A relação que estabelecemos com a comida vai além dos aspectos nutricionais e é o foco de muitos problemas de saúde mental. Para falar sobre os Transtornos alimentares sob a ótica da análise do comportamento, convidamos a psicóloga clínica e experimental e atual Vice-Presidente da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC), Liane Dahás, que atua no Grupo de Estudos em Comer Compulsivo e Obesidade (Grecco) do Ambulatório de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Instituto de Psiquiatria – HC-FMUSP.
Liane Dahás é Psicóloga Clínica e Experimental. Pesquisadora do Instituto de Psicologia da USP (Pós Doutoranda do PSE), desenvolvendo pesquisas em prevenção e tratamento de transtornos psiquiátricos. Doutora e Mestra em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela UFPA (2013 e 2009). Especialista em Psicologia Clínica (2011). Graduada em Bacharel em Psicologia e Psicóloga pela UFPA (2005). Psicóloga no Grupo de Estudos em Comer Compulsivo e Obesidade (Grecco) do Ambulatório de Transtornos Alimentares (Ambulim) do IPq – HC-FMUSP (2014-atual). Supervisora do Curso de Orientação Parental no Paradigma: Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento. Eleita Vice-Presidente da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC) – Gestão 2017-2018.
Comporte-se: Para começar, gostaria que falasse um pouco sobre como você se interessou pelo estudo dos transtornos alimentares?
Liane: Tive um familiar com anorexia nervosa, que sofreu muito, eu realmente cheguei a achar que morreria. Em Belém, quase ninguém conhecia a doença, foi bem difícil conseguir tratamento, fizemos quase que uma ponte aérea Belém-São Paulo. Eu era pequena e fiquei impressionada em conhecer a psicologia. Mais ainda em ver que o problema havia sido resolvido, sem “remédio”, “só com a fala”. Ficou no meu imaginário infantil a possibilidade de tratar problemas como minha mãe, pediatra, tratava, mas de um jeito bem diferente. Me apaixonei pela área e resolvi fazer psicologia aos dez anos de idade.
Sempre estudei por conta o assunto, ficava ligada nas pesquisas, xeretava o site do AMBULIM (Ambulatório de Transtornos Alimentares do HC-FMUSP). Ao entrar na Universidade Federal do Pará, me encantei com as pesquisas feitas lá, na Escola Experimental de Primatas, e permaneci anos da minha carreira trabalhando com controle de estímulos, pesquisa básica mesmo, ao mesmo tempo em que realizei uma especialização em clínica e passei a ter essa “vida dupla”. Quando terminei o doutorado, pensei: e eu não ia estudar transtornos alimentares? Rsrsrs. Resolvi iniciar então, e estou nessa desde 2013. Entrei no pós doc na USP, utilizando um modelo animal de compulsão alimentar, e concomitantemente, no AMBULIM.
Comporte-se: A alimentação tem um papel muito importante em vários aspectos da vida das pessoas, tais como, os nutricionais e os sociais. Atualmente tem se falado, cada vez com mais frequência, na Ortorexia (fixação por saúde alimentar). Quais fatores, no seu ponto de vista, contribuem para uma preocupação excessiva com a saúde alimentar, além dos elementos culturais?
Liane: Creio ser impossível fazer qualquer análise sobre Ortorexia sem pensar nos elementos culturais. A Anorexia Nervosa é um transtorno cujos primeiros relatos remontam à idade média, quando não era “bonito” ser magro, e hoje compreendemos que é bem possível se instalar o transtorno sem o componente cultural (a ponto de o termos inclusive, em animais), com fatores puramente filogenéticos e ontogenéticos. Já a ortorexia, eu nunca vi modelos experimentais que conseguissem mimetizar. A Ortorexia ao meu ver é um transtorno instalado por contingências culturais bem fortes: a exigência de ter um corpo “forte”, “bonito”, “funcional”, o que é impossível de alcançar sem aquela alimentação toda contadinha, feita pra inflar os músculos.
Alguns pesquisadores da Psicologia Cognitiva preferem falar em comer desordenado, de maneira geral, em vez de falar em anorexia, bulimia, ortorexia, etc. Eu acho essa uma ótima alternativa, porque se a gente parar pra pensar, a ortorexia não deixa de ser uma forma bem transtornada de olhar pra comida, de se aproximar dela. E os fatores que contribuem para o comer desordenado já são bem sabidos hoje em dia: exposição continuada a dietas restritivas, insatisfação com imagem corporal, histórico de abuso sexual, preocupação dos pais com a imagem corporal dos filhos, etc.
Comporte-se: Em sua opinião, como a análise do comportamento pode contribuir para a compreensão dos transtornos alimentares?
Liane: Como qualquer outro comportamento, o alimentar está sujeito às leis do comportamento operante e respondente. O analista do comportamento tem um papel fundamental em descrever como essas leis afetam a instalação e manutenção tanto do comer saudável, quanto do desordenado. Não tem mágica nenhuma, as maiores especificidades do tratamento de transtornos alimentares se dão nas interações operante-respondente que são famosas, por exemplo no tratamento do abuso de drogas. Açúcar não é diferente. Além, é claro, da gravidade de grande parte dos casos de TAs..
