No tempo da internet banda larga e dos smartphones, a eletricidade se tornou banal. Algo ordinário e pouco impressionante. Não é difícil imaginar as dificuldades que teríamos sem ela – basta lembrar-se da angústia que sentimos quando a bateria do notebook ou do celular está no final –, mas dificilmente a notamos quando acordamos ou vamos dormir a cada dia…
Esse começo poderia ser a abertura de um livro de física, mas também poderia ser o começo de um bom livro de psicologia, hoje ou em um futuro próximo. O insight de Samuel Morse destacado como prelúdio deste texto, mesmo sendo datado do século XIX, é provocante e inspirador ainda hoje. Praticamente qualquer sistema cognitivo atual (vivo ou não), usa eletricidade de alguma forma (do humano à computação em nuvem). A eletricidade dá suporte à condução de dados, ao processamento de informação e à integração de elementos de uma rede, seja uma rede de chips ou de células.
Uma dessas redes tem um interesse em especial para nós psicólogos, uma rede de células cuja capacidade se divide entre os desafios em escala global da vida moderna e o manejo das nossas necessidades mais elementares: o cérebro. Esse órgão misterioso que lida com a dicotomia existencial da humanidade do século XXI: Salvar o mundo ou fazer uma maratona de séries de TV?
O cérebro é um centro que integra e distribui sinais elétricos por todo o corpo humano e é, em si mesmo, uma rede complexa, especializada, plástica e dinâmica. Com um conjunto regular e razoavelmente conhecido de elementos básicos comuns, o cérebro é composto por camadas e estruturas que tem forma e função distintas, tem um metabolismo intenso e se modificam conforme nosso desenvolvimento e nossas experiências. Sustentamos a “gula energética” dessa rede porque ela nos tem grande serventia. Entre as mil e uma coisas que acontecem por lá encontram-se algumas das chaves dos processos que nos permitem sentir, pensar, nos emocionar, imaginar, delirar, alucinar, sonhar, etc.
Sabemos que o cérebro é composto por células chamadas neurônios e que esses neurônios se integram a partir de sinais químicos (e.g. os famosos neurotransmissores) e elétricos (e.g. o potencial de ação). Sim, elétricos. Cada neurônio tem um mecanismo elétrico sofisticado, capaz de conduzir um sinal preservando a maior parte da informação recebida. Além disso, esse mecanismo funciona com um limiar, abaixo do qual não há disparo. Quando o estímulo é igual ou superior ao limiar, o padrão de ativação – o disparo neuronal – ocorre de forma singular tal qual representado na figura abaixo.
Figura 1. Potencial de ação: ao receber um estímulo igual ou superior ao limiar de disparo, o neurônio abre seus canais de sódio e recebe um influxo de íons NA+. O influxo acelerado de íons Na+ despolariza a célula – aumenta potencial elétrico do neurônio. Essa despolarização atinge um limiar de teto que abre os canais de potássio – gerando um influxo de íons K+ – que repolarizam a célula levando seu potencial de membrana a um nível próximo ao potencial de disparo. Em decorrência da latência para o fechamento dos canais de potássio, a célula recebe mais íons K+ que íons NA+ e hiperpolariza. A hiperpolarização é revertida após o fechamento dos canais de K+ e assim o neurônio retorna ao estado de repouso. Extraído de http://salabioquimica.blogspot.com.br/2014/04/o-que-e-o-impulso-nervoso-potencial-de.html.
A regularidade nos padrões de disparo é a base da comunicação entre neurônios. Mas essa regularidade e padrões não são exclusivos desse nível celular. Populações inteiras de neurônios de uma mesma estrutura cerebral (e.g. neurônios do hipocampo, da amígdala, do córtex, do hipotálamo, etc.) podem disparar de forma sincronizada ou desajustada e assim sinalizar para uma outra população de neurônios mensagens distintas a respeito do que fazer em uma dada situação.
Se fôssemos capazes de observar os neurônios hipocampais associados a aprendizagem motora de um estudante de violino em suas primeiras lições, veríamos que essas células tendem a disparar de forma razoavelmente independente entre si. Contudo, se esse mesmo estudante nos convidar para uma segunda visita quando este for capaz de tocar para nós uma sonata, veríamos um padrão de disparo mais harmônico e interdependente para esta população de neurônios. Chocante? Mas não para por aí.
Imaginemos que nosso amigo violinista deseja aprender a tocar uma nova partitura e que aceitou que continuássemos a tomar nota das atividades de seus neurônios durante esse processo. Nosso amigo vai conosco a um laboratório apropriado para fazermos nosso registro e para que ele mesmo possa ter o devido conforto. Nesta nova tarefa, os neurônios de nosso amigo iniciam o disparo de forma mais dessincronizada em relação ao que tínhamos observado há pouco – ao menos nas primeiras tentativas. Todavia, após algum treino, nosso amigo volta a nos brindar com a harmonia de seus acordes e dos disparos de seus neurônios.
