O processo eleitoral de 2014 trouxe, junto à polêmica, questões bastante interessantes não só para o campo das ciências políticas, mas também para a Análise do Comportamento – especialmente para a área do comportamento verbal. As redes sociais se tornaram um verdadeiro campo de batalha – em particular no segundo turno, quando a polarização de opiniões se deu de modo mais intenso. Muitos grupos de amigos, famílias e colegas de trabalho ficaram politicamente (alguns até afetivamente) divididos. Falou-se inclusive de uma divisão política do país [1]. As discussões (tanto entre candidatos quanto entre eleitores), além de envolverem acusações e críticas, eram sustentadas pelo compartilhamento de fatos e informações que contribuíam para reforçar a crença da escolha pelo candidato correto. O historiador e professor de História Cultural da Unicamp, Leandro Karnal, escreveu uma fórmula verbal que foi utilizada por ambos os lados da concorrência na maratona política: “‘Nós’ trabalhamos por um Brasil grande e disciplinado, empreendedor. ‘Eles’ querem só as benesses do governo numa vida ociosa e vampiresca. ‘Nós’ sustentamos o Brasil. ‘Eles’ apenas se aproveitam. Qual o grande problema nacional? ‘Eles’ não entendem que ‘nós’ estejamos corretos” (Karnal, 2014). Mas afinal de contas, quem está correto? Qual o melhor candidato? Seriam verdadeiras as informações apresentadas nas discussões? Schopenhauer (2014) diria ironicamente que, no debate, a verdade em si não interessa, mas sim a vitória no duelo verbal. “Deve-se separar completamente a descoberta da verdade objetiva da arte de tornar suas afirmações verdadeiras” (Schopenhauer, 2014, p. 29), e nesse processo mentira e autoengano são comportamentos absolutamente frequentes.
Estamos acostumados a realizar análises que englobam variáveis do segundo nível de seleção. Entretanto, mais antigos do que podemos imaginar, comportamentos de engano e autoengano assumiram uma função importante no processo evolutivo dos seres humanos, estando presentes também em diversas outras espécies (Smith, 1987), sugerindo uma importância filogenética desta função. “Há uma diferença muito pequena entre o fingir-se de morto de um besouro e a síncope de um homem em um campo de batalha” (Wile, 1942, p. 294). Em termos evolucionistas, o comportamento de enganar pode ser definido como qualquer resposta cuja função seja conceder aos outros falsas informações ou privá-los de dados verdadeiros (Smith, 2006), resposta que recebeu status adaptativo devido às vantagens de sobrevivência e reprodução que nossos ancestrais alcançaram ao enganar os outros (Callegaro & Sartorio, 2009). É importante perceber que o acesso a essas vantagens evolutivas se deu através da fraude nas relações com os outros, o que torna o engodo um comportamento com características marcantemente sociais. Callegaro e Sartorio (2009) afirmam haver evidências sugerindo que a capacidade de enganar está relacionada à posição hierárquica dentro dos grupos sociais, e citam estudos realizados com grupos de adolescentes cujos dados mostram que os sujeitos com maiores habilidades para mentir possuíam status especial dentro do grupo, além do fato de que os adolescentes consideraram socialmente inadequada a dificuldade de manter segredo sobre mentiras. Ainda de acordo com esses autores, no processo evolutivo dos primatas sociais, intensas foram as pressões ambientais que selecionaram indivíduos com repertório privado especializado, no sentindo de otimizar decisões que dizem respeito à competição e à cooperação, envolvendo posições de hierarquia dentro do grupo, alocação de recursos, e acesso a pares para cópula, por exemplo.
Ora, fenômenos verbais como “vossa excelência não passa de um grande mentiroso” ou “os dados que o senhor candidato traz estão distorcidos pelo seu partido” remontam absolutamente ao ambiente ancestral, cuja disputa pelo poder é palco para o acesso às terras mais férteis, às alianças que trarão segurança aos clãs envolvidos na disputa, à possibilidade de reprodução com altos índices de investimento parental e, portanto, às maiores chances de perpetuação genética nas gerações descendentes. Por mais que façamos complexas análises de discurso, a influência filogenética sobre a alteração na descrição dos fatos mencionados por nós é inegável. Vale lembrar que nossos corpos e cérebros foram adaptados para viver em savanas em um contexto ancestral. Tal como afirma Pondé (2014), “somos uma espécie pré-histórica que passeia no shopping”. Whiten e Bryne (1997), por exemplo, relatam diversos casos da ocorrência do comportamento de enganar entre primatas e apontam a capacidade de simular respostas encobertas dos outros para possibilitar a manipulação maquiavélica. Sim, entre primatas. A esta habilidade de atribuir comportamentos privados (sentimentos, pensamentos, percepções e crenças) com o objetivo de predizer e explicar o comportamento dos outros (Callegaro & Sartorio, 2009) deu-se o nome de “Teoria da mente” – que significa teorizar sobre como o sujeito se comporta privadamente (Premack & Woodruff, 1978). Assim, no ambiente ancestral, indivíduos com maior sensibilidade à detecção ou à suposição mais precisa de pensamentos, sentimentos e crenças alheias – sejam em relações sociais envolvendo competição ou cooperação – obtiveram maior alcance de sucesso reprodutivo, uma vez que, havendo suposições mais precisas sobre o mundo privado dos outros, maiores as chances de manipulação e eficácia na emissão de comportamentos de engano.
