O Mentir: Visão Analítico-Comportamental à luz do Comportamento Verbal

O comportamento pode ser definido como a inter-relação do organismo com o seu meio (Watson, 1914; Keller & Schoenfeld, 1966), por não poder ser estudado como um aspecto separado do organismo que se comporta em um determinado contexto. E o comportamento operante, por sua vez, é um comportamento que opera no meio e é por ele operado. Em outras palavras, é um comportamento que gera controle sobre o meio e é por ele controlado (Skinner, 1938; 1953; 1957; 1963; 1969; 1974; 1984, etc). Além disso, Skinner (1953) define o comportamento como sendo algo mutável, fluido e evanescente, justamente porque o indivíduo que se comporta é sensível às contingências e às consequências de seu comportamento.

Salientemos uma das classes de comportamento operante: o comportamento verbal. Skinner (1957) o define como sendo um comportamento operante como qualquer outro, mas com dois aspectos adicionais: 1) tendo que, necessariamente, ser mediado por um ouvinte e 2) esse ouvinte deve ter sido previamente treinado pela comunidade verbal em que está inserido para fazer tal mediação (Vargas, 1982, 2007; Catania, 1986, 1999; Hübner & Moreira, 2012; Hübner, 2013). Sendo assim, Skinner, no Verbal Behavior (1957) categoriza os operantes verbais: mando, ecoico, textual, intraverbal e tato, além do autoclítico.
Um mando é definido por Skinner (1957) como um operante verbal que não possui um estímulo antecedente específico, sendo determinado por uma condição de privação ou de contingências aversivas em que o falante está inserido. Além disso, o mando tem a peculiar característica de especificar seu reforçamento (“passe o sal para mim?” é um exemplo de mando).

Os operantes ecoico, textual e intraverbal são operantes que têm um controle de estímulo antecedente verbal (Skinner, 1957; Abreu & Hübner, 2012; Hübner & Medeiros, 2012; Hübner, 2013). Os comportamentos ecoico e textual são similares no sentido de a resposta verbal ter correspondência ponto a ponto com o estímulo antecedente. Grosso modo, eles diferem apenas em dimensão (Skinner, 1957). Enquanto o ecoico possui dimensão vocal, tanto em estímulo como resposta, o textual possui dimensão escrita (impresso-motora). Um exemplo de comportamento ecoico é dado por uma mãe que está ensinando um filho a falar uma nova palavra: “bola” e a criança repete vocalmente “bola”. O mesmo acontece com o comportamento textual, porém, de maneira escrita, o estímulo antecedente verbal “BOLA” é escrito pelo sujeito correspondendo ponto a ponto: “bola”.

Já o intraverbal não possui correspondência ponto a ponto entre estímulo antecedente e resposta. Por esse motivo, Skinner (1957) aponta que o operante intraverbal permite as quatro combinações entre estímulo vocal e impresso e resposta vocal e motora. Abreu e Hübner (2012) apontam que o operante intraverbal é muitas vezes ocasionado por perguntas, e envolvem fenômenos mnemônicos. Entretanto, um exemplo mais simples é dado por Skinner (1957) em que o estímulo é “2+2=” e a resposta que seria reforçada é “4”, evidenciando a não correspondência ponto a ponto entre estímulo antecedente e resposta verbal.
O tato, como destacado por Skinner (1957), é considerado o operante verbal mais importante que existe justamente pelo controle de estímulo antecedente, que é não verbal. Ou seja, um estímulo não verbal (que pode ser tanto externo como interno[1]), é a ocasião na qual uma dada resposta verbal é reforçada pelo ouvinte. Mas o controle de estímulo deve ser específico para que isso ocorra: somente na presença de um cachorro a resposta verbal “cachorro” será reforçada e somente na presença de um pássaro a resposta “pássaro” será reforçada.

