“Eu estou ao teu lado quando os tempos ficarem difíceis e amigos não puderem ser encontrados. (…). Quando tu estiveres arruinado, quando estiveres na rua, quando o anoitecer vier tão forte eu te confortarei. (…) Como uma ponte sobre águas turbulentas, eu aliviarei suas preocupações” (Bridge over Troubled Water, 1970)
Na canção Bridge over Troubled Water de 1970, Paul Simon descreve uma das facetas de um importante fenômeno social: a relação de intimidade, a qual nos leva a buscar algum tipo de conexão com outros. Como organismos sociais, estamos inseridos em um imenso mundo de interações com outros indivíduos. Fazemos parte de uma enorme comunidade e quase sempre estamos rodeados de pessoas. Mesmo assim é muito difícil estar e ser íntimo de outros, assim como é difícil estar realmente conectado com as necessidades e experiências mais essenciais do outro. Mostrar ao outro algo que nos é tão pessoal muitas vezes está tão associado ao medo de sermos punidos que raramente conseguimos “abrir” o que há de mais íntimo em nossa vida. Mas por que, muitas vezes, temos tanto medo da intimidade? Aliás, o que é ser íntimo, de acordo com uma conceituação analítico-comportamental? A Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) tem algumas reflexões sobre estas perguntas.
O engajamento em uma relação íntima está relacionado com desfechos como bem estar e felicidade, e a carência deste tipo de relação se relaciona com o desenvolvimento e a manutenção de diversos problemas clínicos, que vão desde quadros de ansiedade e depressão até transtornos por uso de substância (Pielage, Luteijn, & Arrindell, 2005; Tsai, Kohlenberg, Kanter, Holman, & Loudon, 2012). Embora tão importante, a intimidade é um processo comportamental que apresenta definições nem sempre tão claras, inclusive para terapeutas analíticos-comportamentais (Guenzen & Silveira, 2013). Deve-se salientar que mesmo que algumas vezes relacionada com a sexualidade e as relações amorosas, a intimidade não deve ser confundida com estas.
Apresentando grande importância nas relações familiares, amorosas e de amizade, a intimidade está intimamente (no sentido de próximo) relacionada à conexão interpessoal, a estar pessoalmente próximo de outra pessoa (Tsai et al., 2008). Cordova e Scott (2001) conceitualizaram funcionalmente intimidade como a exposição de comportamentos vulneráveis (por exemplo: demonstrar ou solicitar afeto, chorar na frente de outra pessoa, contar alguma história muito dolorosa, etc.) em um contexto que esta exposição é reforçada. Esta vulnerabilidade se dá em função de o comportamento em questão ter sido punido na história de vida do sujeito. Esta exposição envolve riscos, no entanto gera uma sensação de “proximidade” interpessoal e de “conexão”, na qual a relação se estreita com o aumento da frequência de comportamentos íntimos na díade envolvida (Cordova & Scott, 2001; Tsai et al., 2008). Esta relação passa a ser marcada por ser pouco coercitiva para comportamentos que foram coagidos, logo, a própria díade passa a ser reforçadora para os envolvidos.
Relações familiares, de amizade e a própria relação terapêutica podem ser exemplos de relações íntimas, assim como as relações amorosas (Tsai et al., 2008). O comportamento de intimidade pode assumir diferentes aspectos, tanto verbais quanto não verbais, se diferenciando de outros comportamentos semelhantes pela sua função. Algumas das topografias mais comuns são a auto-exposição de emoções negativas e positivas, o compartilhamento de memórias dolorosas e segredos, consolar, dar carinho, chorar no ombro de alguém e o sexo (Vandenberghe & Pereira, 2005).
Como muitos dos comportamentos íntimos tem na sua história punição, também é esperado que indivíduos tenham uma certa tendência a esquivar-se, fugir ou até mesmo atacar em algum contexto íntimo. No entanto, sujeitos com histórico de relações altamente punitivas e/ou abusadoras, em especial associadas a cuidadores próximos, tendem a apresentar inúmeras dificuldades relacionais e a sofrer com isto, e muitas vezes isto tende a acontecer cedo na vida (Tsai et al., 2008). A dor de estar em uma relação, em virtude das experiências punitivas, é tão grande que, muitas vezes, na primeira possibilidade de uma conexão maior o sujeito se escapa. Inúmeras vezes este padrão de esquiva não está tão claro, e não se sabe o que fazer. Grande parte da demanda clínica está associada às dificuldades com relações íntimas e é neste ponto que a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) mostra seu potencial (para uma revisão ler Villas-Boas, 2012).