O pesquisador Paul Ekman desenvolveu um complexo sistema para detecção de mentiras através da análise de microexpressões, com base em um grande número de pesquisas que realizou envolvendo estudos de mapeamento cerebral e da movimentação dos músculos da face. De acordo com o pesquisador, o comportamento de mentir requer um processamento maior do que as respostas envolvidas em falar a verdade, consumindo um tempo mais prolongado, elemento que pode ser decisivo para que o engano seja detectado. No entanto, o autoengano pode reduzir drasticamente o custo de resposta envolvido no mentir, uma vez havendo descrição conscientemente distorcida e convicta daquilo que se acredita como verdadeiro (Callegaro & Sartorio, 2009; Ekman, 1991). Quando vovó dizia que uma mentira contada muitas vezes torna-se verdade, ela não estava equivocada. A depender das circunstâncias em que tal mentira é proferida, informações advindas de outras experiências do sujeito podem ser conjugadas ao seu relato, fazendo com que ele até mesmo se lembre de algo que não aconteceu – fenômeno conhecido como “falsas memórias” (para saber mais sobre falsas memórias: Challies, Hunt, Garry, & Harper, 2011; Guinther & Dougher, 2010).
Autoengano, então, diz respeito à crença na própria descrição excessivamente distorcida da realidade [2] e estaria evolutivamente relacionado ao aperfeiçoamento da habilidade de enganar as outras pessoas. De acordo com Trivers (1971), ao longo de dezenas de milhares de anos pode ter havido uma “batalha” entre mentiroso e enganado: se o enganador refinava suas habilidades de enganar, o trapaceado especializava suas capacidades de detecção, de modo que enganar-se a si mesmo poderia ser um estratagema bastante eficaz na esquiva da detecção alheia. Entretanto, este processo não se dá de forma precisamente consciente. Uma vez que evoluímos em contextos de trocas sociais, as nuances e os dilemas entremeados nas relações intergrupais produzem reações emocionais tais como raiva, indignação, revolta, ressentimento – processos neurofisiológicos herdados da seleção natural. Damásio (2003) atribui a essas reações emocionais o nome de “sentimentos morais”, os quais podem facilmente enviesar nosso sistema de regras e nos impelir a uma série de distorções do tato.“Acreditamos que nosso julgamento moral esteja baseado em uma consideração racional sofisticada, mas, na realidade, a não ser sob escrutínio e reflexão, somos guiados por sentimentos viscerais embutidos na organização neurobiológica do cérebro pela evolução. Estes sentimentos direcionam a cognição consciente para elaboração de justificativas e racionalizações distorcendo, de forma conveniente, o conceito daquilo que é justo, de forma tal que, no final das contas, acabamos convictos de agir corretamente” (Callegaro & Sartorio, 2009).
Já dizia o velho Skinner que somos modificados pelas consequências de nossas ações enquanto interagimos com o mundo (Skinner, 1957). Dessa forma, é importante lembrar que nosso comportamento verbal (assim como qualquer outro comportamento) é enviesado por essas milhões de modificações que sofremos desde quando nascemos (fruto de nossas experiências, nossas interações com a vida, nossa história de contingências). É o mínimo suficiente para concluirmos que não existe tato puro. Assim, uma história pode receber versões infinitas, uma vez que cada um dos contadores ficará sob controle de estímulos específicos do relato, controle relacionado ao histórico de contingências daquele que narra. A ocorrência de um fato será trazida de modo absolutamente diferente quando comparamos a versão de Dilma e Lula com aquela descrita por Aécio e Fernando Henrique. Em termos neurofisiológicos, Callegaro e Sartorio (2009) explicam que nossa percepção, mais do que uma simples captação do que ocorre no ambiente, caracteriza-se como processo de transformação, interpretação e síntese das informações sensoriais. O comportamento de lembrar-se está relacionado à capacidade cerebral de remontar à situação vivida e, neste processo, diversas estratégias evolutivamente selecionadas são utilizadas para gerar uma recordação coerente como eliminar dados dessemelhantes, adicionar elementos inexistentes, elaborar conjecturas implícitas e acreditar nelas, realizar inferências etc. E quando há outras pessoas envolvidas, acreditar em “sua própria verdade” pode ser algo ainda mais intenso: “A corroboração de um evento por outra pessoa é uma técnica eficaz de promover autoengano e implantes de memória (Gazzaniga, 1995)” (Callegaro & Sartorio, 2009).
