Psicoterapia Analítica Funcional (FAP): lidando com o cliente em sessão

Miguel chegou à supervisão daquela semana bastante angustiado… precisava falar sobre o que tinha acontecido na última sessão com seu cliente, mas ao mesmo tempo queria evitar ao máximo que esse momento chegasse. Enquanto esperava sua vez de falar sobre o caso, não conseguiu se concentrar nas falas dos colegas, conseguia apenas fazer uma espécie de retrospectiva sobre o que vinha acontecendo com seu cliente. Lembrou-se que, há duas semanas, discutiu com seu supervisor o fato de seu cliente não apresentar nenhum espírito crítico, aceitava que as pessoas fizessem com ele o que quisessem, agindo de forma bastante passiva na maior parte das situações. Parecia que as pessoas estavam constantemente tirando proveito do cliente. Na sessão seguinte a essa supervisão, Miguel falou abertamente com o cliente sobre esse repertório, mostrando como as pessoas “se aproveitavam” dele. Apesar de ter tido receio de “pegar pesado” com o cliente mostrando claramente tais situações, Miguel estava tranquilo de que a sessão correria bem, pois o cliente em geral aceitava bem as análises e intervenções feitas e saia agradecido da sessão. Foi exatamente isso que aconteceu, o cliente ouviu o que Miguel tinha a dizer, explicitou concordar com alguns pontos e saiu, apesar de abalado com a realidade, satisfeito com a sessão. Na supervisão seguinte a essa sessão, Miguel apenas disse ao supervisor que tudo havia corrido bem e que nem precisavam tomar tempo da supervisão com seu caso, já que havia outros a serem discutidos. O supervisor concordou e seguiram em frente. Porém, na última sessão, tudo havia mudado. O cliente, que sempre foi calmo, chegou ansioso e quando Miguel falou sobre essa ansiedade, sentiu que as coisas fugiram do controle… repassou em seus pensamento o diálogo que se seguiu: 
Miguel (M): Estou notando que você está diferente hoje, parece mais agitado do que de costume… aconteceu algo diferente?
Cliente (C): É… então… estou chateado… e ansioso… mas deixa pra lá.
M: Hummm… essa chateação e ansiedade podem ser importantes. Será que você não consegue identificar o que o está deixando assim?
C: É… bem… na verdade, eu até sei… mas não sei se devo falar…
M: Tenta, talvez eu possa ajudar…
C: Hummm, bem… bom… vou tentar… é sobre nossa última sessão. Fiquei bastante incomodado quando você falou sobre minha passividade… até vejo que é verdade em muitos momentos o que você descreveu, mas senti que você jogou um monte de coisas doloridas no meu colo sem me dar tempo para digerir cada uma delas. Saí daqui bastante mal, na verdade… pensando como sou sempre bobo com as pessoas e me sentindo um lixo…
M: Nossa… peço desculpas pelo ocorrido… em momento algum quis fazer você se sentir mal… achei que era importante eu levantar aquelas questões com você, mas vejo que exagerei… devia ter ido mais devagar.
O cliente aceitou as desculpas de Miguel e mostrou-se, na verdade, alivado. E quis falar de outras coisas que haviam acontecido durante sua semana.
Agora, enquanto Miguel esperava para falar de seu caso a seu supervisor, estava muito ansioso, querendo ao máximo evitar ter que falar a bobagem que havia feito, ao ter exagerado nas análises feitas com seu cliente. Finalmente o momento chegou e Miguel relatou tudo o que havia acontecido nas últimas semanas. Ao terminar, seu supervisor sorriu e perguntou se Miguel não percebia o que tinha ocorrido. Todas as respostas de Miguel iam ao sentido de se criticar e se justificar pela forma como agiu até que seu supervisor o interrompeu e perguntou:
Supervisor (S): Qual foi mesmo o repertório do cliente sobre o qual você falou de forma pesada demais?
M: Você sabe, sobre ser muito passivo, aceitar tudo o que lhe falam sem questionar ou reclamar.
S: E como ele saiu ao final dessa sessão?
M: Saiu bem… não parecia chateado com minhas análises… 
S: E o que foi que ele fez na sessão seginte com você?
Foi então que Miguel percebeu com clareza o que tinha acontecido… a reclamação de seu ciente sobre como Miguel havia agido era na verdade o repertório que Miguel esperava de seu cliente nas suas relações cotidianas. Expressar suas opiniões, desejos e vontades, correndo o risco de chatear o outro, ou seja, deixar de aceitar tudo o que lhe faziam, sem reclamar. Na discussão da supervisão, Miguel contou como o cliente lhe era agradável desde sempre (assunto esse que nunca julgou importante falar) e ao discutirem, percebeu que cada concordância do cliente com as análises anteriores de Miguel podiam ser realmente concordâncias, mas podiam ser também as dificuldades do cliente em se expressar, acontecendo na própria relação terapêutica. Toda a docilidade que fazia Miguel gostar tanto de seu cliente poderia ser, na verdade, as dificuldades do cliente ocorrendo na relação com seu terapeuta, da mesma forma como agia com as pessoas em seu dia a dia, simplesmente aceitando tudo o que lhe diziam.

A Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) tem o objetivo de trabalhar as dificuldades do cliente que ocorrem na própria relação terapêutica. Para isso, tem seu foco na análise dos comportamentos do cliente que ocorrem dentro da sessão, definindo-os como Comportamentos Clinicamente Relevantes (CCR). Os CCRs podem ser de três tipos: CCR1 – comportamento problema; CCR2 – comportamento de melhora; e CCR3 – comportamento de análise (Kohlenberg & Tsai, 1991/2001; Tsai et al., 2009/2011; Tsai, Kohlenberg, Kanter, Holman, & Loudon, 2012) – para mais detalhes sobre CCRs, clique aqui. Além dos comportamentos do cliente, a FAP define alguns dos comportamentos do terapeuta para facilitar a compreensão de como trabalhar com os CCRs, numerando algumas regras (Kohlenberg & Tsai, 1991/2001; Tsai et al., 2009/2011; Tsai, et al., 2012).
Regra 1 – estar atento aos CCRs. Essa primeira regra diz respeito à atenção que o terapeuta deve ter na sessão, identificando os CCRs do cliente que ocorrem naturalmente durante a sessão. O terapeuta deve buscar dentro da sessão, portanto, por paralelos funcionais com os comportamentos relevantes que ocorrem fora da sessão (paralelos de fora-para-dentro). Desse modo, os CCRs observados em sessão, devem ser funcionalmente semelhantes (e não necessariamente topograficamente) aos comportamentos relevantes que ocorrem fora da sessão. 
Regra 2 – evocar CCRs. Diz respeito à importância de criar situações, dentro da sessão, que favoreçam a ocorrência das dificuldades e principalmente das melhoras do cliente. Ajudando o cliente a emitir com o terapeuta os CCRs para que eles possam ser trabalhados. Essa regra fala, na verdade de coragem, pois evocar tais comportamentos em sessão não é tarefa fácil. Emissões de CCRs são, em geral, acompanhados de emoções, muitas vezes intensas e desagradáveis, que trazem incômodos e também exigem coragem do cliente que está tentando agir diferente (no caso do CCR2). Desse modo, evocar CCRs significa provavelmente evocar toda essa carga emocional que o acompanha, que é necessária, mas possivelmente assustadora.
Regra 3 – consequenciar adequadamente os CCRs. Essa regra foca na forma como o terapeuta deve reagir aos CCRs dos clientes. Deve-se tomar cuidado para não reforçar CCR1s e ter as habilidades necessárias para reforçar CCR2s. É muito importante ressaltar que o reforço a CCR2 deve ocorrer de forma natural, da forma como ocorreria em interações socias não terapêuticas, evitando-se ao máximo, qualquer tipo de reforçamento arbitrário, artificial, que não ocorreria em situações da vida do cliente. Além disso, deve-se estar atento para pequenas melhoras que os clientes possam apresentar e não apenas esperar o comportamento final desejado. Muitas vezes melhoras ocorrem aos poucos, e cabe o terapeuta modelá-las, reforçando aproximações sucessivas ao comportamento esperado. Tal reforço, por sua vez, envolve repertórios importantes do terapeuta, como uma genuína vontade de ajudar o cliente e profunda empatia.
Regra 4 – estar atento ao efeito do seu comportamento sobre o cliente. É importante prestar atenção ao comportamento do cliente em resposta ao comportamento do terapeuta. Verificar se os CCRs aumentam ou diminuem de frequência frente às consequências providas pelo terapeuta, a fim de verificar se de fato os CCRs estão sendo consequenciados de forma adequada.
Regra 5 – promover estratégias de generalização, levando as melhoras obtidas em sessão para fora da sessão. Atualmente essas estratégias vêm sendo descritas de duas formas: (1) analisar funcionalmente os comportamentos do cliente que ocorrem dentro e fora de sessão, sendo a estratégia mais poderosa a realização de paralelos funcionais entre as interações ocorridas em sessão para situações fora de sessão (paralelos de dentro-para-fora); (2) sugerir tarefas de casa que ajudem a implementar as melhoras do cliente em seu dia-a-dia. 
No caso do terapeuta Miguel relatado acima, podemos observar que a Regra 1 não foi realizada de imediato, pois Miguel não reconheceu que a forma agradável do cliente agir era, na verdade, um CCR1, uma forma de agradar as pessoas em detrimento de suas vontades. Porém, mesmo sem perceber, Miguel acabou por se comportar de forma semelhante ao que a FAP prevê. Ao levantar com o cliente um excesso de análises dolorosas, mesmo que de forma exagerada e provavelmente não muito adequada, ele estava agindo de forma semelhante ao previsto pela Regra 2, que acabou por evocar mais CCR1s no comportamento do cliente (saiu quieto da sessão, apesar de seu incômodo). Na sessão seguinte, ao se deparar com a ansiedade do cliente, perguntar e insistir para que este falasse sobre ela, Miguel estava novamente comportando-se de acordo com a Regra 2, o que culminou na evocação de um CCR2 (falar sobre o que havia lhe incomodado). Provavelmente o cliente só conseguiu falar sobre seus incômodos com Miguel, porque a relação terapêutica era sentida como segura para o cliente, um ambiente no qual ele pode tentar agir de forma diferente do que normalmente faz e tentar estratégias novas para solucionar seus problemas. Isso mostra a relação terapêutica sendo vivida e uma forma real e importante para o cliente, capaz de trazer impasses que precisam ser solucionados e riscos que podem ser corridos. Por sua vez, quando Miguel se desculpou com o cliente de forma genuína, mostrando sua preocupação em tê-lo machucado, estava agindo de forma semelhante ao que prevê a Regra 3 (reforçando naturalmente o CCR2 do cliente), simplesmente por aceitar que tal reclamação seja feita, ainda mais o sendo da forma adequada como foi. Possivelmente teria sido ainda mais reforçador se Miguel tivesse mencionado como era importante esse feedback do cliente, a fim de saber os limites de até onde ir com suas análises e mencionar que tentaria tomar mais cuidado no futuro. Possivelmente essa resposta seria mais provável, caso Miguel tivesse a consciência do CCR2 que estava sendo emitido pelo cliente naquele momento. Mas mesmo sem isso, o cliente apresentou alívio. Conseguir reconhecer esse alívio e um aumento de interações desse tipo, seria realizar a Regra 4. Por fim, se Miguel tivesse sido capaz de analisar com seu cliente toda essa interação, descrevendo o comportamento de ambos e suas consequências e conseguindo fazer paralelos com as situações fora de sessão (Regra 5), ele estaria aumentando a probabilidade do cliente apresentar o repertório de melhora em sua vida cotidiana. Vale apontar que as Regras 4 e 5 não precisariam ser necessariamente realizadas na mesma sessão em que as primeiras ocorreram, pode ser de grande valia em algumas situações esperar até a próxima sessão devido à forte carga emocional que pode acompanhar essa interação (Weeks, Kanter, Bonow, Landes & Busch, 2012).
As regras da FAP podem auxiliar na organização do raciocínio e do repertório a ser utilizado para se lidar com os CCRs do cliente, tornando tais interações poderosas e levando a melhoras reais do cliente. Tais regras devem ser usadas imersas na intimidade existente entre terapeuta e cliente, para que essa interação não deixe de ser natural e genuína. Além disso, o terapeuta não deve se deixar tomar por regras rígidas do que deve fazer, mas compreender que também as regras descrevem funcionalmente o que deve ser feito, de modo que deve seguir o recomendado sem deixar seu próprio repertório de lado, afinal, cada relação terapêutica é completamente idiossincrática. Essa tarefa não é fácil e necessita de algum treino por parte do terapeuta para que ele consiga olhar para toda a interação ocorrendo no aqui e agora, evitando que suas próprias dificuldades atrapalhem o processo. A verdade é que muito do que o terapeuta FAP deve fazer em sessão vai muito além das 5 regras acima, envolve também habilidades geralmente difíceis de serem descritas. Mais será discutido sobre isso em futuras publicações dessa coluna. 

