Entro no Google. Começo a pesquisar sobre coaching. Uma matéria em um site de um famoso instituto de coaching do Brasil me oferece dicas de “gestão emocional” através do “método coaching” (e tenta me vender um e-book, ao mesmo tempo). Outro famoso instituto me oferece um curso online para “eliminar crenças limitantes” (e outro e-book, desta vez de graça). Uma landing page tenta me vender um produto online de coaching INTEGRAL (o que é isso? Integra tudo?), incluindo técnicas de gerenciamento emocional e desenvolvimento “espiritual”. Por fim, outro grande instituto de coaching me apresenta a ferramenta DISC, de avaliação da personalidade, que foi INVALIDADA pelo Conselho Federal de Psicologia, mas que é amplamente utilizada por alguns coaches no país.
Tudo isto me fez lembrar de uma reportagem de 2002, publicada na prestigiada Harvard Business Review (ou simplesmente HBR), intitulada “Os reais perigos do coaching executivo”. O autor do artigo, Steven Berglas, alertava – 10 anos atrás! – que os profissionais do coaching não recebiam treinamento adequado para avaliar corretamente o estado mental das pessoas. Berglas cita uma situação que o deixou em alerta. Um alto executivo foi atendido por um coaching através de técnicas que acabaram mascarando e agravando um quadro de transtorno de personalidade, que só pode ser diagnósticado CORRETAMENTE por um(a) profissional de Psicologia ou Psiquiatria. E, claro, foi somente após a avaliação minuciosa de uma Psicóloga que o executivo começou a receber o cuidado adequado. Caso contrário, o prognóstico era péssimo (tanto para o executivo quanto para a empresa que ele comandava).
Naturalmente, os profissionais capacitados para realizar uma avaliação psicológica (e tratamento) são aqueles que obtiveram um diploma em Psicologia ou Medicina, profissões devidamente regulamentadas e regidas por conselhos e códigos de éticas. Pessoas que passaram por, no mínimo, 5 anos de treinamento academico e prático, além dos anos extras de capacitações e especializações. Como a profissão de coach não é regulamentada no Brasil, nem sempre o rigor científico é um norte a ser seguido (veja o caso da utilização massiva do instrumento DISC, que foi invalidado pelo CFP, além de outras técnicas e “testes” absolutamente bizarros).
A falta de regulamentação parece ser – de fato – o entrave para a superação e consequente organização da profissão. Mesmo com a reconhecida dispersão do campo, existem atividades de coaching ligadas a Harvard, Stanford e outros grandes centros, além de um número elevado de profissionais realmente capacitados a ajudar indivíduos a desenvolverem seus potenciais pessoais e profissionais. Mas vale ressaltar que, mesmo entre o néctar do coaching ao redor do mundo, nenhum profissional está habilitado a avaliar (e tratar) o estado de saúde mental de um cliente (a não ser que a pessoa seja profissional de Psicologia também). Grande parte de seu repertório de técnicas não estão balizadas por um ciência rigorosa ou, quando estão, encontram-se fora do exercício profissional de coach.
O problema da intersecção e dificuldade de limites entre o coaching (em particular em suas formas de “life”, “welness” e “integral” coaching) e a Psicologia parecem ser um problema central. Talvez formas mais business de coaching, como o coaching executivo ou financeiro, estivessem menos sujeitas a esta mistura com a Psicologia, apesar de – ainda assim – ter seu foco no trabalho com pessoas. Em última instância, todo e qualquer trabalho de coaching incide sobre pessoas. Se incide sobre pessoas está em CONTÍNUA intersecção com a Psicologia, não? Como transitar por esta avenida tumultuada?
Deveria todo coach passar por uma faculdade de Psicologia? Deveria trabalhar em NECESSÁRIA parceria com um(a) profissional de Psicologia? Mais do que isso, seria a emergência do coaching um mero sintoma de que a Psicologia está desajustada às necessidades das pessoas e do mundo?
Verdade é que nenhum profissional de coaching está CAPACITADO a oferecer algum tipo de “tratamento emocional”, a não ser a mesma pessoa possua bacharelado em Psicologia ou em Medicina (Psiquiatria ou formação em Psicoterapia). Mesmo assim, muitos coachs empregam técnicas retiradas de intervenções cognitivo-comportamentais, criando jargões como “crenças limitantes”, e misturam com famigerados PNLs e até mesmo modismos “quânticos”, fazendo uma salada de intervenções sem validação e segurança. Some-se a isso a utilização des testes e ferramentes sem valor científico. E tudo isso a fim de ajudar as pessoas a conquistarem orientação e “bem-estar” emocional. Life Coaching pode ser algo bem problemático.
Tony Robbins, o “I´m not your guru” (but I am!), famoso entre os coaches de todo o mundo, tem dicas e sugestões espalhadas pela internet sobre como “vencer a depressão” ou superar as emoções negativas. Seria exercício ilegal da profissão no Brasil?
Em nota do Conselho Federal de Psicologia, temos: “Ressalta-se que qualquer profissional que não esteja inscrito no CRP e que desenvolva atribuições de psicólogo pode responder por exercício ilegal da profissão. De acordo com a Lei das Contravenções Penais: Art. 47. ‘Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício leva a pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa’.
E segue: “Nesse ponto, vale destacar que a LEI 4.119, DE 27 DE AGOSTO DE 1962, estabelece como função privativa do psicólogo a utilização de métodos e técnicas psicológicas com os objetivos de diagnóstico psicológico, orientação e seleção profissional, orientação psicopedagógica e solução de problemas de ajustamento”.
