Autor: Nicolau Chaud
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Você já passou por uma situação em que precisava escrever um trabalho acadêmico importante mas acabou gastando horas preciosas vendo besteiras no computador? Em que, no horário da academia, assistir (qualquer coisa na) televisão parecia bem mais interessante? Em que acordou visualizando um dia cheio pela frente, mas sentiu uma força te segurando para não sair da cama? Se a resposta foi sim para qualquer uma dessas perguntas, você e a preguiça já se conhecem.
Antes de escrever este texto, fiz uma busca no Google por “função da preguiça”. Encontrei várias instâncias da expressão “em função da preguiça”, ou seja, a preguiça sendo usada como desculpa para a não realização de tarefas, ou como culpada por desempenhos aquém do esperado. Não vi nada que pudesse defender a ideia de que a preguiça tem uma função. Se você espera encontrar aqui uma apresentação dos os males causados pela preguiça e dicas para lidar com ela, irá se decepcionar. O texto a seguir tem o intuito contrário – revelar a preguiça como algo funcional, e em muitos contextos, inevitável.
Preguiça tem a ver com motivação. Faz sentido pensar as duas coisas como forças opostas. Uma pessoa com preguiça está pouco motivada para fazer uma tarefa específica, ou para fazer qualquer coisa. Quando estamos motivados, sentimos uma espécie de impulso, de vontade, como se houvesse um motor dentro de nós movendo-nos para a ação. Já quando estamos com preguiça, é como se carregássemos um saco de tijolos, e quanto mais nos esforçamos, mais pesado ele fica. Alguém com preguiça está muito pouco motivado a agir.
Em Análise do Comportamento, geralmente falamos de motivação através de conceitos operantes, sobretudo o reforçamento: dizemos que alguém está motivado quando se comporta vigorosamente, em alta frequência (Verneque, Moreira & Hanna, 2012). Uma alta frequência de respostas naturalmente é produzida por poderosas consequências reforçadoras. Dou ênfase aqui às consequências positivamente reforçadoras – mais adiante abordarei o controle aversivo.
Se estamos falando em reforçamento positivo, um elemento importante a ser considerado é o estado de privação. Reforçadores serão tão eficazes quanto o período ou intensidade da privação que estabelece tal valor reforçador. Em um dia quente, depois de várias horas sem comer, um sorvete pode ser extremamente reforçador para um indivíduo, que estará bastante motivado para fazer algo que possa obtê-lo; em outras palavras, qualquer resposta cuja consequência for “sorvete” terá alta probabilidade de emissão. Logo após comer o sorvete em boa quantidade, é de se esperar que aquele indivíduo não esteja disposto a despender muita energia para obter um sorvete novamente, ou qualquer tipo de alimento. Não existem reforçadores em absoluto: um estímulo qualquer só será reforçador a partir de operações momentâneas que estabelecem aquela função, em especial, estados de privação. E sem reforçador, não há motivação.
Dá-se uma relação entre saciação e baixa motivação. Indivíduos não estarão motivados a se engajar em comportamentos que produzam consequências das quais estão saciados. Podemos ter uma compreensão adicional do fenômeno a partir de ideias ligadas à seleção natural e à psicologia evolucionista. Essa perspectiva baseia-se em um modelo econômico para entender o comportamento: enquanto função biológica, o comportamento envolve consumo de energia, e um dispêndio de energia só será adaptativo (e consequentemente selecionado) se promover consequências úteis para a sobrevivência do indivíduo e da espécie em um dado contexto. Quando o organismo está momentaneamente suprido de suas necessidades biológicas básicas, qualquer dispêndio de energia pode ser considerado um desperdício. Talvez seja difícil enxergar a importância desse tipo de economia pensando em nós mesmos, seres humanos vivendo em um contexto no qual praticamente não existe escassez de alimento ou de fontes de energia; no entanto, nossa espécie (e praticamente todas as outras) se desenvolveu em ambientes que envolviam escassez de alimento e um dispêndio de energia para obtenção de recursos muito maior, de forma que desperdícios podiam ter implicações sérias para o indivíduo e o grupo.
Em uma visão skinneriana, os princípios que regem o comportamento de pessoas em um nível individual funcionam de forma análoga à seleção filogenética: assim, respostas que envolvem menor gasto de energia, ou seja, um custo de resposta mais baixo, serão selecionadas em detrimento de respostas mais dispendiosas. Da mesma forma, respostas que produzem consequências úteis (reforçadoras) terão alta probabilidade de emissão; sendo o valor reforçador de um estímulo relativo ao seu estado de privação, baixos níveis de privação resultarão em baixo responder. Evidencia-se que, tanto pelo primeiro nível de seleção (a filogenia) quando pelo segundo nível (a ontogenia), indivíduos supridos de suas necessidades momentâneas terão um responder reduzido, e estarão pouco motivados – poderia-se dizer, preguiçosos.