Numa pausa merecida de seu treino, nosso amigo cai no sono ainda no laboratório, e durante o seu sono podemos perceber que aquelas células que haviam sincronizado seu disparo durante o treino da nova partitura voltaram a disparar em sincronia em alguns momentos do sono do nosso amigo. Sim, mudanças de potencial elétrico acontecendo na ausência da situação treinada e com nosso amigo embalado no mais confortável sono. Aqui eu já soltaria um: “Uau!”. Mas não acabamos por aqui.
Durante o sono do nosso amigo, podemos perceber que não apenas aquelas células que estávamos observando, mas todo o cérebro do nosso amigo está diferente. As oscilações elétricas de cada estrutura encefálica mudam, e o cérebro como um todo manifesta ritmos regulares, mas distintos daqueles que poderíamos ver enquanto nosso amigo estava acordado. Estamos falando de estruturas com milhões ou talvez até bilhões de células. São bilhões de micro-baterias disparando de forma distinta. Quão difícil é imaginar que poderia haver algum ritmo regular entre elas? Algo que poderíamos representar num modelo tão simples quanto esse da figura abaixo.
Figura 2. A: os padrões de oscilação elétrica que podemos observar durante o sono. B: o diagrama identificando os diferentes tipos de sono durante uma noite, também chamado hipnograma. Extraído de http://slideplayer.es/slide/1058899/.
Olhando simples oscilações elétricas, pudemos identificar ritmos no cérebro. Esses ritmos podem ser identificados em canis iônicos e/ou células isolados, em populações neuronais, em grandes estruturas encefálicas (e.g. o hipocampo) e até mesmo no cérebro como um todo. É evidente que para cada nível de observação precisamos de instrumentos e ferramentas de análise que sejam capazes de lidar com as características do sinal emitido por cada objeto em estudo. A força do sinal do disparo de um neurônio não é a mesma do sinal registrado para uma região grande como o hipocampo ou amígdala, mas ao estudar o sinal de um ou alguns neurônios pode haver menos interferência de sinal do que ao observar a atividade de uma estrutura grande ou do cérebro inteiro.
Esses ritmos elétricos ocorrem naturalmente, mas sua frequência, duração e outras propriedades podem ser afetadas pelo engajamento do sujeito em uma tarefa intelectual ou durante uma experiência emocional, por exemplo (Frank, 2005; Ribeiro, Gervasoni & Nicolelis, 2005). E é aqui que a aventura começa!
Desde Skinner sabemos que respostas encobertas não explicam comportamento, mas são parte do que deve ser explicado (Skinner, 1990). Pois bem, expliquemos! Diversos são os trabalhos que identificaram relações entre mudanças nesses ritmos elétricos do cérebro e o comportamento. Esses trabalhos tratam de processos básicos de aprendizagem (cf. Colavito et al 2013) até o desenvolvimento de tecnologias para uso desses ritmos como parâmetro de controle de reações emocionais em contextos aplicados como o uso de neurofeedback (Holtmann et al 2014). Entretanto, temos uma pergunta a nos fazer: o que fazemos com esses ritmos em nossa análise do comportamento?
Penso que a resposta não esteja clara hoje. Talvez porque nós, analistas do comportamento, ainda tenhamos pouca familiaridade com os ritmos do cérebro e com o que o mundo “eletrizante” do cérebro pode nos dizer sobre nós mesmos. Sobre a regularidade dos nossos processos de percepção, aprendizagem, criatividade e possivelmente vários outros.
A eletrofisiologia nos confronta com evidências que corroboram a regularidade e previsibilidade dos fenômenos psicológicos. Mais uma prova de que lidamos com um fenômeno natural que – como tal – precisa de uma ciência natural que lide com ele. A ciência precisa e talvez exija da psicologia e da análise do comportamento modelos operacionais, testáveis, refutáveis e preditivos dos fenômenos que ela enxerga ao lidar com o universo elétrico do cérebro. Encaremos isso como um convite. Inspirados por Morse, vamos nos lançar na aventura de entender como a inteligência navega na corrente eletrizante dos neurônios.
Referências
Colavito, V. Fabene, P. Grassi-Zucconi, G. Pifferi, F. Lamberty, Y. Bentivlglio, M. Bertini, G. (2013). Experimental sleep deprivation as a tool to test memory deficits in rodents. Frontiers in Systems Neuroscience, 7, 106.
Frank, M. G. (2005). Sleep, Synaptic Plasticity, and the Developing Brain. In: Luppi, P. (Ed.). Sleep: circuits & functions. Boca Raton, FL: CRC Press.
Holtmann, M. Sonuga-Barke, E. Cortese, S. Brandeis, D. (2014). Neurofeedback for ADHD: a review of current evidence. Child and Adolescent Psychiatric Clinics, 23(4), 789-806.
Skinner, B. F. (1990). Can psychology be a science of mind? American Psychologist, 45, 1206-1210.
Ribeiro, S. Gervasoni, D. Nicolelis, M. A. L. (2005). Neuronal Reverberation and the Consolidation of New Memories across the Wake-Sleep Cycle. In: Luppi, P. (Ed.). Sleep: circuits & functions. Boca Raton, FL: CRC Press.