A psicoterapia é um processo em que um sujeito abre a outra pessoa coisas bastante particulares guardadas a sete chaves, recebendo em troca atenção, cuidado e uma audiência não punitiva. É um espaço para que os clientes possam se arriscar a confiar em alguém, ensaiando, em um ambiente protegido, ações de intimidade. A FAP é uma modalidade de terapia analítico-comportamental cujo foco é justamente o desenvolvimento de uma relação pautada em atenção para cuidar e estar presente com o outro, coragem para expressar uma ação vulnerável e amor para responder naturalmente de uma maneira reforçadora a estas ações vulneráveis (Tsai et al., 2008). Comportamentos clinicamente relevantes de esquiva da intimidade (neste caso CCR1) vão aparecer em algum momento na terapia, e um terapeuta que provê cuidado tenderá a responder a qualquer ação vulnerável (CCR2) reforçando-a de forma natural. Este processo de modelagem tem como objetivo desenvolver uma relação terapêutica bastante próxima, espaço “sagrado” de treino de ações de intimidade para que o cliente consiga generalizar este padrão em suas relações interpessoais. Na FAP, o terapeuta também pode utilizar-se de suas próprias autorrevelações vulneráveis para fomentar o desenvolvimento desta relação. A resposta do cliente a estas também é importante, visto ser a intimidade um processo bilateral (Guenzen & Silveira, 2013; Tsai et al., 2008; Vandenberghe & Pereira, 2005).
Mostrar-se vulnerável a qualquer um é bastante arriscado, quiçá a um estranho, como um terapeuta; no entanto o próprio ato de pedir ajuda já é uma conduta vulnerável. E é justamente o cuidado do terapeuta ao saber que essa tomada de risco, pelo cliente, é difícil e por vezes dolorosa que faz com que se desenvolva o apego da relação terapêutica. Dois organismos estranhos se relacionando na presença de inúmeros medos de serem punidos por esta abertura. Este ingrediente compassivo, evocativo e reforçador da FAP é o que possibilita com que os clientes possam desenvolver e aprimorar as habilidades necessárias para que “possam recuperar sua vida cotidiana de intimidade” (Tsai et al., 2008, p. 142). Para tal, o próprio terapeuta também deve desenvolver suas habilidades de intimidade, assumindo riscos em sua vida pessoal e desenvolvendo suas próprias relações e habilidades relacionais. O benefício será tanto pelo aprimoramento profissional, quanto pessoal. Desta forma, gostaria de propor um exercício ao leitor: escolher ao menos uma pessoa próxima, alguém que você gostaria de ter um pouco mais de proximidade, e tomasse alguma ação vulnerável que fosse um pouco além da zona de conforto, mas ainda mantendo o autocuidado, de forma compassiva e amorosa. A partir disso, observe os resultados desta ação; e não desista caso não dê certo. Lembre-se que muitas outras vezes ações vulneráveis foram punidas, e a intimidade nasce justamente de ações que um dia foram punidas. E conte-nos o resultado deste exercício!
Referências
Cordova, J. V., & Scott, R. L. (2001). Intimacy: A behavioral interpretation. The Behavior Analyst, 24(1), 75–86.
Guenzen, L. de C., & Silveira, J. M. (2013). Intimidade na relação terapêutica: Uma caracterização da palavra por terapeutas analítico-comportamentais. Psicologia Argumento, 31(74), 547–559. http://doi.org/10.7213/psicol.argum.31.074.AO09
Pielage, S. B., Luteijn, F., & Arrindell, W. A. (2005). Adult attachment, intimacy and psychological distress in a clinical and community sample. Clinical Psychology & Psychotherapy, 12(6), 455–464. http://doi.org/10.1002/cpp.472
Simon, P. (1970). Bridge over Troubled Water. Columbia Records.
Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Holman, G. I., & Loudon, M. P. (2012). Functional Analytic Psychotherapy: Distinctive Features. Routledge.
Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follette, W. C., & Callaghan, G. M. (2008). A Guide to Functional Analytic Psychotherapy: Awareness, Courage, Love, and Behaviorism. Springer Science & Business Media.
Vandenberghe, L., & Pereira, M. B. (2005). O papel da intimidade na relação terapêutica: uma revisão teórica à luz da análise clínica do comportamento. Psicologia: teoria e prática, 7(1), 127–136.
Villas-Boas, A. (2012). Psicoterapia Analítica Funcional (FAP): lidando com o cliente em sessão. Recuperado de https://comportese.com/2012/10/psicoterapia-analitica-funcional-fap-lidando-com-o-cliente-em-sessao/