Somebody That I Used To Know (Gotye feat. Kimbra): Uma análise com foco nas relações amorosas e no comportamento verbal

Em 2009, Córdova e Medeiros apresentaram no XVII Encontro Brasileiro de Psicoterapia e Medicina Comportamental, um simpósio com análises comportamentais de um livro de poemas de Hilda Hilst e de letras de músicas populares como, Pretinha (Seu Jorge), Boys Don’t Cry (The Cure) e Samba de um Grande Amor (Chico Buarque de Holanda). Essa análise foi feita com foco no comportamento verbal e nas relações amorosas, se mostrando proveitosa em dois sentidos. Em primeiro lugar, ilustrou a aplicabilidade dos conceitos comportamentais para descrever o comportamento artístico e, em segundo lugar, foi possível discutir as relações funcionais sugeridas pelos autores das obras. Não resta dúvida de que a arte é uma forma de relatar as regularidades da natureza. A despeito de não contar com a confiabilidade obtida com o rigor metodológico e com a linguagem precisa, permite revelar aspectos e nuances dos fenômenos descritos que escapam do discurso científico.

Além dos fatores descritos acima, a análise de produções artísticas como a proposta do livro Skinner vai ao Cinema, organizado por de Farias e Ribeiro (2010), por exemplo, possui forte apelo entre os estudantes, contribuindo para a disseminação da Análise do Comportamento. Com base nas ponderações acimas, análises de produções artísticas são pertinentes e devem merecer a dedicação de tempo dos analistas do comportamento.
Em 2011, o músico Belgo-Australiano Gotye, em parceria com a neo-zelandesa Kimbra, gravou a canção “Somebody I Used to Know”, que atingiu grande popularidade em todo o mundo. Além de tratar de um tema corriqueiro nas relações amorosas, possui um ritmo incomum e um videoclipe criativo, o que provavelmente atraiu a atenção dos consumidores musicais. A despeito dos aspectos inovadores no ritmo e no clipe, a letra reporta um evento comum nas relações amorosas: como fica a relação depois de um término. Por questões de espaço, não foi transcrita a letra original e a tradução aqui, clique nesse link para ter acesso: http://letras.mus.br/gotye/1922385/#traducao
Visão Geral da Letra:
            A letra consiste em um diálogo em 1ª pessoa entre um casal. Isto é, os versos são dirigidos um ao outro. Existe uma ampla predominância de falas do ex-namorado em detrimento de falas da ex-namorada (como serão chamados daqui em diante). Na realidade, o ex-namorado inicia a música relatando o início do relacionamento, o quanto gostaram um do outro e o processo de rompimento. No refrão, o ex-namorado queixa-se da reação dela ao rompimento, tratando-o como qualquer conhecido, e não como alguém quem amara e tivera um relacionamento. Na única fala da ex-namorada, ela argumenta quão injusta é a reclamação dele e que, de fato, o ex-namorado, pelos seus comportamentos durante o relacionamento, não mereceria tal consideração.

Análise do comportamento do ex-namorado:
Não Gosto Mais de Você:
            Dois versos na fala do ex-namorado ao longo da música entram na categoria “Não gosto mais de você”, que poderia se definida como descrições de que a relação não seria mais reforçadora para um dos ex-namorados. Os dois versos têm topografia de tato: “But I’ll admit that I was glad that it was over” (“Mas eu admito que fiquei satisfeito que o relacionamento tenha acabado”) e “and I don’t even need your love” (“E eu nem preciso mesmo do seu amor”). Entretanto, talvez a função não seja meramente relatar seus sentimentos, o que faria com que esses versos não pudessem ser classificados como tatos puros.
Fica claro que a postura da ex-namorada após o término foi aversiva para ele. Tal atitude pode exercer funções estabelecedoras ao tornar o sofrimento dela reforçador. Desse modo, esses versos poderiam ser encarados como respostas verbais manipulativas tendo sua topografia determinada pelas suas consequências e não pelos estímulos antecedentes.

Tomando-se a música de forma geral, esses versos podem ter função também de sinalizar que as reclamações não seriam porque ele ainda gosta dela e a quer de volta, e sim, porque ele não considera correto agir desse modo após o rompimento do relacionamento. O que o leva fazer questão de deixar isso claro? Isto é, o que torna tão aversivo o fato de ela achar que ele ainda gosta dela?