Então o analista do comportamento que se sujeite a trabalhar com transtornos alimentares precisa ser capaz de compreender sobre controle de quais estímulos o comer desordenado se dá (amigos comendo ou fazendo dieta, imagem no espelho, etc), e de quais estímulos esse controle está falho e precisa ser aumentado (como o continuum entre saciedade e fome). E de ser capaz de um bom vínculo, de ampliar o repertório comportamental do cliente como um todo (como competências sociais e resolução de problemas). Ou seja, a análise do comportamento pode atuar na compreensão e tratamento dos transtornos alimentares como faz com todos os outros.
Comporte-se: Quais ferramentas um analista do comportamento dispõe para trabalhar com essa questão e quais são os principais desafios que ele pode enfrentar nesse campo de atuação?
Liane: A análise funcional é a ferramenta fundamental, que vai nos guiar para tratar comportamentos alvo importantes. Ao lado dela, vem a capacidade de se vincular com o cliente, e às vezes até de “comer pelas beiradas”, quando possível, propondo mudanças alimentares conforme percebe que o cliente está disposto (e já tem repertório apropriado) àquilo.
Um enorme desafio é a formação de vínculo. Grande parte dessa população não percebe que tem uma relação extremada com a comida, ou quando percebe, se recusa a altera-la, pois acredita que precisa se manter magra ou evitar engordar pra ter uma vida mais plena. Anorexia e bulimia, por exemplo, são bastante comórbidos com transtorno de personalidade borderline, enquanto a compulsão alimentar tem demonstrado um alto índice de comorbidade com depressão, então um clínico precisa estar atento às necessidades de tratamento de ambos os transtornos.
Com a elaboração contínua da análise funcional e formação suficiente de vínculo, diversas técnicas podem ser aplicadas para melhoria da satisfação e redução da distorção da imagem corporal (técnicas do carimbo, do espelho, etc), aumento de competências sociais, relação mais apropriada com a comida (técnicas de montagem de prato, ir ao supermercado, mindful eating). Claro, se a análise funcional do caso apontar para tal.
O tratamento dos transtornos alimentares tem uma outra especificidade que é bem clara ao psicólogo, seja lá de qual abordagem for: é muito difícil trabalhar sozinho. Quanto mais profissionais qualificados estiverem ao nosso lado, maiores as chances de êxito. Psiquiatras, educadores físicos, nutricionistas comportamentais, e até fisioterapeutas podem ser aliados importantíssimos na realização de um tratamento eficaz.
Comporte-se: Para finalizar, quais artigos, livros ou filmes você indica para quem ficou interessado em saber mais sobre o que a Análise do Comportamento tem a dizer sobre os Transtornos Alimentares?
Liane: Os seguintes artigos são bastante instrutivos para um analista do comportamento passar a “ler” os transtornos alimentares com a visão de mundo analítico comportamental (infelizmente, temos pouca coisa em português… prometo mudar isso nos próximos anos, ok? ;))
Lappalainen & Tuomisto (2005). Functional Behavior Analisys of Anorexia Nervosa: Applications to clinical practice. The Behavior Analyst Today, 6, 166-177.
VALE, Antonio Maia Olsen do e ELIAS, Liana Rosa. Transtornos alimentares: uma perspectiva analítico-comportamental. Rev. bras. ter. comport. cogn. [online]. 2011, vol.13, n.1 [citado 2017-07-17], pp. 52-70 .
Key, George, Beatiie, Stammers, Lacey e Waller (2001). Body Image Treatment within na inpatient program for anorexia nervosa: the role of mirror exposure in the desensitization process. INternational Journal of Eating Disorders, 31, 185-190.
Esses livros aqui, um de nutrição comportamental, e o outro de uma nutricionista comportamental, são uma delícia de ler:
Alvarenga, M., Figueiredo, M., Timerman, F., & Antonaccio, C. (2015). Nutrição Comportamental. Brueri SP: Manole.
Deram, Sophie. O Peso das Dietas. Editora Sensus.
Filme? Você me pegou, só me lembro do documentário “Muito além do peso”, que discorre sobre a epidemia de obesidade.
Hoje em dia tem uma infinidade de vídeos disponíveis no youtube sobre alimentação (uns de pessoas explicando como funciona a nutrição comportamental, acredito que valha à pena dar uma conferida), mas a maioria vai justamente levar pro lado da Ortorexia. Então fica aqui a dica: sabe aqueles programas de pessoas cozinhando a própria comida, colhendo o tempero da horta pendurada na janela da cozinha? Assista esses. Certamente vai te dar ideias de como ter uma alimentação mais saudável, de como se aproximar da comida de maneira prazerosa, e de como trazer o assunto da alimentação “normal”, sem nóias, pra terapia.
E vou finalizar indicando pra quem quiser começar a trabalhar com transtornos alimentares e estiver em São Paulo: o AMBULIM tem um curso avançado em transtornos alimentares para médicos e psicólogos que acredito ser a melhor formação possível existente na América Latina. Além disso, oferece cursos mais curtos de imersão e algumas visitas monitoradas que também valem muito à pena.