O conceito de privação traz algumas armadilhas para explicação do comportamento individual. Até certo ponto, em uma análise mais molecular, é aceitável explicar uma resposta do tipo “escutar uma música” através do seu reforçamento “música”, o que parece envolver algum nível de “privação de música”, da mesma forma que “fazer uma ligação para bater um papo” deveria envolver privação de “papo”. Uma explicação mais satisfatória de comportamentos deste tipo necessitaria também de alguma explicação para o valor reforçador de uma música, ou de um papo. Na Análise do Comportamento, admite-se que a função reforçadora de um estímulo pode ser originada de duas formas: um reforçador pode ser primário, sendo seu valor filogeneticamente estabelecido; pode ser também condicionado, quando seu valor foi adquirido por emparelhamento ou equivalência com outros reforçadores (primários ou também condicionados).
A literatura experimental tem mostrado que o valor de reforçadores condicionados depende diretamente do estado de privação em relação ao reforçador primário com o qual foi emparelhado. Por exemplo, se uma luz for consistentemente emparelhada a alimento, um pombo poderá bicar sob controle da luz enquanto consequência; se, no entanto, o pombo estiver saciado de alimento, a luz (assim como a comida) deixa de ser reforçadora, e suas bicadas deixarão de ocorrer (Ferster, Culbertson & Boren, 1979).
Fala-se também em um tipo especial de reforçador condicionado: o reforçador generalizado. O conceito foi cunhado por Skinner (1953), e refere-se a estímulos emparelhados com um número tão grande de reforçadores que seu valor torna-se quase independente de qualquer estado individual de privação. Seriam exemplos de reforçadores generalizados a atenção e o dinheiro. Mas como acontece com boa parte da produção de Skinner, o conceito tem base mais especulativa do que empírica. Uma observação casual dos fatos nos leva a crer que, por exemplo, pelo fato de o dinheiro me dar acesso a um número muito grande de comodidades, eu não precisaria estar privado de água, comida, roupas ou qualquer outra coisa para que meu comportamento seja reforçado com dinheiro, ou seja, que eu esteja motivado para obter dinheiro. É uma noção razoável o suficiente para que o conceito seja amplamente aceito entre os analistas do comportamento, utilizado para explicar um grande número de comportamentos e para embasar diversos tipos de intervenção. Curiosamente, não há, entretanto, validação empírica para existência de reforçadores cujo valor seja em algum grau desvinculado de estados individuais de privação (Hackenberg, 2009). Deste modo, ainda que um estímulo seja associado a um grande número de consequências, seu valor será reduzido ou anulado quando o organismo estiver saciado daqueles reforçadores.
E o que isso tem a ver com a preguiça? Se o valor de qualquer reforçador condicionado está vinculado ao estado de privação de reforçadores primários, segue-se que redundam conclusões geradas pelo funcionamento do primeiro nível de seleção e do segundo: quando não estamos privados de reforçadores primários, ou seja, quando nossas necessidades biológicas básicas estão supridas, as consequências para boa parte de nosso comportamento deixam de ser reforçadoras; nos tornamos desmotivados, e qualquer consumo de energia, de um ponto de vista biológico, seria um desperdício. Nos tornamos preguiçosos.
Vivemos em um mundo onde conseguimos muito com pouco esforço. Não precisamos de caçar, e muitas vezes nem mesmo nos deslocar para comer. Saciar a sede, encontrar conforto, ou mesmo acesso a contato sexual são tarefas facilitadas por artifícios sociais e tecnológicos. Essa tecnologia desenvolve no sentido de promover o maior número de comodidade com o menor grau de esforço. A sociedade se desenvolve para gerar pessoas preguiçosas.
Essa mesma sociedade não poderia se desenvolver, no entanto, se todas as pessoas fossem preguiçosas e desmotivadas. O comportamento humano é determinado também por um terceiro nível de seleção, que garante que pessoas sobrevivam não só enquanto organismos individuais que precisam comer e se reproduzir, mas como parte de um grupo que precisa manter coesão para que prospere e continue existindo. Ainda que a filogenia e a ontogenia determinem que agir quando estamos saciados pode ser um desperdício de energia, a cultura diz que precisamos trabalhar e produzir.