Referências

Kohlenberg, R. J., & Tsai, M. (2001). Psicoterapia Analítica Funcional (F. Conte, M. Delliti, M. Z. Brandão, P. R. Derdyk, R. R. Kerbauy, R. C. Wielenska, R. A. Banaco, R. Starling, trads.). Santo André, SP: ESETEc (Obra publicada originalmente em 1991).
Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Holman, G. I., & Loudon, M. P. (2012). Functional Analytic Psychotherapy. Cornwall: TJ International Ltd.
Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follete, W. C., & Callaghan, G. M. (2011). Um guia para a Psicoterapia Analítica Functional (FAP): consciência, coragem, amor e behaviorismo (F. Conte, & M. Z. Brandão, trads.). Santo André, SP: ESETEc (Obra publicada originalmente em 2009). 
Weeks, C.E., Kanter, J.W., Bonow, J.T., Landes, S.J., Busch, A.M. (2012). Translating the Theoretical Into Practical: A Logical Framework of Functional Analytic Psychotherapy Interactions for Research, Training and Clinical Purposes. Behavior Modification, 36(1), 87-119. DOI: 10.1177/0145445511422830
5 3 votes
Article Rating

Escrito por Alessandra Villas-Boas

Possui graduação em Psicologia (2003) e mestrado em Psicologia Experimental, ambos pela Universidade de São Paulo (2006), tendo o último recebido menções de distinção e Louvor pela banca examinadora. Tem experiência na área clínica, tendo trabalhado com atendimento infantil, de adulto, de casal, orientação profissional e como supervisora; experiência em docência universitária, tendo ministrado disciplinas de Análise do Comportamento; e experiência como acompanhante terapêutico. É Coordenadora Editorial do Boletim Contexto, uma publicação da ABPMC. Atualmente, é doutoranda no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo, investigando experimentalmente os mecanismos de ação da Psicoterapia Analítica Funcional (FAP), além de investigar suas formas de ensino e formação.

[Entrevista Exclusiva] – Profa. Giovana Munhoz da Rocha – XXI Encontro da ABPMC

Crianças aprendem e pensam como cientistas, segundo pesquisa