Atualmente, debates sobre uso e abuso de substâncias psicoativas (SPA), ilícitas ou não, têm ocupado a mídia, os governos e cidadãos em diversas partes do mundo. SPA ou Drogas Psicotrópicas podem ser definidas como aquelas “que atuam no sistema nervoso central e que de alguma forma modificam o funcionamento cerebral” (Almeida & Barbosa Filho, 2006), que englobam desde o cafezinho, remédios antidepressivos até cocaína e maconha. Embora substâncias legalizadas como remédios antidepressivos possam ter efeitos danosos, as visões condenatórias são mais voltadas para a as chamadas drogas de abuso, ainda que o uso dessas substâncias, a exemplo do cânhamo, remonte a 4000 a.C. (na China) e 3000 a. C. (no Turquistão, atuais Turcomenistão, Uzbequistão, Tadjiquistão, Quirguistão e Cazaquistão) (Escohotado, 2004).
Alguns poucos estudos realizados durante o século XVIII mostram a visão que se tinha de SPA na época. Por exemplo, apontavam o uso de álcool como escolha do sujeito, estando sob seu total controle (Leite, 2006). Já no século XIX, ganha força a idéia de que o uso contínuo de álcool e ópio seriam “doenças da mente” ou “transtornos da vontade”, além de existir uma predisposição hereditária para o uso (Leite, 2006). Ainda neste período, por influência psicanalítica, considerou-se que a necessidade do uso de SPA se daria por haver uma grande quantidade de energia psicológica com dificuldades de alojar-se no consciente (Leite, 2006). Em ambas as visões do século XIX, permanece a noção de necessidade de um tratamento – farmacológico ou psicológico – de um transtorno.
Por outro lado, uma política organizada pela Organização Mundial de Saúde denominada Redução de Danos (RD) traz uma perspectiva diferente sobre SPA, originada do Relatório Rolleston no ano de 1926 (Leite, 2006; O’Hare, 1994). Como funciona, então, a estratégia de RD? Segundo O’Hare (1994), é possível que se pense que a total abstinência de SPA seria o mais adequado, porém deve-se reconhecer que o consumo é algo estreitamente ligado à história de vida dos usuários, o que não impede que sejam ajudados para evitar as conseqüências mais danosas do uso. Logo, a RD “reconhece que as pessoas continuarão a se utilizar de SPA, como sempre o fizeram ao longo da história” (O’Hare, 1994, p. 67). Sendo assim, não se busca eliminar o uso (embora seja um ideal considerado entre redutores), mas uma forma de torná-lo menos danoso à saúde e à vida social. É também estratégia de prevenção de doenças, buscando a redução da probabilidade de infecção do pelo HIV e contração de hepatites, sendo realizada a distribuição de materiais para o uso das drogas (seringas e agulhas esterilizadas, água destilada para diluir a droga, pano umedecido com álcool etc) que garantam um uso limpo, além de preservativos e lubrificantes. Há também a propagação de informações sobre drogas (com cartilhas informativas, por exemplo), medidas de higiene e instruções sobre alimentação e hidratação antes, durante e após o uso de SPA (Leite, 2006).
As ações de RD, não são uma novidade e já vem sendo utilizadas em diversos países, como na estratégia regional de Mersey, Inglaterra (O’Hare, 1996), na Holanda, Canadá e Austrália (Marlatt, 1999). Então, se entendermos o uso e abuso de drogas como práticas culturais, ou seja, “um conjunto de comportamentos emitidos por uma comunidade de indivíduos” (Leite, 2006, p. 17) e transmitidos por sucessivas gerações, o seu estudo a partir das noções de metacontingências, macrocontingências e contingências comportamentais entrelaçadas¹ parece pertinente. Leite (2006) elaborou um plano de intervenção a ser aplicado em comunidades com ações de RD a partir da base teórica analítico-comportamental, assumindo que:
“A articulação entre a Análise do Comportamento e o conceito de redução de danos pode vir a produzir estratégias de intervenção eficazes para a implementação deste último como uma política de saúde pública eficaz para lidar com a questão do uso, abuso e dependência de drogas” (Leite, 2006, p. 8).
Uma vez que a RD é uma abordagem não coercitiva em relação ao uso de SPA, visa não segregar o usuário de seu ambiente social, mas sim a possibilidade de buscar atendimentos de saúde e informações acerca do consumo. É imprescindível que o treino de repertórios comportamentais que levem à redução ou consumo seguro de SPA não fique à parte do ambiente natural do sujeito. Ainda de acordo com Leite (2006), as estratégias de RD devem ser incorporadas a diferentes estruturas assistenciais, comunitárias e administrativas, a exemplo do Programa de Saúde da Família (PSF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS).