O controle social geralmente é feito através do comportamento verbal. “Trabalhe muito”, “estude muito”, “passe em um concurso público”, “faça exercícios físicos” são algumas das regras com as quais entramos em contato todos os dias. Especificam um responder determinado, muitas vezes envolvendo um alto consumo de energia, sem que as consequências reforçadoras sejam claras ou explicitadas. Em uma rápida, análise, é possível identificar as consequências prováveis do seguimento de tais regras: estudar trará notas boas, trabalhar trará dinheiro, exercícios físicos resultarão em um corpo melhor e mais saúde. O fato de tais regras serem tão comuns, no entanto, não é um indicativo de que as consequências naturais dessas atividades sejam proporcionalmente tão reforçadoras.
Tomemos a seguinte situação: uma pessoa com preguiça poderia optar por olhar fotos de amigos no Facebook ao invés de escrever um artigo para a faculdade. Um possível entendimento para essa escolha poderia partir de um modelo analítico-comportamental do autocontrole: uma respostas autocontrolada é aquela cujo reforçador é de maior magnitude, porém mais atrasado, comparado a uma resposta impulsiva cujo reforçador é de menor magnitude, porém mais imediato (Hanna & Hibeiro, 2005). A explicação da preferência pelo Facebook ao invés de escrever estaria no maior atraso do reforçador para a segunda opção, o que reduz o valor do reforçador da consequência. Há de se considerar, no entanto, a possibilidade de que a consequência de escrever um artigo não seja mais reforçadora do que aquela de navegar no Facebook, sobretudo levando em conta os estados privação/saciação momentâneos do indivíduo. Não haveria um componente naturalmente impulsivo em agir de forma preguiçosa. Segue-se que, em momentos assim, a preguiça é uma alternativa mais vantajosa.
O seguimento das regras sociais é mantido não só pelas consequências naturalmente reforçadoras de ações como estudar ou trabalhar, mas por consequências sociais aversivas associadas ao não-cumprimento dessas regras. Escrever um artigo é reforçado não só com uma boa nota ou com a aprendizagem de algo novo, mas também pela evitação de punições que seriam geradas caso o artigo não fosse feito. A remoção e evitação de consequências aversivas também é uma operação motivadora, e aumenta a probabilidade de que nos comportemos de forma “adequada”. Por outro lado, algumas contingências sociais são tão exigentes e aversivas, que mesmo a realização da tarefa pode resultar em punição. Escrever o artigo evita a punição resultante de não fazê-lo, mas poderá resultar também em críticas do orientador e notas insatisfatórias. Sair de casa para trabalhar evita todos os problemas acarretados por uma falta, mas gerará por sua vez outros problemas, talvez ainda mais aversivos. Escolhas assim são do tipo perder ou perder.
O efeito natural de um controle aversivo tão poderoso é o desenvolvimento de repertórios de fuga e esquiva. Quando pensamos em comportamentos nos quais costumeiramente nos engajamos quando estamos com preguiça, como assistir televisão, dormir, usar o computador ou mexer no celular, podemos relevar um segundo tipo de função, além daquele ligado às consequências naturais dessas ações: uma função de esquiva, evitação das consequências aversivas de se engajar em atividades mais “sérias”. A preguiça geralmente envolve comportamentos negativamente reforçados. E não coincidentemente, tais atividades características da preguiça envolvem um consumo muito baixo de energia.
Portanto, sob uma perspectiva econômica, a preguiça tem uma função. Ela não é auto-boicote, não é “pulsão de morte”, é uma forma de proteção. Como bons analistas do comportamento, devemos encarar nossa própria preguiça não com culpa, não tomando-a como parte de nós, mas reconhecendo seus efeitos como produto de contingências ambientais específicas. Podemos buscar compreendê-la, e assim modificar o que é necessário no ambiente para que tornemo-nos pessoas mais produtivas. Ou não.
Referências
Ferster, C. B., Culbertson, S., & Boren, M. C. P. (1979). Princípios do comportamento. São Paulo: Hucitec.
Hackenberg, T. D. (2009). Token reinforcement: a review and analysis. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 91, 257-286.
Hanna, E. S., & Ribeiro, M. R. (2005). Autocontrole: um caso especial de comportamento de escolha. Em J. Abreu-Rodrigues e M. R. Ribeiro (Orgs). Análise do comportamento: pesquisa, teoria e aplicação (pp. 175-187). Porto Alegre: Artmed.
Verneque, L., Moreira, M. B., & Hanna, E. S. (2012). Motivação. Em M. M. C. Hübner & M. B. Moreira (Orgs). Temas clássicos da psicologia sob a ótica da Análise do Comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Skinner (1953/1998). Ciência e Comportamento Humano. 10ª edição. São Paulo: Martins Fontes.
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