Aparentemente a reação que ela teve ao término foi uma forma de rejeição. Talvez em relacionamentos passados, fosse comum as ex do ex-namorado manterem contato, tentarem evitar o fim definitivo com esse contato, sinalizarem que não poderiam viver sem ele, que ele era especial e coisas do gênero. A reação dela, desse modo, mostrou para ele que não era tão bom namorado, tão bom amante, tão irresistível ou tão marcante em sua vida etc. Admitir que o incômodo com a reação dela foi por isso, seria demonstrar muita insegurança. Demonstrar que ainda sente alguma coisa por quem o rejeitou seria demonstrar fraqueza. Os rótulos “fraco” e “inseguro” provavelmente seriam muito aversivos para ele. Por isso, seria fundamental queixar-se do modo que ela lidou com o término enfatizando que não gostava dela.

            É improvável que o ex-namorado faça isso tudo com autoconhecimento (Skinner, 1953/2000; Medeiros & Rocha, 2004). Afinal, reconhecer todas essas motivações para si mesmo também seria muito aversivo. Logo, é provável que ele, se solicitado a explicar porque fez questão de dizer duas vezes que não gostava mais dela e do relacionamento, responda que simplesmente estava relatando o que sentia ou, no máximo, que disse isso para que ela não achasse que ele gostaria de retomar o relacionamento.

Mas enfim, ele gostava dela mesmo ou não? Será que realmente ele ficou feliz com o rompimento?

            Para a presente análise, parece que a resposta é sim para as duas perguntas. Ao dizer que ficou feliz com o rompimento e que não precisava de seu amor não parece que o ex-namorado esteja emitindo tatos distorcidos. Ou seja, dizendo que não gosta quando na verdade gosta dela e a quer de volta ao dizer o contrário. É mais provável que, mesmo não querendo mais estar com ela ou não precisando do seu amor, seria reforçador para ele que ela fornecesse indícios de que ainda gosta dele, de que não queria o término e de que ele era especial. A forma que ela lidou com o término, rompendo totalmente o contato e tratando-o como um conhecido sinalizou para ele totalmente o contrário. Se ela consegue tratá-lo como um mero conhecido, talvez ele não seja tão bom o quanto achava. E isso é muito aversivo para ele.

A importância de ser especial
            Em resumo, portanto, toda a reclamação do ex-namorado por traz da música é que ela o fez se sentir menos importante. Ao tratá-lo como um conhecido após o término fez com que ele reconhecesse que não foi tão importante na vida dela. Não ser importante para ela faz com que ele se sinta menos importante, ou seja, deixa de se sentir especial.

            Não é raro ver que muitas pessoas tentam retomar relacionamentos que deixaram de serem reforçadores justamente quando se deparam com indícios de que deixaram de ser especiais com o término. O caso mais comum é o de ver o ex, aparentemente feliz, com uma nova pessoa.

Análise do comportamento da ex-namorada

            A forma com a qual ela lidou com o término, principalmente quando este é recente, costuma ser a que gera menos estímulos aversivos. Caso ainda fosse reforçador para ela manter o relacionamento e para ele, não; ela, ao cortar contato, diminuiu drasticamente o tempo de sofrimento pelo término. O contato, nessas condições, faz com que a pessoa continue investindo em uma relação falida por muito mais tempo, já que cada contato pode ser tido como um indício de que ainda há esperança para a retomada do relacionamento. Em outras palavras, essa situação se configura em um reforçamento intermitente.

            Na situação inversa, cortar as relações, ainda que temporariamente, é o mais sábio a se fazer. Caso seja ela que tenha rejeitado o ex-namorado que ainda se comporta em função de reatar o relacionamento, cortar as relações faz com que ele discrimine mais rapidamente que seus comportamentos em função da retomada do namoro estão em extinção. Logo, isso fará com que deixe de emiti-los mais rápido. Sem dúvida, ter alguém insistindo em retomar uma relação mesmo após uma rejeição pode ser reforçador para quem rejeitou em curto prazo. A pessoa que tenta reatar um relacionamento provê vários reforçadores para a pessoa que rejeitou, como elogios, declarações de amor, presentes etc. Nesse caso, a pessoa que rejeitou tenderá a se sentir importante e especial. Ao mesmo tempo, não é em todo momento que alguém tentando reatar um relacionamento é reforçador, principalmente quando está em todo lugar que se vai, quando se humilha, quando chora, faz escândalos, telefona de madrugada etc.

            Cortar relações, portanto, é uma forma de se abreviar o próprio sofrimento ao ser rejeitado e minimizar o sofrimento do outro quando o rejeita. Além de evitar situações aversivas de ter alguém “no pé”.

