Embora seja repetitivo falar de intervenção precoce e TEA (transtorno do espectro do autismo), muitas vezes não consigo tratar de outro assunto até que coloque no papel algumas ideias que me ocorrem quando estou delineando a intervenção ou quando ouço discussões acaloradas entre pessoas com opiniões extremadas sobre qual o melhor tipo de intervenção. Ao meu ver, no caso do TEA, tais discussões são particularmente intensas por conta do desconhecimento da etiologia (o que impossibilita tratar a causa diretamente, fato este que nos deixa com a opção da intervenção comportamental para diminuir o impacto do transtorno nos indivíduos atingidos por ele), do impacto devastador no indivíduo que é acometido pela vida toda e do impacto familiar.
Uma vez que a opção de tratamento para o TEA é comportamental, inúmeras abordagens emergiram como possibilidade de intervenção. Parte delas não tem sustentação empírica que demonstre eficácia. A ampla oferta de tratamentos que vai desde a psicanálise ao tratamento biológico reside no fato de que ainda não há como tratar diretamente sua causa. Na ausência de marcadores biológicos, o diagnóstico é feito por observação comportamental e o tratamento com maior evidência de eficácia é comportamental/educacional. A partir dos resultados estudo de Lovaas (1987) sobre a intervenção precoce com crianças com TEA, intervir cada vez mais precocemente passou a ser a principal ferramenta de tratamento, e ainda é, para balancear déficits e excessos comportamentais que caracterizam o quadro de TEA.
Abaixo veremos brevemente três modelos de intervenção precoce, um que usa teoria comportamental na explicação do quadro de TEA e aplicação de conceitos e procedimentos comportamentais no tratamento, e dois que adotam teorias do desenvolvimento infantil e evidência científica sobre desenvolvimento neurológico na infância para explicar o quadro e selecionar conceitos e procedimentos comportamentais para a intervenção. Em comum os três modelos têm a análise do comportamento aplicada (ABA) e a busca por evidência científica de eficácia. O primeiro é o modelo de Lovaas totalmente fundamentado na literatura analítico comportamental; o segundo é o modelo PRT (sigla para Pivotal Response Treatment) fundamentado majoritariamente em literatura analítico comportamental, exceto pela visão de linguagem adotada que é alinhada com a visão pragmática de Bates (1976) e não com visão skinneriana de comportamento verbal; e o terceiro é o ESDM (sigla para Early Start Denver Model) que usa procedimentos da ABA, mas se alinha com as teorias de desenvolvimento infantil e desenvolvimento do cérebro nos primeiro anos de vida.
Começaremos pelo Modelo de Lovaas que se tornou a intervenção de escolha da comunidade científica a partir da publicação de um artigo em 1987 com resultados inéditos que lançariam as bases para intervenção precoce baseada em evidência com capacidade de modificar o curso de desenvolvimento do TEA. Neste estudo, os resultados demonstraram que foi possível recuperar 47% das crianças com autismo que receberam intervenção intensiva, o que significa dizer que tais crianças passaram a ter funcionamento similar ao de seus pares sem histórico de diagnóstico de TEA. As estratégias de ensino empregadas foram as tentativas discretas, com implementação e enfraquecimento das ajudas e uso de reforçadores arbitrários, treinamento de pais. Os princípios do comportamento foram traduzidos em procedimentos replicáveis e passiveis de serem utilizados em diversos contextos para acelerar as taxas de aquisição de crianças com TEA. Além da aplicação dos princípios do comportamento, a intervenção do modelo de Lovaas é abrangente e intensiva – 40 horas semanais. Do ponto de vista da interação 1:1, no ensino por tentativas discretas, o terapeuta escolhe o estímulo a ser ensinado, o tipo de estímulo reforçador a ser empregado (arbitrário não relacionado funcionalmente à resposta) e o tipo de resposta do aprendiz a ser reforçada sendo a mesma por sucessivas tentativas. A interação é iniciada a cada tentativa pelo terapeuta e o aprendiz é ensinado a emitir a resposta selecionada ou aproximações dela em sessões altamente estruturadas (Schreibman, 2005).
