“Jogue suas tranças, Rapunzel”: Modelos e regras

Um acontecimento corriqueiro na vida de uma mãe (de gêmeas, no caso) me fez escolher comentar o filme Rapunzel neste artigo. Estávamos andando em um shopping, e minha filha mais patricinha quis trazer “DVDs de princesas”. Meio a contragosto, resolvi reforçar sua assertividade na escolha. Na capa do DVD produzido pela brasileira Vídeo Brinquedo (www.videobrinquedo.com.br), a famosa cena de Rapunzel presa no alto de uma torre, com suas longas e ruivas tranças penduradas, pelas quais sobe seu príncipe encantado. O narrador inicia:

“A vida é feliz e tranquila no mundo dos contos de fadas. Algumas vezes, é bem verdade, o mundo dos contos de fadas tinha seus momentos ruins e seus habitantes maléficos, mas até eles tinham sua importância por lá. Na terra dos contos de fadas, todos sabem o que fazer para sua história ter um final feliz. Muitos deles tinham que sofrer nas mãos de pessoas ruins, (…) depois de um tempo de sofrimento, saber que seu final feliz chegaria, e todos cumpriam suas obrigações satisfeitos”.

Entretanto, o filme se passa em um “reformatório para personagens rebeldes”: aqueles que não concordavam em seguir os cursos de sua história ficavam ali aos cuidados da Senhora B, uma bruxa. De castigo no alto da torre, sem poder deixá-la, estava Rapunzel, pois se recusava a pentear o cabelo. RAP, como preferia ser chamada, descrita como sensível e inteligente, acreditava que mudaria sua história com as músicas que compunha. Sra. B afirma que RAP, recusando-se a se embelezar para seu futuro noivo, ficará “triste e encalhada”; em resposta, a garota diz que quer encontrar um príncipe que goste dela pelo que é e pelo que pensa, e que não se importa se não encontrar um príncipe. Sra. B zomba, deixando claro que esse tipo de comportamento é inadequado.

Em meio a essa conversa, chega Cindy (a Cinderela), que se rebelou contra sua madrasta má: “como vou ficar aguentando aquela mulher doida que me maltrata e me deixa triste?”. Sra. B critica a desobediência das personagens e se retira. RAP mostra uma de suas músicas. As duas, vaidosas como as garotas “devem” ser, olham roupas na internet.

Enquanto isso, na floresta, o narrador nos apresenta dois príncipes encantados (referindo-se a eles, “sem querer”, num lapso de linguagem, como “encalhados”). Prince e Encantado mostram-se preocupados com a questão de terem que se casar com uma princesa de quem nem sabem se vão gostar. “A gente não é nada. Tudo depende das princesas. A gente tem que ficar de braços cruzados, sem fazer nada, esperando pelas dondocas” (no sentido de ter que esperar que elas estejam numa enrascada para que eles as salvem). Prince afirma descarregar a tristeza em sua guitarra, e está à procura de alguém que cante, para montar uma banda. Ouvem, de longe, a música de RAP e se aproximam do reformatório. Prince fica conversando com RAP, presa na torre. Encantado e Cindy saem para passear.

RAP explica o motivo de seu castigo: “basicamente, eu sou contra ter de seguir uma vida que foi escolhida pra mim”. Sobre a prisão na torre, conta que se recusava a pentear o cabelo e que Sra. B. não a deixava sair. Prince elogia sua voz e personalidade, e promete voltar para vê-la. De volta à floresta, Encantado, suspirando, diz a Prince: “Achei a tampa da minha panela. A metade da minha laranja. A mãe dos meus futuros filhos. A minha princesa. A minha cara metade”[1].

Já que não pode descer, RAP resolve cuidar de seu cabelo, para que o príncipe possa aproximar-se subindo por suas tranças: “Eu vou pentear o meu cabelo porque eu quero, e não porque alguém decidiu por mim”. Joga suas famosas tranças e, tarde após tarde, ela e Prince encontram-se para tocar e cantar. Sra. B descobre, deixa Prince cego e envia RAP para os “cafundós”. Ele, mesmo cego, a procura por toda a terra e, pela voz, a encontra. O filme termina com um show de RAP e Prince; eles e o casal Cindy e Encantando mostram suas alianças, e Sra. B limpa o chão (i.e., tem seu merecido castigo). O narrador reafirma “sempre um final feliz”.

Os contos de fadas são, há séculos, fontes de entretenimento, modelos e regras para seus ouvintes (Nery, 2012; Passinato, 2009). De acordo com a Análise do Comportamento, nosso repertório comportamental operante pode ser estabelecido por exposição direta às contingências, por observação (modelação ou aprendizagem vicariante) ou por controle verbal/instruções (comportamento governado por regras). No filme acima resumido, os comportamentos de RAP e Cindy podem servir de modelo para diversas garotas e, a partir deles, regras podem ser formuladas. As falas da Sra. B, por sua vez, apresentam uma série de regras emitidas por diversos falantes em nossa cultura (pais, professores, jornalistas e, claro, os escritores – que tudo sabem, segundo a Sra. B). Dessa forma, os contos de fadas fornecem ocasião para aquisição e manutenção de uma série de respostas operantes.

