Desculpe o transtorno, preciso falar do autoconhecimento

Perguntas como “O que você fez ontem?”, “O que está fazendo?”, “O que fará amanhã?”, “Como você se sente?”, “O que pensa sobre isso?” são recursos utilizados pela comunidade verbal que nos cerca a fim de instalar repertórios de autodescrição nos indivíduos que compõem o grupo; se eles apresentarem comportamentos que mantiverem as práticas culturais, darão mais chances de sobrevivência ao grupo e à cultura por gerações (Skinner, 1953; 1957; 1959; 1971; 1974).

É claro que a comunidade verbal apresenta dificuldades para entender se estamos  falando com fidedignidade sobre os eventos privados que nos competem[1] e, ainda assim, o autoconhecimento é um dos repertórios comportamentais mais importantes que podemos desenvolver ao longo da vida. Talvez pelo motivo de que autoconhecimento não está dissociado de uma chamada autonomia: quanto mais soubermos sobre nosso próprio comportamento, maiores as chances de agirmos melhor no mundo (Skinner, 1953; 1969; 1971).

Acrescido a isso, falar sobre consciência (ou os chamados conteúdos manifestos) é falar sobre controle de estímulos (Skinner, 1957; De Rose, Bezerra & Lazarin, 2012; Sério, Andrey, Gioia & Micheletto, 2015). É falar sobre fenômenos de discriminação simples e condicional e, mais do que isso, falar também das relações de equivalência e das correspondências entre o que é vivido o que é dito sobre o que é vivido, isto é, as correspondências verbal-não verbal.

Sendo assim, ser consciente é saber descrever as variáveis das quais o comportamento é função. É saber não só identificar como está se comportando, mas saber descrever o contexto em que o comportamento ocorre, o que faz ele ocorrer, o que acontece imediatamente após o comportamento ter ocorrido, bem como saber identificar e descrever o que mantém ele ocorrendo com determinada probabilidade de frequência, seja ele público seja privado.

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No contexto clínico, parece ser comum clientes chegarem com queixas que, muitas vezes, só existem da forma como existem por conta de não saber se descrever e descrever o mundo em que vive. Em outras palavras, o cliente não sabe dizer quem é, em função do que se comporta, quais são suas metas e objetivos de vida e, mais ainda, com a demanda clara de parar de sofrer ou de evitar o sofrimento a qualquer custo.

Isso faz todo sentido se estivermos falando de sofrimentos desnecessários, ou seja, de sofrimentos construídos verbalmente, de sofrimentos que não são efeitos colaterais naturais daquilo que vivemos… como nas regras (Glenn, 1987; Abreu-Rodrigues & Sanabio-Heck, 2004), em que o cliente vive situações adversas e, ao invés de tatear de forma pura a contingência que gerou os ditos sentimentos ruins, conclui, por uma descrição distorcida da situação, que ele que não presta, que ele que não é merecedor de ser amado, entre outras.

O trabalho, então, é de se questionar e remodelar tais descrições que o cliente faz sobre si mesmo e o mundo que o cerca. E pode ser que, mesmo depois de ter adquirido esse padrão de autoconhecimento, o cliente descreva alguém que ele não goste. Ou que descreva um mundo em que ele perceba a existência de contingências aversivas em uma intensidade o suficiente para gerar ou justificar uma psicopatologia que, em última análise, pode trabalhar contra a aquisição de repertórios comportamentais novos e mais eficientes no trato dessas contingências (Banaco, Kovac, Martone, Vermes & Zamignani, 2012).

Aceitar aquilo que temos de “ruim” em nossa história de vida, em nossos padrões comportamentais que compõem nosso self e personalidade (Skinner, 1953) é tão importante quanto à valorização do que temos de “bom” e que é reforçado pela comunidade verbal em que estamos inseridos. Aceitar não só isso, mas que podemos sofrer e que o sofrimento faz parte das contingências que vivemos, aceitar que nem sempre acertaremos, mas que podemos ter repertório suficiente para continuar tentando, dados os esquemas de reforçamento.