No caso do autoclítico, muito estudado por Martha Hübner ultimamente, em parceria com outros autores (2008; 2012; 2013, por exemplo) é definido por ela como um operante verbal de segunda ordem, justamente por depender ou se fundamentar em outro comportamento verbal. Segundo Hübner (2013), os autoclíticos se dividem principalmente em descritivos, qualificadores e quantificadores, além de poderem ser agrupados em dois grandes grupos, que são os autoclíticos de mando e de tato, de acordo com a origem dos controles antecedentes.

Ok. Mas por que dissemos tudo isso? Para que possamos compreender a mentira. Como a Análise do Comportamento entende o comportamento de mentir? Para autoras como Hübner, Rocha e Zotto (2010) e Rocha (2013), a compreensão do que é comportamento operante e quais são as contingências verbais que a definição skinneriana de comportamento verbal contempla é indispensável para que se entenda o comportamento de mentir.

Segundo Hübner et al (2010) e Pergher e Sadi (2003), a mentira, numa perspectiva analítico-comportamental, deve ser estudada levando em consideração as definições de tato e mando, além da correspondência entre dizer e fazer. Acrescido a isso, Parsons (1989) destaca que se deve considerar os fenômenos de controle envolvidos no episódio verbal total.

Skinner (1957) dá uma deixa para o estudo da mentira quando diz que uma resposta verbal pode ou não ser fidedigna à estimulação antecedente que a ocasiona, como corroboram Hübner et al (2010), Pergher e Sadi (2003) e Rocha (2013), principalmente no que concerne ao comportamento de tatear (Parsons, 1989). Ou seja, o estudo do mentir envolve o falar sobre algo que não aconteceu ou falar sobre algo que aconteceu, mas de forma distorcida, não coerente: “quem conta um conto, aumenta um ponto” (entretanto, não devemos confundir o falar sobre algo que não aconteceu com as tramas fictícias do mundo do teatro e dos filmes).

Também temos como falar do mentir sob o foco do que Oliveira e Amaral (2009) apontam como tato distorcido, em que uma resposta verbal é incoerente com o estímulo antecedente, seja por condicionamento “mal feito” ou generalização deficitária, de modo que o tato poderia adquirir a função de mando, por exemplo, se uma criança fosse consequenciada com o reforçamento específico, como quando ela simplesmente diz “bola” e lhe entregam uma bola, como se ela tivesse pedido pela bola.

Desse modo, a mentira poderia ser considerada um operante verbal que não tem relação coerente com a estimulação que a precede, não tendo correlação com a realidade [ou tendo uma correlação distorcida com a realidade, como vimos acima] (Stouthamer-Loeber, 1986), podendo ter diversas funções, de reforçar e ser reforçada positiva ou negativamente (na mentira “leve” ou “branca”) por outrem e/ou infringir danos, dissimular, enganar outrem (Hübner et al, 2010; Rocha, 2013).

A mentira “leve” poderia ter como exemplo: “você foi ótimo declamando sua poesia no festival da escola”, mesmo que o sujeito, na verdade, tenha gaguejado e ficado nervoso e não tenha tido um desempenho tão bom. E também, poderíamos dar o exemplo do se livrar de uma estimulação aversiva (que tem relação com a definição de mando, como vimos): “não foi eu quem quebrou seu vaso! Eu nem estava perto dele!” mesmo que tenha sido. Já um exemplo de mentira danosa pode ser o que a lei reconhece como falso testemunho ou quando você fala alguma coisa de alguém com a intenção de prejudicá-lo. Disso, podemos ver exemplos nas novelas da TV, como quando o vilão incrimina o mocinho para que ele não consiga realizar seus objetivos ou ficar com o amor que tanto deseja.

O mentir, assim, pode impedir o desenvolvimento de habilidades sociais (Stouthamer-Loeber, 1986); tem relação também com o comportamento não verbal, como salienta Ekman (1988), embora aponte que não há padrões globais que evidenciem claramente a mentira no sujeito (por exemplo, todo virar de olho, para esquerda e para baixo, indica que o sujeito está mentindo ou distorcendo um fato). Estudos de Martha Hübner (2008, 2013, por exemplo) fazem correlação dos autoclíticos com comportamentos não verbais. Talvez o estudo da mentira por esse foco também poderia se mostrar interessante.

