O brincar e a análise do comportamento

Há algumas semanas fui convidada a ministrar uma aula sobre ludoterapia comportamental. Foi surpresa para alguns alunos verem que nós, analistas do comportamento, não trabalhamos com esse termo, ludoterapia. Isso ocorre porque o lúdico é um recurso da terapia analítico comportamental infantil (TACI), e não o central. Não obstante, o lúdico ocupa lugar de destaque nas áreas de pesquisa, aplicação e estudo na grande área de análise do comportamento e crianças.

Entretanto, se disséssemos que o lúdico ou o brincar são repertórios restritos à crianças, estaríamos inferindo algo falso. Ontem mesmo eu estava brincando de jogar a bola para a minha cadelinha. Aliás, eu estava brincando? E ela, estava brincando também? Nesse ponto, a definição do que é o comportamento de brincar já é trazida como problemática por De Rose e Gil (2003). Estes autores afirmam que essa definição é controvertida na psicologia e na análise do comportamento e argumentam que não se pode distinguir tais comportamentos através de sua topografia. De fato, uma cadelinha que abana no rabinho e apanha uma bola está brincando? E como pode ser definido o comportamento de brincar na criança, também? Ele não pode ser caracterizado apenas por sua topografia, como o sorriso, a excitação, etc; afinal, a criança também se anima e ri em outros momentos.

Os autores ressaltam, no entanto, que os analistas do comportamento “não podem negar que as crianças brincam” (DE ROSE & GIL, p.374) e afirmam que a maioria das definições do comportamento de brincar “requerem que o comportamento seja tanto espontâneo quanto prazeroso” (p.374). E apesar de afirmarem que tais termos são vagos para os analistas do comportamento, arrisco formular duas primeiras assertivas sobre o comportamento de brincar: 1) é um comportamento operante; e 2) possui propriedades naturalmente reforçadoras.

Isso não quer dizer, é lógico, que todos os comportamentos operantes com propriedades naturalmente reforçadoras são brincadeiras. Por exemplo, alimentar-se quando se está com fome não é uma brincadeira. Mas como definir a brincadeira, então? Se não nos perguntam o que é, sabemos imediatamente e podemos citar diversas delas: pega-pega, esconde-esconde, apenas correr por um espaço aberto, “brincar de boneca”, “brincar de carrinho”, soltar pipa etc. Mas… jogar videogame seria brincar? E um jogo de xadrez entre adultos seria?

Afirmar que o comportamento de brincar é operante significa primordialmente dizer que, parafraseando Skinner, ele é sensível às consequências que produz e selecionado por elas. Nesse ponto, destacamos a importância de analisarmos o comportamento de brincar como qualquer outro comportamento operante, sujeito às mesmas leis e princípios gerais. Por outro lado, ao dizermos que possui propriedades naturalmente reforçadoras remetemos ao efeito de prazer de uma consequência reforçadora produzida pelo próprio comportamento. Ou seja, o brincar possui “em si” um efeito de prazer naturalmente reforçador, o que leva a cunharmos o termo “espontaneidade” ao descrevermos sua topografia.

No entanto, como já ficou claro, esses critérios parecem ser vagos para a caracterização do brincar. Para esclarecer um aspecto importante do comportamento de brincar, Gil e De Rose (2003) sugerem o conceito de cunha comportamental como uma classificação de algumas classes de comportamentos operantes, como o brincar. Cunha comportamental, ou behavioral cusps, é um termo cunhado por Rosales-Ruiz e Baer (1997) e traduzido por De Rose e Gil (2003, p. 375) como “um tipo de classe comportamental que expõe o indivíduo a novas contingências, as quais, por sua vez, abrem oportunidades para a aquisição de comportamentos novos e significantes que têm efeitos em longo prazo sobre o desenvolvimento comportamental”.