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A visão skinneriana de homem (1971) é aquela que, a meu ver, consegue manter intacta a integridade, unicidade, individualidade e particularidade de cada membro que compõe a sociedade e a cultura em que vivemos. E, ao mesmo tempo, é a que parece melhor descrever a forma como podemos contribuir para a criação de um mundo que possa ser aversivo de diversas formas, em diversos aspectos e que gere pessoas com comportamentos deprimidos, preguiçosos, irritados, ansiosos etc (Skinner, 1953; 1978; 1987).

E isso contribui para que a visão de aceitação descrita nos parágrafos anteriores não seja entendida como passividade diante da vida, nem que somos vítimas das contingências, visto que operamos sobre o meio, mas que temos a capacidade para descrever e agir melhor em nosso mundo; a terapia é um dos meios pelos quais podemos conseguir isso, além de nos livrar dos sofrimentos desnecessários, dos excessos comportamentais e das descrições distorcidas das contingências, ao passo que, mesmo quando não pudermos mudar, podemos aprender a lidar com aquilo que nos incomoda e que, muitas vezes equivocadamente, seja atribuído como o aspecto que nos impede de viver da melhor forma que podemos (Lucena-Santos, Pinto-Gouveia, Oliveira, 2015).

 

Referências

Abreu-Rodrigues, J.; Sanabio-Heck, E. T. (2004) Instruções e Auto-Instruções: Contribuições da Pesquisa Básica. In Guilhardi, H. J. & Abreu, C. N. Terapia Comportamental e Cognitivo-Comportamental – Práticas Clínicas. São Paulo: Roca.

Banaco, R. A.; Kovac, R.; Martone, R. C.; Vermes, J. S.; Zamignani, D. R. (2012) Psicopatologia. In: Hübner, M. M. C.; Moreira, M. B. Fundamentos de Psicologia: Temas clássicos de psicologia sob a ótica da Análise do Comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.

Glenn, S. S. (1987) Rules as Environmetal Events. The Analysis of Verbal Behavior, v. 5, pp. 29-32.

Lucena-Santos, P.; Pinto-Gouveia, J.; Oliveira, M. S. (2015) Terapias Comportamentais de Terceira Geração: Guia para Profissionais. Sinopsys Editora.

Sério, T. M. A. P.; Andrey, M. A.; Gioia, P. S.; Micheletto N. (2015) Controle de Estímulos e Comportamento Operante. 3 ed. São Paulo: EDUC.

Skinner, B. F. (1953) Science and Human Behavior. New York: The Free Press.

Skinner, B. F. (1957) Verbal Behavior. Cambridge: Copley Publishing Group.

Skinner, B. F. (1959) The Operational Anlaysis of Psychological Terms in Cumulative Record – Definitive Edition. Cambridge: Copley Publishing Group.

Skinner, B. F. (1969) Contingencies of Reinforcement – a theoretical analysis. New York: Appleton-Century-Crofts.

Skinner, B. F. (1971) Beyond Freedom and Dignity. Cambridge: Hackett Publishing Company.

Skinner, B. F. (1974) About Behaviorism. New York: Vintage Books.

Skinner, B. F. (1978) Reflections on Behaviorism and Society. New York: Appleton-Century-Crofts.

Skinner, B. F. (1987) Upon Further Reflection. New York: Appleton-Century-Crofts.

 

[1] Skinner, B. F. (1959) The Operational Anlaysis of Psychological Terms in Cumulative Record – Definitive Edition. Cambridge: Copley Publishing Group.

 

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Escrito por Renan Miguel Albanezi

Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário Cesumar (UniCesumar), especialista em Análise do Comportamento e Psicoterapia Cognitivo-Comportamental pelo Núcleo de Educação Continuada do Paraná (NECPAR) e em Terapia Comportamental pela Universidade de São Paulo (USP). Tem como principais áreas de estudo o Behaviorismo Radical e a Análise do Comportamento com interesse em comportamento verbal, agências controladoras do comportamento, psicoterapia comportamental e psicoterapia analítica funcional.

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