sensível a alterações nas propriedades da contingência (e.g. atraso na liberação da consequência, punição de respostas “pró-B”, alteração no valor reforçador das consequências produzidas via A e via B), todavia, a reversão desta inclinação natural é um efeito temporário.
O autor conclui que a propensão dos organismos à contingências de livre escolha (braço B) tem raízes filogenéticas. Ou seja, em virtude dos seus benefícios evolutivos, os mecanismos de seleção e variação nos presentearam com uma tendência a “escolher a possibilidade de escolher”.
Vocês já ouviram um paciente queixando de ter sido alvo do cerceamento do direito de definir os direcionamentos da própria vida? Um funcionário obrigado a “engolir” atribuições novas do chefe? Um adolescente intimado a agir de dada maneira pelos pais? Avaliem se não combina com a descrição a seguir…
Ao privar alguém da “oportunidade de escolher” são observados efeitos colaterais típicos de contingências de punição (negativa, no caso!). Por exemplo, emoções como a raiva ou ira, sem falar da evocação de respostas com função de contracontrole (quem nunca desejou o mal do algoz que tirou de si algo muito valioso?).
E o que esse papo todo tem a ver com o isolamento?
Bem, espero que o leitor tenha me acompanhado na linha de raciocínio que leva à conclusão de que, ao menos parte, do “sentir-se livre” está diretamente correlacionado com poder “escolher fazer escolhas” – quase um trava-línguas!
Exposições Finais.
A imposição da quarentena nos privou de fazer uma série de escolhas. Estamos num prolongado esquema de “escolha forçada” (braço A do esquema). Neste período temos sido obrigados à uma infinidade de coisas, desde aquelas que envolvem proteção individual e social (medidas de contenção da propagação do vírus, por exemplo), até mesmo a atender à cultura da “hiperprodutividade” (quantos vídeos vocês já assistiram por aí em que há uma ode à “reinvenção” e busca irrefreada por, “aproveitar o período”, e “fazer mais/melhor”?).
Acredito que um pedaço importante dessa sensação generalizada de aprisionamento que tenho ouvido dos meus pacientes (e que por vezes compartilho) está sendo produzida por esse contexto: nos tiraram a chance de escolher “livremente”, e temos sido recorrentemente “forçados” a agir de dadas maneiras.
Onde se encaixa a infelicidade aí?
As emoções colateralmente produzidas por esta enorme contingência de punição negativa nas quais estamos imersos já dão pistas! Todavia, há mais coisas em jogo.
Como apontam (Li et al., 2017), há certo consenso na literatura acerca da correlação entre liberdade[4] e bem estar. Os autores conduziram dois estudos em que destrinchavam essa trama de fenômenos. No primeiro deles, observaram que havia uma correlação positiva entre o livre-escolher, afetos positivos e satisfação com a própria vida. No segundo estudo, não somente os dados do primeiro foram replicados como se observou uma predileção gritante por um cenário em que as escolhas de um indivíduo estariam sob sua própria égide (e não determinadas previamente).
Assim completamos o breve encadeamento reflexivo aqui proposto. Parece que viemos ao mundo dando bastante valor à oportunidade de escolha. A sensação de liberdade está intimamente intricada a ela. Quando nos tiram esse “brinquedo” reagimos emocionalmente. Emoções essas que remetem ao que se conhece como infelicidade.
Quando fomos obrigados à nos isolarmos em nossas casas – independentemente do quanto gostamos delas e das muitas oportunidades nelas encontradas – fomos submetidos a contingências que inexoravelmente produzem insatisfação.
Mas… espera um pouco. Mesmo em “prisão domiciliar” (temporária!) há como se produzir contingências de escolha, certo?
Quem sabe seja esse um mecanismo para reversão dessas emoções tão dolorosas que vêm nos assombrando? O jeito de fazer isso? Hum… Papo para outra reflexão… deixo o convite aberto para vocês!
Acho que, hoje, todos ansiamos por aquilo que o pássaro de Bilac deseja…
Solta-me ao vento e ao sol!
Com que direito à escravidão me obrigas?
(…)
Não me roubes a minha liberdade …
Quero voar! voar! … “
(O pássaro Cativo – Olavo Bilac)
Referências
Baum, W. M. (1994). Understanding behaviorism: Science, behavior, and culture. Blackwell.
Catania, A. C. (1998). Learning (4th ed). Prentice Hall.
de Fernandes, R. C., & Dittrich, A. (2018). Expanding the Behavior-Analytic Meanings of “Freedom”: The Contributions of Israel Goldiamond. Behavior and Social Issues, 27(1), 4–19. https://doi.org/10.5210/bsi.v27i0.8248
Goldiamond, I. (1975). Alternative Sets as a Framework for Behavioral Formulations and Research. Behaviorism, 3(1), 49–86.
Li, C., Wang, S., Zhao, Y., Kong, F., & Li, J. (2017). The Freedom to Pursue Happiness: Belief in Free Will Predicts Life Satisfaction and Positive Affect among Chinese Adolescents. Frontiers in Psychology, 7. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2016.02027
Skinner, B. F. (2002). Beyond freedom & dignity. Hackett Pub.
[1] Deixo registrada minha gratidão a Cristiane Carnavale, Elisa Galvão, Fernanda Brunkow, Jorge Quintero, Letícia Luz e Paulo Cenacchi por terem sido combustível para a formalização dessas reflexões.
[2] Para os fins do presente texto me permito negligenciar a especificação dos detalhes metodológicos que tanto animam analistas do comportamento nascidos e criados no laboratório, com os quais me identifico.
[3] Também vou me privar da discussão sobre os aspectos distintivos do comportamento de humanos e pombos. Declaro aqui que estou me fiando no princípio da continuidade das espécies.
[4] Os autores apresentam uma série de estudos que investigaram os efeitos da “crença” em livre arbítrio sobre o comportamento dos indivíduos. Aqui nos permitimos uma extrapolação nada rigorosa entre os conceitos de livre-arbítrio e liberdade.