Se você estivesse se sentindo deprimido(a) procuraria o Tony Robbins para te ajudar, ou uma psicóloga que trabalhou e estudou depressão por 12 anos? Talvez preferisse o Robbins, pois ele tem muita visibilidade e é famoso. Além disso, ele aparece no Netflix e tem uma porrada de livros. Então é compreensível que você opte por ele, mas talvez não seja responsável. Pense nisso.
Eu tenho certeza, no entando, que se você adoecesse devido a infecção bacteriana você escolheria o antibiótico que um médico te deu ao invés de uma palestra do Robbins. Por que não confiar na ciência psicológica, então? Vejamos mais algumas informações
Esses questionamentos sobre a intersecção entre Psicologia e coaching ficam ainda mais problemáticos se levarmos em consideração o aumento vertiginoso (além de uma enorme contingência de casos subdiagnosticados) da prevalência de transtornos mentais comuns, como depressão e ansiedade, na população geral. Daí, temos um situação complicada.
1- Coachings não estão capacitados a avaliar (muito menos tratar) psicologicamente as pessoas, nem cuidar de suas emoções.
2 – Mas as pessoas estão – em geral – mais adoecidas e mais propensas ao adoecimento psíquico.
3 – Logo, precisam de maior atenção quanto à avaliação de sua saúde mental.
4 – Contudo, não se vê por aí os life coaches dizendo: “bem, antes de me procurar e pagar o valor da minha hora profissional, vá na psicóloga que atende no quinto andar, faça um avaliação minuciosa da sua saúde mental e, se você estiver saudável, volte aqui que eu ajudarei você a desenvolver suas potencialidades e vencer algumas crenças limitantes. Caso contrário, trate-se primeiro e depois volte aqui”.
5 – O quão real é o cenário do ponto anterior? Pouco, né?
Isso significa que – muito provavelmente – pessoas com quadros diagnosticáveis de ansiedade, depressão, TDAH, depressão, transtornos de personalidade e uma quantidade imensa de outras condições podem estar, neste momento, procurando ajuda de um life coach que não está preparado para manejar a situação. Além disso, mesmo pessoas sem psicopatologia diagnosticada, porém passando por situações desafiadoras como luto, divórcio e desemprego talvez estivessem melhor amparadas por profissionais de saúde mental. Como posicionar o papel do coach diante disso? Resumo da ópera: antes do life coach deveria vir o profissional de psicologia?
Mais grave ainda é o fato de que o manejo de dificuldades emocionais e mentais geralmente fazem parte do próprio processo do coaching (mesmo o coaching executivo que é – digamos assim – “menos pessoal”). Lembra das promessas que descrevi no início do artigo? Gerenciar emoções, vencer crenças limitantes, etc. Temos aqui pólvora e fogo, lado-a-lado. O processo do coaching carrega em si o risco constante de cruzamento da fronteira que ele mesmo se propõe a não cruzar (sim, os coachings são ensinados que “coaching e psicoterapia são coisas diferentes”). Esperar que os(as) coachings estejam conscientes a todo momento deste risco talvez seja uma demanda irreal posto que o ideal seria que estes profissionais trabalhassem – ao menos – sob supervisão de um(a) profissional de Psicologia ou Psiquiatria. Além disso, treinamentos de coaches do tipo “express”, online, com duração de “final de semana”, muito comuns, talvez não sejam suficientes para o esclarecimento necessário do profissional de coach em relação a estas dificuldades.
No Brasil o crescimento do coaching é vertiginoso, para o bem e para o mal. Por aqui já existem dezenas de “associações” de coaching, com diferentes “certificações” internacionais. O número de coachings sem formação em Psicologia ou Medicina é crescente e, com eles, a oferta dos serviços associados. Some-se ao coaching a oferta (as vezes em conjunto) de terapias sem validação científica (ou com pouquíssima pesquisa ao redor) como Barras de Access, Constelações Familiares ou Thetahealing. Não é incomum ver estes dois universos em comunhão, coaching e terapias alternativas. Além disso, mesmo profissionais com formação em Psicologia estão caindo na sedução de ofertar “produtos” característicos do coaching irresponsável, como “rapidez na solução de problemas” e pseudociências de auto-ajuda. Vale lembrar que o Conselho Federal de Psicologia emitiu nota recentemente sobre esta situação.
O QUE FAZER?
Em primeiro lugar devemos olhar o fenômeno de modo aberto, observando nossos preconceitos para além do desejo óbvio de preservar e cuidar das pessoas. Devemos estar igualmente atentos a existência de formas legítimas e validadas de coaching, assim como profissionais bem intencionados e sérios que certamente fazem um excelente trabalho. Em geral, são profissionais que entendem e respeitam esse difícil limite entre Psicologia e Coaching, focando seu trabalho em questões pertinentes a sua área.
O crescimento não-regulamentado do coaching está dizendo para nós, profissionais de saúde, que as pessoas estão BUSCANDO estes serviços. Portanto, é nossa responsabilidade pensar em maneiras de ajudar as pessoas de modo mais efetivo, lendo as entrelinhas deste movimento. Queremos formas rápidas e otimizadas de transformação, e isto não é exclusividade de Psicologia. O coaching está aí para isso, preenchendo esta lacuna. Certamente temos algo para aprender com o Coach também. Mas seria possível construir uma amizade entre estes processos de coach e a ciência psicológica rigorosa? Haveríamos como construir estas pontes de modo seguro e responsável?
Talvez a inclusão do coaching aos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia; talvez o aumento do número de horas dos treinamentos de coaching quanto a importância de supervisão ou auxílio de um profissional da ciência psicológica; talvez a criação de um órgão legal, e central, que investigue se há promessas exageradas no coaching.
E você, o que pensa? É possível? Ou estamos em uma areia movediça?