Sendo assim, o brincar seria uma cunha comportamental, pois é uma classe de comportamentos* que permite a aquisição de novos repertórios, com um efeito significativo sobre o desenvolvimento. Imaginemos uma criança que está brincando com uma casinha de bonecas, com outra criança. Ao brincar com a boneca, ela pode se expor a contingências de: 1) interação com os bonecos da outra criança… adquirindo e fortalecendo o repertório de interação; 2) vestir a boneca, arrumar o cabelo dela… adquirindo e fortalecendo o repertório motor fino e de cuidados; 3) obedecer a prováveis regras da brincadeira… criando ocasiões para fortalecer o comportamento de seguimento de regras, dentre outros inúmeros repertórios que o comportamento de brincar de bonecas pode facilitar a aquisição. Isso tudo além da aprendizagem do próprio comportamento de brincar. E todas essas relações têm efeitos a longo prazo sobre o desenvolvimento da criança.



A criança que imaginamos, no entanto, nem sempre soube brincar de bonecas. O próprio comportamento de brincar é aprendido e envolve a aprendizagem de um repertório mínimo (DE ROSE e GIL, 2003). O comportamento de brincar vai sendo também aperfeiçoado à medida que a criança, inicialmente, segue modelos e gradualmente vai modelando esse repertório. Podemos afirmar, então, que o comportamento de seguir modelo (imitar) é um requisito geral para o brincar.

Partindo desses pressupostos para o entendimento do brincar, alguns autores têm realizado pesquisas que envolvem esse comportamento como fundamental na interação clínica. Del Prette e Meyer (2011), por exemplo, sugerem uma classificação do brincar na terapia analítico-comportamental infantil que envolve desde o brincar em si, passando pelo fantasiar, fazer exercícios ou diversas funções do conversar na terapia. As autoras ainda afirmam que o brincar pode servir na terapia para construir uma relação terapêutica saudável, como estratégia de avaliação ou como estratégia de intervenção.

Vimos, assim, ao longo deste texto, uma “pincelada” sobe como o brincar é compreendido na análise do comportamento. Acrescento, tanto a partir dessas leituras, quanto baseada em minha prática com crianças, que o comportamento de brincar é central no entendimento e na aplicação de conhecimentos voltados para a infância. Não raro, recebo uma criança na clínica que não gosta de brincar, ou até não sabe brincar!

Consciente da importância desse repertório para o desenvolvimento da criança, acredito que um de nossos papéis éticos, como estudiosos de uma ciência, seja o de divulgar a importância do brincar na nossa sociedade. Pensemos, por exemplo, na qualidade de interação que nossas crianças constroem ao passar o dia assistindo à televisão, sem ter a rica oportunidade de brincar, ampliar e variar o repertório comportamental. Afinal, como disse Carlos Drummond de Andrade, “brincar com crianças não é perder tempo, é ganhá-lo; se é triste ver meninos sem escola, mais triste ainda é vê-los sentados enfileirados em salas sem ar, com exercícios estéreis, sem valor para a formação do homem”.
Referências (leituras recomendadas):

DE ROSE, J. C. C; GIL, M. S. C. A. Para uma análise do brincar e de sua função educacional. Em.: BRANDÃO, M. Z. S. (org.). Sobre comportamento e cognição: a história e os avanços, a seleção por conseqüências em ação. Vol. 11. Santo André: ESETec, 2003, p. 373-382.

DEL PRETTE, G; MEYER, S.B. O brincar como ferramenta de avaliação e intervenção na clínica analítico-comportamental infantil. Em: BORGES, N. B; CASSAS, F. A. Clínica analítico-comportamental. Aspectos teóricos e práticos. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 239- 250.

* Classes de comportamentos são comportamentos que têm funções ou topografias semelhantes.
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Escrito por Natalie Brito

Mora em natal - RN e é Psicóloga no Instituto Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em psicologia pela UFC. Ministrou disciplinas de Análise do Comportamento na Faculdade Leão Sampaio durante 3 anos. Escreve sobre psicologia escolar e desenvolvimento humano.

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