Diferentemente do formato mais estruturado do modelo de Lovaas (1987) e baseado nos princípios do comportamento, o modelo de Tratamento por Resposta Pivô (PRT) de Koegel e Koegel (2006), que também é um modelo de ABA, tem ênfase em estratégias de ensino naturalísticas. As sessões são semiestruturadas, os reforçadores são funcionalmente relacionados à resposta alvo e são apresentados para tentativas de responder, mesmo que distante da resposta alvo. Do ponto de vista da interação terapeuta-aprendiz, os estímulos antecedentes são escolhidos pela criança e variam de sessão para sessão. Assim sendo, as tentativas são iniciadas pelo aprendiz em diferentes contextos diante de vários estímulos. As respostas a serem reforçadas variam durante a sessão e não seguem uma ordem pré-programada. As ajudas variam de acordo com a resposta inicial do aprendiz e o tipo de reforçador é escolhido por ele. A intervenção também é intensiva, ocorre em ambiente natural, envolve o treinamento de pais e tem ênfase nas áreas impactadas pelo TEA: desenvolvimento da comunicação, interações sociais e ampliação dos interesses da criança. O resultado de pesquisa mais impressionante sobre este modelo reportou ensino de fala para 95% das crianças da amostra.
Incluindo estratégias da análise aplicada do comportamento (ABA) e do modelo PRT, Rogers e Dawson (2010) propuseram um modelo de intervenção precoce desenvolvimentista, o ESDM (Early Start Denver Model). Entre os procedimentos da ABA incorporados ao ESDM estão o estabelecer atenção da criança, antecedente-comportamento-consequência (ABC), ajuda para os comportamentos desejados, gerenciamento de consequências, enfraquecimento das ajudas, modelagem, encadeamento e avaliação funcional. Os princípios do PRT usados no modelo são reforçar as tentativas da criança, alternar ensino de comportamentos novos com comportamentos já aprendidos, reforço tem relação direta com a resposta da criança, a criança toma seu turno durante as atividades, as instruções e outros antecedentes são expressas de forma clara, a criança tem poder de escolha e de seguir suas opções. As principais estratégias de ensino são denominadas rotina sócio-sensorial e rotina com objetos. Adicionalmente, práticas do Modelo Denver, tais como o adulto modelar e otimizar o afeto da criança, uso de afeto positivo, adulto ser responsivo às pistas sutis da criança para mudar de atividade, múltiplas e variadas oportunidades de comunicação, linguagem pragmática e de acordo com o nível de comunicação verbal e não-verbal da criança, gerenciamento eficaz das transições. Até a data da publicação do manual de intervenção em 2010 havia cinco artigos demonstrando a eficácia do modelo.
O leitor que chegou até aqui pode se perguntar o porquê da existência de três diferentes modelos de intervenção precoce com o mesmo o objetivo e tendo um ponto de partida em comum que é a análise do comportamento. Qual é a diferença entre usar as tentativas discretas (ensino estruturado) e rotina sócio-sensorial para ensinar comportamentos novos? Por que usar teoria do desenvolvimento e não teoria analítico comportamental exclusivamente? Eu me fiz e me faço todas estas questões. Não tenho uma resposta definitiva, mas gostaria de avaliar as diferentes estratégias de ensino e seus efeitos nos sintomas centrais dos TEA e identificar os achados que impulsionaram pesquisadores da área de TEA a adotar, além da teoria analítico-comportamental, outras teorias em suas abordagens de tratamento. Tal análise ultrapassa o escopo deste artigo que era apresentar as diferentes abordagens de intervenção precoce e será apresentada em um artigo futuro.
Referências Bibliográficas
Associação Americana de Psiquiatria (2014). Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais. 5ª. Edição. Porto Alegre: ArtMed.
Bates, E. (1976). Language and contexto: the acquisition of pragmatics. New York: Academic Press.
Lovaas, I. O, (1987). Behavioral treatment and normal educational and intelectual fuctioning in young autistic children. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 55, 3-9.
Koegel, R. L. e Koegel, L. K. (2006). Pivotal Response Treatments for Autism: communication, social, and academic development. Baltimore: Paul H. Brookes Publishing Co.
Rogers, S. e Dawson, G. (2010). Early Start Denver Model for Young Children with Autism. New York: Guilford Press.
Schreibman, L. (2005). The Science and fiction of autism. Cambridge: Harvard University Press.