Um programa standard de DBT na saúde pública

No último texto, falei um pouco de diferentes modelos de programas públicos de saúde com DBT no Canadá. Hoje, conheceremos um programa com a DBT standard oferecido na rede pública e veremos como ele foi possível, tendo em vista que a maioria dos programas no Canadá oferece modelos que adaptam e integram a DBT (para uma discussão inicial sobre DBT standard x adaptação veja o texto anterior). Esse texto foi elaborado a partir de uma entrevista concedida por uma das coordenadoras do programa a ser apresentado, a Enfermeira Psiquiátrica Janice Wingrave.

A cidade na qual está inserido este programa completo de DBT (com terapia individual, grupo de treino de habilidades, coaching telefônico – e muito mais!) chama-se Calgary, na província de Alberta. Está localizada na parte oeste do Canadá, não tão distante de Seattle, nos Estados Unidos (1h40min de vôo, para ser mais precisa), onde estão o Instituto Linehan e o centro de treinamento Behavioral Tech. Calgary tem uma população em torno de 1,2 milhões de habitantes, um tamanho comparável à cidade de Porto Alegre/RS, a qual tem uma população de 1,4 milhões de habitantes.

 

Início e capacitação

O programa de DBT de Calgary teve início em 2001 e precisou de muita vontade e suporte político para existir, conforme relata a supervisora clínica do programa desde sua criação, a Enfermeira Wingrave. A compreensão da proposta e o apoio da gerente de programas em saúde da época foi imprescindível para concretizar o início do programa, assim como sua estabilização. Além disso, a vontade da equipe foi, e continua sendo, fundamental. Desde o início, os treinamentos dos membros da equipe vêm sendo custeados pelos próprios profissionais, com eventuais incentivos públicos que ajudam a cobrir uma pequena parte dos gastos com o aprimoramento técnico.

 

Público atendido

O programa atende pacientes diagnosticados com o Transtorno da Personalidade Borderline (TPB), encaminhados por profissionais da rede pública de saúde. Pacientes com comorbidades como transtornos alimentares, abuso de substâncias e com histórico criminal (dependendo do risco de violência) são aceitos no tratamento regular. De acordo com Wingrave, o desafio maior costuma ser a adaptação do treino de habilidades para pessoas com limitações cognitivas.

Equipe fixa e colaboradores

O programa de DBT iniciou com uma equipe de cinco membros. Aos poucos a equipe foi crescendo e hoje conta com 10 terapeutas das áreas de formação: Psicologia, Serviço Social e Enfermagem. Além desses, há quarto psiquiatras vinculados ao programa que realizam a farmacoterapia quando necessária. Ainda, em algumas ocasiões a equipe de DBT conta com o suporte de um profissional de fora do programa, com formação similar a de terapeuta ocupacional, o qual recebeu treinamento em DBT e pôde auxiliar pacientes com situações específicas que dificultavam o acesso ao programa – como por exemplo, pacientes com agorafobia em comorbidade ao TPB, quadro que limitava o uso de transporte público para chegar ao local do tratamento e entrada no prédio.

O programa ainda conta com estudantes de residência em Psiquiatria, Psicologia e Enfermagem, os quais permanecem de seis meses a um ano recebendo treinamento e supervisão. Os residentes começam como observadores nos grupos de treino de habilidades e depois passam a ser coterapeutas, além de poderem observar os atendimentos individuais. A equipe de DBT funciona com duas líderes denominadas supervisoras clínicas, que respondem por questões administrativas e de supervisão.

 

Módulos de tratamento

Os 10 terapeutas da equipe de DBT atendem cerca de 10 pacientes cada um. A terapia individual costuma se estender de 18 meses a dois anos. O coaching telefônico é oferecido apenas em horário comercial. Os familiares e amigos são convidados a participar em uma série de oito encontros semanais de suporte ao tratamento. O programa ainda dispõe de grupos de habilidade e de um grupo avançado de generalização de habilidades.

 

Modalidades de tratamento oferecidas no programa de DBT de Calgary

Terapia Individual Treino de habilidades em grupo Grupo avançado de generalização de habilidades Coaching telefônico Grupo de familiares e amigos – suporte ao tratamento
De 18 a 24 meses. 24 semanas/ 2h30 9 meses – pct novo

3 meses – retorno de pct

Horário comercial 8 semanas

 

 

Grupos de treino de habilidades

O programa oferece cinco grupos de treino de habilidades com capacidade para acolher 10 participantes em cada grupo. A duração é de duas horas e meia em cada encontro, os quais ocorrem ao longo de 24 semanas. O treino de habilidades compreende três módulos, cada um consistindo em “treino de mindfulness + outra habilidade”. Desse modo, os pacientes devem passar duas vezes pelo treinamento de cada habilidade, além de treinar mindfulness repetidamente.