Será que por estas questões afirma-se a verdade como algo relativo, no sentido de não existir uma versão única e inteiramente fidedigna sobre os fatos? Talvez sim. E esse ponto é considerado por Schopenhauer ao proferir a frase no parágrafo que abriu nossa conversa hoje. Ainda que critérios sejam estabelecidos para se considerar um relato como verdadeiro, em algum momento da análise (ou do debate) pode haver um impasse entre os envolvidos. No dia 18 de setembro de 2014, os escoceses foram às urnas para decidir de romperiam 307 anos de pertencimento ao Reino Unido, e com 55,3% dos votos, o “não” ganhou, e a Escócia continua compondo “The United Kingdom”. Entretanto, ainda durante o processo de campanha, divididos, os scotts estavam ávidos por evidências, por fatos que pudessem comprovar o dito tão glorioso futuro da prospectiva nação autônoma (apregoado pelo primeiro ministro escocês Alexandre Salmond) ou o alarmado desastre econômico de um pobre país independente ao norte da Grã-Bretanha (intensamente difundido por Alistair Darling, parlamentar escocês que liderou a campanha “Better Together”). Nos debates, evidências e contra evidências eram apresentadas de ambos os lados, e as dúvidas permaneciam. Várias pesquisas foram realizadas pelas universidades de Glasgow, Edinburgh e St Andrews (apresentadas pela BBC [3]) e algumas delas concluíam que as pessoas decidiam seus votos em grande parte devido à influência das emoções eliciadas pelas propagandas das campanhas, além de aspectos relacionados à personalidade, tais como “facilidade para arriscar-se em situações desconhecidas”.
Acreditar plenamente em comportamento verbal pode ser algo complicado. Todo tato é enviesado. Entretanto, é também bastante complicado chegar ao estado de não se acreditar mais em nada. Vale lembrar que, da mesma forma que enganar foi evolutivamente selecionado por sua adaptabilidade, a capacidade de detecção do engodo também se encontra no mesmo patamar. Como qualquer outro comportamento, o mentir também é controlado por variáveis ontogenéticas e culturais, o que amplia ainda mais o leque de fatores controladores a serem investigados. Na política, sabemos que a busca pelo poder (e seu consequente acesso a inúmeros reforçadores) é algo recorrente, especialmente se as agências de controle permanecem sob direção dos governantes – o que geralmente ocorre. Mas, na democracia representativa, os eleitores são responsáveis por ampliar a precisão do relato e dos feitos políticos através da coleta de informações específicas, e da administração de consequências contingentes (punitivas ou reforçadoras) aos comportamentos dos que governam.
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Notas:
[1] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1538502-pais-esta-divido-mas-volta-se-unir-apos-eleicao-diz-temer.shtml
[2] O uso da palavra “excessivamente” aqui é proposital, uma vez que não existe tato puro (descrição absolutamente precisa das contingências). Toda e qualquer descrição verbal é enviesada.
[3] http://www.bbc.co.uk/iplayer/episode/b04fgqzd/referendum-documentaries-11-mind-games
Referências:
Callegaro, M., & Sartorio, R. (2009). Evolução da mentira e do auto-engano. In E. Otta & M. E. Yamamoto (Eds.), Fundamentos de Psicologia: Psicologia Evolucionista (1st ed.). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Challies, D. M., Hunt, M., Garry, M., & Harper, D. N. (2011). Whatever gave you that idea? False memories following equivalence training: a behavioral account of the misinformation effect. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 96(3), 343–62. doi:10.1901/jeab.2011.96-343
Damásio, A. R. (2003). Em busca de Espinosa: Prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras.
Ekman, P. (1991). Telling lies: Clues to deceit in the marketplace, politics, and marriage. New York: W. W. Norton & Company. Retrieved from http://www.amazon.co.uk/Telling-Lies-Marketplace-Politics-Marriage/dp/0393337456
Guinther, P. M., & Dougher, M. J. (2010). Semantic false memories in the form of derived relational intrusions following training. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 93(3), 329–47. doi:10.1901/jeab.2010.93-329
Karnal, L. (2014). O ódio nosso de cada dia. Estadão. São Paulo. Retrieved from http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,o-odio-nosso-de-cada-dia,1586401
Pondé, L. F. (2014). Cro-Magnon no shopping. Folha de São Paulo. São Paulo. Retrieved from http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2014/10/1535114-cro-magnon-no-shopping.shtml
Premack, D., & Woodruff, G. (1978). Does the chimpanzee have a theory of mind? Behavioral and Brain Sciences.
Schopenhauer, A. (2014). 38 Estratégias para vencer qualquer debate: A arte de ter razão. (C. Werner, Trans.) (1st ed.). São Paulo: Faro Editorial.
Skinner, B. F. (1957). Verbal Behavior. New York: Appleton-Century-Crofts.
Smith, D. L. (2006). Por que mentimos: Raízes evolutivas do engodo e a mente inconsciente. São Paulo: Elsevier.
Smith, E. O. (1987). Deception and Evolutionary Biology. Cultural Anthropology, 2(1), 50–64. doi:10.1525/can.1987.2.1.02a00060
Trivers, R. L. (1971). The Evolution of Reciprocal Altruism. The Quarterly Review of Biology, 46(1), 35.
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Wile, I. S. (1942). Lying as a biological and social phenomenon. The Nervous Child, 1, 293–317.