No que se refere à modelação, deve-se destacar que o comportamento de seguir um modelo é influenciado por diversas variáveis, e, a fim de prever uma imitação parcial ou total, precisaríamos responder a perguntas como: (1) o comportamento do modelo produziu consequências reforçadoras para ele mesmo?; (2) há reforçamento para o comportamento de imitação?; e (3) há no repertório do observador respostas que permitam a emissão do comportamento do modelo? Com relação ao filme em questão, pode-se responder a essas perguntas, respectivamente, das seguintes formas: (1) sim. RAP e Cindy conseguem seus príncipes e, ao final, demonstram-se muito felizes com eles; (2) no que se refere a ser uma princesa, quando se pensa, atualmente, em uma menina ainda bem pequena, é bem provável que haja reforçamento social para o comportamento de se vestir como uma princesa, pedir para que passem esmalte ou a maquiem, etc. Já com relação a imitar a rebeldia de RAP, certamente isso variará de criança para criança, de acordo com outros modelos e regras disponibilizados ao longo de sua história de vida e, claro, de acordo com os reforçadores disponíveis atualmente; e (3) desde muito cedo, as garotas são estimuladas a emitir comportamentos “de princesa”, tais como os descritos no último item 2 e, portanto, há em seu repertório condições mínimas para o desenvolvimento de comportamentos descritos como boas maneiras, vaidade, autocuidado, expectativa quanto a um príncipe encantado, etc.

Outra variável que afeta o comportamento de seguir um modelo refere-se ao prestígio/status do mesmo (Baum, 1994/2006). Não seria incorreto dizer que, em nossa cultura, as princesas dos contos de fadas ainda gozam de muito respeito, são muito conhecidas e comentadas em diferentes rodas. O rótulo de “princesa” é emparelhado a situações agradáveis, de carinho, admiração ou parabenização, e tende a reforçar alguns comportamentos emitidos pelas garotas hoje em dia. Além disso, muitos de nossos pais, professores e parceiros invocam os nomes (e/ou comportamentos) de tais princesas para ditar regras de como devemos nos comportar.

Regras são estímulos discriminativos verbais que especificam uma contingência. São extremamente úteis principalmente quando permitem identificar contingências complexas e/ou quando as consequências para uma dada resposta estarão disponíveis somente em longo prazo (Baum, 1994/2006; Skinner, 1969) – como um bom casamento, por exemplo. Voltando ao tema do filme, quando nossos pais ou professores sugerem que nos comportemos “como uma princesa”, estão se referindo a sermos belas, gentis, doces… e passivas! Querem que nos sentemos de pernas cruzadas, que usemos determinados tipos de roupas e sapatos, que falemos baixo e pausadamente, que comamos de boca fechada. Isso pode não fazer sentido algum, inicialmente, para uma criança de 3 anos. Porém, se dissermos que serão princesas ao se comportarem dessa maneira, aumentamos a probabilidade de emissão dos comportamentos descritos nas regras. Mais tarde, acrescentamos ao rol das exigências o esperar pelo príncipe ou, ao menos, o não ser “atirada” para os homens, o esperar ser paquerada, o fazer joguinhos para conquistar o cara mais interessante, etc.

No filme, regras são diretamente apresentadas pela Sra. B: a mais básica é a de que é preciso ter um príncipe para ser feliz. A receita (regra) é simples: muito sofrimento, ser encontrada pelo príncipe (rico, bonito e corajoso), casar-se e ser feliz para sempre. Essas regras, comuns não só em filmes/histórias infantis, mas também em novelas, contos (até mesmo os eróticos) e peças de teatro[2], podem tornar os comportamentos de nossas moçoilas insensíveis às contingências (ou seja, o comportamento não muda de acordo com mudanças nas contingências), o que, por sua vez, poderá acarretar em queixas clínicas.

Problemas em relacionamentos amorosos, ou a falta de um relacionamento, estão dentre as queixas mais comuns em nossos consultórios. Algumas queixas poderiam ser resumidas em “se eu já sofri, já encontrei o príncipe, já casei, cadê o ‘felizes para sempre’?” Em cada caso, torna-se necessário levantar o histórico afetivo do(a) cliente, assim como os modelos e regras às quais foi exposto, a fim de discutir a idealização desses relacionamentos e, aos poucos, tornar o comportamento desse cliente mais sensível às contingências atuais (Nery, 2012; Passinato, 2009). Nestas, exigem-se padrões comportamentais femininos ambíguos (ora ser decidida e forte, ora ser ou mostrar-se frágil e dependente), que precisarão estar sob forte controle do contexto. Os papéis de gênero[3] (ou papéis sexuais) têm sofrido intensa mudança desde que os contos de fadas foram escritos. As mulheres trabalham fora, têm carreiras a serem traçadas, dividem as contas do lar e dos bares, dentre outras coisas que demonstram essa mudança. Entretanto, ainda leem ou escutam os contos de fadas (mesmo com vários tons de cinza) e assistem a filmes nos quais, depois de muito sofrimento ocasionado por uma rival (a “bruxa má”), a mocinha se casa com o mocinho.