Grupo avançado de generalização de habilidades

O programa ainda oferece o grupo de generalização para quem já completou o treino de habilidades e detém esse conhecimento. Os pacientes podem ficar no grupo de generalização por até nove meses. Entretanto, esse grupo reserva quatro vagas para os pacientes que já tiveram alta do programa e que sentirem necessidade de reforçar esses conhecimentos. A participação adicional nessa modalidade de generalização de habilidades deve durar, preferencialmente, três meses. Entretanto, o paciente poderá ficar seis ou sete meses, se for avaliada a conveniência.

 

Após o termino do tratamento

Após terminarem o programa de DBT, muitos pacientes sentem-se estáveis para conduzirem suas vidas sem um suporte profissional, buscando-o, se necessário, diante de alguma situação específica de vida. Outros pacientes seguem com o suporte local do médico de família da sua comunidade.

 

Combatendo estigma na rede de saúde

Considerando que o encaminhamento para entrar no programa de DBT parte dos médicos e equipes de saúde nas comunidades, para os quais uma parte dos pacientes retorna após o termino do tratamento com DBT, um trabalho contínuo de capacitação é feito com esses profissionais informalmente, em cada oportunidade, e também formalmente, com cursos que podem ser organizados. A equipe de DBT, desde o início, busca construir relações de parceria com outros profissionais, difundindo a compreensão sobre o TPB e a DBT.

Wingrave relata que uma barreira inicial foi o preconceito dos próprios profissionais da rede de saúde com relação aos pacientes com TPB e a baixa expectativa quanto ao tratamento. Por isso, a equipe precisou estar aberta não só para lidar com os desafios dos pacientes, mas também dos profissionais e da comunidade, para que esses fossem efetivos no apoio aos pacientes e ao programa. E foi alcançado muito progresso nesse sentido, relata a supervisora clínica.

 

O antes e o depois

Nos seus 16 anos, o programa de DBT já atendeu mais de mil pessoas. Nessa longa caminhada, foram pouquíssimos os casos em que o suicídio não pode ser evitado como desfecho; casos que, quando ocorrem, sempre mexem com a equipe e os pacientes. “Felizmente, a grande maioria dos pacientes apresenta uma grande melhora em suas vidas”, relata Wingrave.

Gentilmente, Wingrave nos concedeu algumas declarações que os pacientes que estão se “formando” no programa deixam por escrito para a equipe e para os novos pacientes que chegam:

 “Eu estava muito triste e com raiva quando eu vim aqui. Aprendendo as habilidades e praticando elas, a minha vida é completamente diferente hoje. Sinto-me parte e acredito em uma vida que vale a pena. Que mundo!”

“Não deixe que a primeira mínima coisa te coloque pra baixo. É difícil e assustador, mas isso tudo vale a pena no final! Ter o controle da sua vida e sentir-se contente no dia a dia vale esse trabalho e, lembre-se, você merece isso!”

“A DBT salvou a minha vida. Depois de suportar o inferno, sou capaz de respirar de novo. Não importa o quão devagar você vai, contanto que você não pare. Nunca desista, tudo realmente melhora e você é capaz de fazer isso!”

Wingrave relata como tem sido gratificante trabalhar nesse programa de DBT: “hoje, eu não trabalharia com nenhuma outra condição [de saúde mental], não poderia sentir maior realização do que sinto trabalhando com esses pacientes”.

Movendo montanhas

Por fim, considerando todas as diferenças entre Canadá e Brasil, quero destacar que o desejo e o comprometimento das pessoas é o que “move montanhas” e constrói realidades diferentes. Dificuldades institucionais, financeiras ou de qualquer ordem existem em qualquer lugar para a implantação de um programa complexo como o de DBT. Espero que dividindo um pouco dessa experiência encorajadora, muitos terapeutas e agentes de saúde sintam-se mais instigados a seguirem na construção da DBT em suas comunidades.

 

Um agradecimento especial à supervisora clinica do programa de DBT de Calgary, Janice Wingrave, que gentilmente concedeu essa entrevista ao Comporte-se.

 

 

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