Referências

Abreu, P. R.; Hübner, M. M. C. (2012) O comportamento verbal para B. F. Skinner e para S. C. Hayes: uma síntese com base na mediação social arbitrária do reforçamento. Acta Comportamentalia, Guadalajara, v. 20, n. 3, pp. 367-381.

Catania, A. C. (1986) On the difference between verbal and nonverbal behavior. The Analysis of Verbal Behavior, v. 4, pp. 2-9.

Catania, A. C. (1999) Aprendizagem – Comportamento, Linguagem e Cognição. 4 ed. Porto Alegre: Artmed.

Ekman, P. (1988) Lying and Nonverbal Behavior: Theoretical Issues and New Findings. Journal of Nonverbal Behavior, v. 12, n. 3, pp. 163-175.

Hübner, M. M. C.; Austin, J.; Miguel, C. F. (2008) The Effects of Praising Qualifying Autoclitics on the Frequency of Reading. The Analysis of Verbal Behavior, v. 24, pp. 55-62.

Hübner, M. M. C.; Moreira, M. B. (2012) Temas Clássicos da Psicologia sob a ótica da Análise do Comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.

Hübner, M. M. C.; Rocha, G. M.; Zotto, L. L. S. (2010) Mentira. In Gomide, P. I. C. Comportamento Moral: Uma proposta para o desenvolvimento das virtudes. Curitiba: Juruá.

Hübner, M. M. C. (2013) Comportamento Verbal de Ordem Superior: Análise Teórico-Empírica de Possíveis Efeitos de Autoclíticos sobre o Comportamento Não Verbal. Tese de Livre-Docência apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP.

Keller, F. S.; Schoenfeld, W. N. (1966) Princípios de Psicologia. São Paulo: E. P. U.

Oliveira, W.; Amaral, V. L. A. R. (2009) O que se faz e o que se diz: auto-relatos emitidos por terapeutas comportamentais. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, Campinas, v. XI, n. 1, pp. 132-153.

Parsons, H. M. (1989) Lying. The Analysis of Verbal Behavior, v. 7, pp. 34-37.

Pergher, N. K.; Sadi, H. M. (2003) Verdade e Mentira sob o ponto de vista da Análise do Comportamento. In Sadi, H. M.; Castro, N. M. S. Ciência do Comportamento: Conhecer e Avançar, v. 3. São Paulo: ESETec.

Rocha, G. V. M. (2013) Comportamento Antissocial: Psicoterapia para Adolescentes Infratores de Alto Risco. Curitiba: Juruá.

Skinner, B. F. (1938) The Behavior of Organisms. Cambridge: B. F. Skinner Foundation.

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Vargas, E. A. (2007) O Comportamento Verbal de B. F. Skinner: uma introdução.Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, Belo Horizonte, v. IX, n. 2, pp. 153 – 174.

Watson, J. B. (1914) Behavior. New York: Henry Holt and Company.


A leitura do que Skinner (1974; 1969) diz sobre a estimulação interoceptiva, proprioceptiva e exteroceptiva se faz valiosa para a compreensão do que queremos dizer por estímulo não verbal externo e interno.

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Classificação do artigo

Escrito por Renan Miguel Albanezi

Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário Cesumar (UniCesumar), especialista em Análise do Comportamento e Psicoterapia Cognitivo-Comportamental pelo Núcleo de Educação Continuada do Paraná (NECPAR) e em Terapia Comportamental pela Universidade de São Paulo (USP). Tem como principais áreas de estudo o Behaviorismo Radical e a Análise do Comportamento com interesse em comportamento verbal, agências controladoras do comportamento, psicoterapia comportamental e psicoterapia analítica funcional.

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