Quer seja no cotidiano, quer seja na clínica psicoterápica ou em condições de pesquisa, somos eventualmente requeridos a recordar de situações que presenciamos, vivenciamos ou lemos e ouvimos através de algum veículo de comunicação. Acontece que, no entanto, o registro e a recordação dessas experiências nunca é fiel — estamos inexoravelmente sujeitos ao erro. Para abordar esse interessante e inquietante assunto, o graduando em Psicologia Cláudio Drews e o psicoterapeuta Daniel Gontijo entrevistaram Luciana M. Ávila, mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUC-RS), psicoterapeuta e neuropsicóloga. Em seu mestrado, Luciana investigou a influência dos traços de personalidade sobre as falsificações de memória.
1) Primeiramente, Luciana, o que é memória e o que são falsas memórias? Como elas estão inseridas em nosso dia-a-dia?
Em primeiro lugar, é importante ressaltar o fascínio que a memória exerce em função de sua complexidade. Podemos afirmar com tranquilidade que “somos aquilo que recordamos”. É através da memória que temos uma sensação de continuidade e é através dela que damos significado à nossa personalidade. Podemos conceituar memória como aquisição (também entendida como aprendizagem), conservação e evocação de informações (nossas lembranças). Entretanto, a memória também tem seu lado obscuro e frágil. Pode-se esquecer de forma rápida ou gradual de eventos importantes ou até mesmo distorcer o passado de forma surpreendente. Uma das falhas de memória são as falsas memórias (FM). As falsas memórias caracterizam-se pela lembrança de eventos que na realidade nunca ocorreram. As informações são armazenadas na memória e, mais tarde, são recordadas como se tivessem sido verdadeiramente vividas. As FM incluem distorções na maneira de recuperação da memória armazenada, incluindo interpretações e inferências do indivíduo. Essas falhas podem trazer prejuízos importantes em nosso dia-a-dia, já que acreditamos sinceramente que nossa recordação é verdadeira, fazendo com que possamos trazer uma riqueza de detalhes impressionantes sobre falsos episódios.
2) Qual a principal teoria explicativa sobre falsas memórias?
Um dos modelos teóricos explicativos para a compreensão das falsas memórias mais aceito atualmente é a Teoria do Traço Difuso – TTD (no original em inglês, Fuzzy Trace Theory de Reyna e Brainerd, 1995, 2005). Segundo essa teoria, a memória não é um sistema unitário, mas constituído de múltiplos sistemas independentes, contendo representações literais e de essência. Enquanto que a memória de essência armazena somente o significado do fato ocorrido, a memória literal contém em si as lembranças dos detalhes específicos sobre o evento. Assim, segundo a Teoria do Traço Difuso, as falsas memórias ocorrem em função da lembrança de informações acerca do sentido das experiências (memórias de essência). Na recordação dos eventos, aspectos específicos e detalhados (memórias literais) acabam dando lugar aos aspectos e representações de essência das lembranças – mais gerais e amplas.
3) Como fica o papel da emoção nas falsas memórias?
Atualmente, as emoções são definidas como coleções de respostas cognitivas e fisiológicas acionadas pelo sistema nervoso que preparam o organismo para se comportar frente a determinas situações. Várias pesquisas vêm sendo desenvolvidas para identificar os padrões de interações entre emoção, cognição e comportamento. Diante disso, também surge o interesse em pesquisar como a emoção interage com a memória e, particularmente, com as falsificações de memória. De uma maneira geral, os resultados dessas pesquisas indicam que lembramos mais de eventos emocionais do que não emocionais. Entretanto, estudos mais recentes também vêm indicando que, especialmente em se tratando de eventos emocionais, o aumento no índice de memórias verdadeiras pode vir acompanhado por um aumento no índice de falsas memórias. Ou seja, o fato de lembrarmos mais de eventos emocionais não significa que essas lembranças sejam imunes às distorções.
4) Em seu mestrado, você pesquisou o papel das diferenças individuais na suscetibilidade às falsificações de memória. Quais traços de personalidade estão mais relacionados à qualidade da memória?
Entre os diversos aspectos que englobam o tema falsas memórias, o que mais me encantou foi a seguinte questão: por que algumas pessoas apresentam uma maior suscetibilidade às falsas memórias do que outras? Estudos que relacionam diferenças individuais e falsas memórias procuram responder o que torna algumas pessoas mais vulneráveis do que outras na produção e aceitação de falsas informações. Pesquisas têm sugerido que as diferenças individuais, especialmente certos tipos de traços de personalidade, podem exercer influência significativa na precisão de nossa memória. Em meu mestrado, utilizei o modelo dos Cinco Grandes Fatores de McCrae e Costa (1997). Verifiquei que pessoas com altos níveis de neuroticismo, que apresentam características como instabilidade emocional, baixa autoestima, depressão e vulnerabilidade, além de afetos negativos e respostas de coping mal adaptadas – características associadas a uma maior suscetibilidade às falsas memórias –, apresentam maior número de distorções mnêmicas. Essas distorções ocorrem já que pessoas com essas particularidades possuem dificuldades em estabelecer avaliações críticas e apresentam uma necessidade de reduzir sensações de incerteza, demonstrando menor confiança em suas próprias recordações.
5) As falsas memórias possuem dois campos de aplicação: a área clínica e a jurídica. Quais suas implicações em ambas as áreas?
No campo da área clínica, os estudos de falsas memórias podem ajudar já que as sessões terapêuticas normalmente giram em torno de experiências emocionalmente significativas para o paciente e que geralmente partilham de uma mesma essência (p. ex., problemas de relacionamento com a mãe). Diversos casos relatados na literatura de recuperação de lembranças falsas, fruto de procedimentos utilizados por terapeutas, que muitas vezes desconhecem como a memória humana funciona, têm preocupado pesquisadores. Os terapeutas podem ter lembranças falsas sobre o relato de seus pacientes ou, até mesmo, baseados em suas interpretações do que está ocorrendo com o paciente, podem prover sugestão de falsa informação ao longo das sessões psicoterápicas. O estudo dos mecanismos envolvidos nesse processo pode auxiliar no desenvolvimento e aprimoramento de técnicas de entrevista e de intervenção terapêutica que minimizem a ocorrência ou impacto dos erros de memória. Já no meio jurídico, os estudos de FM obtiveram destaque, principalmente relacionados à fidedignidade no relato de testemunhas de contravenções em geral. É preciso que se utilizem técnicas confiáveis em coleta de testemunho, uma vez que com base em falsas memórias indivíduos inocentes podem ser acusados de crimes que não cometeram.
6) Como identificar uma falsa memória?
Ao considerar o fenômeno das falsas memórias, nos deparamos exatamente com esse desafio: como determinar se uma pessoa está realmente baseando seu relato em memórias verdadeiras ou em falsas memórias? Será possível saber a probabilidade de uma memória ser real ou distorcida? Infelizmente essas questões ainda não foram inteiramente respondidas pela ciência, já que as falsas memórias são um fenômeno de base mnemônica e não estritamente de base social, como mentiras ou simulações ocorridas por pressões sociais. Sendo assim, a pessoa deposita um alto grau de confiança em sua recordação, tornando-se difícil a comprovação da veracidade das informações. Porém, considerar suas aplicações clínicas e jurídicas – com os cuidados que devemos ter nessas duas áreas – e compreender que certas pessoas com determinadas características e traços de personalidade apresentam maior suscetibilidade para a produção de FM nos aproxima de variáveis que contribuem para a resposta de algumas dessas questões.