            Para pessoas como o ex-namorado, tratá-lo dessa forma é colocar em extinção padrões comportamentais manipulativos que têm como função produzir indícios de que ele é especial. Não ter respondido a reclamação dele seria mais eficaz ainda como extinção, já que a resposta dela ainda reforçou a reclamação dela, na medida em que estabeleceu um canal de comunicação.  

            A resposta dela, por fim, também parecer ter a função de fazê-lo sofrer. Isto é, ela apresentou um estímulo aversivo contingente à sua reclamação. Caso ele pare de reclamar, é possível classificar a reação da ex-namorada como uma punição positiva.

Ela descreve os comportamentos emitidos por ele durante o relacionamento fizeram com que este deixasse de ser reforçador para era. Em seus versos, ela relata que ele não emitia tatos e mandos puros durante o relacionamento nos seguintes versos: “But I don’t wanna live that way, reading into every word you say” (“Mas eu não quero viver desse jeito, lendo nas entrelinhas o que você diz”). Talvez, nesse momento, ela estivesse tateando as respostas verbais manipulativas que ele emitiu ao longo da música em si. Desse modo, estaria dizendo: “a sua reclamação nada mais é do que uma manipulação verbal como as que você fez ao longo do nosso relacionamento”.

Considerações Finais

            A letra foco desse texto permitiu uma série das análises que são pertinentes às relações amorosas. Nela foi possível observar formas antagônicas em lidar com um término e como o discurso pode ter funções manipulativas. As relações funcionais presentes na letra são pertinentes e verificáveis nas relações amorosas, se mostrando relevantes em casos clínicos.

            Toda interpretação de comportamentos fora do ambiente controlado de laboratório, ainda mais se tratando de produções artísticas, exige muita parcimônia ao se formular conclusões. Várias outras possibilidades de interpretações são possíveis quanto a essa amostra de comportamento. Justamente por ser uma amostra de comportamento, e não uma observação continuada, com a possibilidade de manipulação de variáveis e medição de efeitos, qualquer conclusão de análise funcional é passível de questionamento.

            Por exemplo, é comum dizer que pessoas maduras conseguem romper relacionamentos e continuarem a se relacionar como amigas. De fato, é uma possibilidade. Por outro lado, ocorrências assim são muito mais exceções do que regras. Além disso, é comum pessoas utilizarem tal asserção como justificativa para manter um contato visando à possibilidade da retomada do relacionamento.

            Por fim, além de prazeroso, o exercício de análise comportamental de produções artísticas tem se mostrado útil, principalmente por possibilitar uma modificação na forma como a Análise do Comportamento é vista pelos estudantes.
           
Referências Bibliográficas:

Córdova, L. F. & Medeiros, C. A. (2009). Análise funcional de relações amorosas na arte: músicas e poemas [RESUMO]. Em ABPMC (Org.). Anais do XVII Encontro Brasileiro de Psicoterapia e Medicina Comportamental (pp. 84-86). Campinas, SP: ABPMC.
de Faria, A. K. C. R. & Ribeiro, M. R. (Orgs.) (2010). Skinner vai ao cinema. Santo André: Esetc.
Medeiros, C. A. & Rocha, G. M. (2004). Racionalização: Um breve diálogo entre a psicanálise e a análise do comportamento. Em M. Z. da S. Brandão,  Conte, F. C. de S., Brandão, F. S., Ingberman, Y. K., Moura, C. B. de, Silva, V. M. da, & Oliane, S. M. (Orgs.). Sobre comportamento e cognição: Vol. 13. Contingências e metacontingências: Contextos sócioverbais e o comportamento do terapeuta (pp. 27-38). Santo André: Esetec.
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Escrito por Carlos Augusto de Medeiros

Graduação em Psicologia pela Universidade de Brasília (1997), mestrado em Psicologia pela Universidade de Brasília (1999) e doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (2003). Atualmente é professor titular do Centro Universitário de Brasília e Professor e Orientador do Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento. Coordenador do Curso de Mestrado em Psicologia do UniCEUB. Tem experiência na área de Psicologia Clínica como terapeuta individual e de casais e como supervisor em nível de graduação e pós-graduação. Apresenta publicações na área de relações de equivalência, comportamento verbal, comportamento governado por regras, relações amorosas, questões conceituais, clínica comportamental, análise comportamental de filmes e princípios de análise do comportamento. Junto com Márcio Borges Moreira, é autor do Livro, Princípios Básicos de Análise do Comportamento.

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