A fim de prevenir alguns problemas futuros, os cuidadores deveriam discutir as discrepâncias entre contingências reais e as expostas nesses contos, assim como reforçarem comportamentos alternativos aos descritos (Passinato, 2009). Ao observar a mãe trabalhar (saindo de casa e/ou no computador), as meninas de hoje têm um modelo diferente de mulher, e podem questionar algumas regras, mesmo antes de elas próprias chegarem à idade de produzir seu próprio sustento. Apesar de a versão de Rapunzel aqui descrita caminhar para o inevitável encontro com o príncipe, ao menos ela possibilita questionar a passividade feminina e defender a necessidade de ter seus próprios interesses, com ou sem príncipe encantado.

Bem, espero que, tendo modelos e regras diversos, as mulheres consigam apresentar maior variabilidade comportamental e, com isso, que seus comportamentos apresentem maior sensibilidade às contingências. É o que procuro trabalhar com minhas clientes (e com minhas gêmeas…).

Baum, W. M. (1994/2006). Compreender o Behaviorismo: Comportamento, cultura e evolução (M. T. A. Silva, M. A. Matos & G. Y. Tomanari, trad.). Porto Alegre: Artmed.

Nery, L. B. (2012). Relacionamentos Amorosos e Casamento na Mídia e suas Implicações na Prática Clínica – Uma Abordagem Analítico-Comportamental. Monografia de Conclusão de Especialização em Análise Comportamental Clínica não publicada, Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento, Brasília, DF.

Passinato, V. (2009). Análise comportamental de contos de fada: Uma questão de gênero. Monografia de Conclusão de Graduação, não publicada, Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), Brasília, DF.

Skinner, B. F. (1969). Contingências de reforço (R. Moreno, trad.). São Paulo: Abril Cultural.

[1] Todos estes termos são usados, em nossa cultura, para designar um parceiro ideal, que nos completará e com quem viveremos “felizes para sempre”. No caso de Encantado, deixa clara também a questão do “amor à primeira vista”, geralmente apresentada em filmes infantis e comédias românticas.

[2] Acredito que a discussão de filmes, propagandas, livros ou peças teatrais seja de grande auxílio psicoterapêutico. Recentemente, uma nova versão da comédia teatral “Complexo de Cinderela”, escrita por Arthur Tadeu Curado, foi bastante útil para levar diversão a algumas clientes e, além disso, discutir vários mitos sobre o comportamento feminino aos 30 anos. A peça é mais próxima de nossa realidade atual do que contos de fadas. Nela, duas mulheres bonitas e bem sucedidas encontram-se presas no complexo (i.e., esperam, passivamente, pelos seus príncipes, a fim de não se tornarem solteironas ou “árvores sem frutos”). Há dúvidas, há sofrimento, há resistência, por parte de uma delas, em permanecer naquele complexo. A partir dessa peça, tive sessões interessantes com uma cliente de 31 anos, que nunca namorou e estava sempre à procura do “par perfeito”. As conversas possibilitaram a ela identificar alternativas disponíveis, discutir prós e contras de cada uma dessas alternativas, dentre outros fatores – de forma leve e bem ilustrada. Por isso, sugiro fortemente que terapeutas tenham acesso a diferentes manifestações artísticas, o que permitirá ampliação de seu repertório clínico.

[3] Papéis de gênero podem ser comportamentalmente definidos como “repertórios ou padrões comportamentais socialmente estabelecidos e selecionados em função dos sexos/gêneros masculino ou feminino” (Nery, 2012, p. 1).

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Escrito por Ana Karina C. R. de-Farias

Psicóloga clínica, possui Graduação em Psicologia (1998) e Mestrado em Processos Comportamentais, pela Universidade de Brasília (2001). Atua principalmente nos temas Análise Comportamental Clínica, e Comportamento Social. Professora, supervisora clínica e orientadora de monografias no Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC), tem boa experiência na orientação de monografias de Conclusão de Curso de Graduação e Especialização, além de ter orientado bolsistas de Iniciação Científica. É organizadora dos livros "Skinner vai ao cinema", lançado pela ESETec (em conjunto com Michela Rodrigues Ribeiro, 2007), e "Análise Comportamental Clínica: Aspectos Teóricos e Estudos de Caso" (Artmed, 2010).

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