Assim, se a RD se propõe a um trabalho direto na comunidade, faz-se necessária a elaboração de uma estratégia de planejamento cultural. Tendo isto em vista, a proposta inicial de Leite (2006) é a de realizar uma pesquisa sondando os problemas da comunidade para então buscar analisar metacontingências e contingências comportamentais entrelaçadas (CCEs) ligadas ao foco do trabalho, o que permitirá uma melhor delimitação, além de possibilitar um planejamento adequado. O próximo passo é o de “criar condições para que contingências de reforçamento individuais sejam mantidas naquela comunidade” (Leite, 2006, p. 33), ou seja, aqui entrariam os interventores do grupo como contingências de suporte – funcionando como antecedentes ou conseqüências –, utilizando-se de intervenções diretas de estratégias de RD, oficinas sobre prevenção e RD ou mesmo campanhas publicitárias na comunidade. Outra forma de intervenção possível é a proposta por Caballo (citado por Leite, 2006), utilizando-se do Treinamento em Habilidades Sociais (THS) e de Treinamento em Solução de Problemas (TSP) para ensinar ao grupo repertórios sociais mais adequados, principalmente em relação ao uso de SPA.
Em outro momento, para não deixar as novas práticas mantidas apenas pelos interventores, seria necessário buscar organizações e/ou indivíduos da própria comunidade que possam servir como as contingências de suporte. Considerando aqui que o uso e abuso de SPA não é um acontecimento isolado de outras questões sociais, deve-se também buscar contingências de reforçamento não relacionadas ao uso, mas também para relacionamentos interpessoais, busca de trabalho, estudo, etc. Procura-se então, aparatos da comunidade, tais como cooperativas de produção, grupos artísticos e/ou esportivos, além de formar grupos de redutores de danos, utilizando os jovens como educadores para atingir outros jovens.
Com a instalação e manutenção das novas práticas, espera-se que naturalmente produtos agregados irão surgir – alguns possíveis podem ser a melhoria nos índices escolares, na qualidade de vida e saúde, redução no uso SPA, da criminalidade –, que possivelmente poderão manter as novas contingências entrelaçadas. Neste momento, realiza-se uma nova pesquisa, avaliando os resultados da intervenção em comparação à pesquisa inicial. Se forem positivos, os resultados podem ser divulgados à população, o que também pode vir a funcionar como produto agregado e conseqüência mantenedora da nova metacontingência. Chegando a este ponto da intervenção, as conexões iniciais com as estruturas assistenciais, comunitárias e administrativas ao amparar a comunidade e os novos produtos por ela gerados, possibilitam que o trabalho dos interventores seja encerrado e que a comunidade tenha capacidade de auto-gestão.
A proposta do autor ainda é geral e não foi, de fato, aplicada. Isso, no entanto, não tira a relevância do trabalho, que é se mostra como uma das inúmeras possibilidades de intervenções de analistas do comportamento em práticas culturais. Entramos aqui (mais uma vez) na importância de se desenvolver ainda mais o campo de estudos experimentais na análise comportamental da cultura de modo a produzir mais conhecimento capaz de embasar propostas de intervenção, levando ao desenvolvimento de tecnologias comportamentais adequadas para a intervenção em diversos problemas sociais, incluindo o uso e abuso de substâncias psicoativas.
¹O conceito de metacontingências, macrocontingências e contingências comportamentais entrelaçadas e suas aplicações, não sendo aprofundados neste artigo, podem ser melhor compreendidos a partir de uma vasta bibliografia desenvolvida a partir do texto Glenn, S. S. (1986). Metacontingencies in Walden Two. Behavior Analysis and Social Action, 5, 2-8.; mas a nível didático e para uma compreensão de maneira sucinta, recomendo a leitura dos demais textos acerca do tema presentes no Comporte-se, de autoria de Elayne Nogueira e Júlia Ferraz.
Bibliografia:
Almeida, R. N., & Barbosa Filho, J. M. (2006). In: Almeida, R. N. (Org.). Drogas Psicotrópicas. Psicofarmacologia: fundamentos práticos. (pp. 3-24). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Escohotado, A. (2004). História Elementar das Drogas. Lisboa, Portugal: Antígona Editores Refractários.
Leite, F. L. (2006). Redução de Danos e Análise do Comportamento: um Modelo Teórico e uma Proposta de Intervenção Comunitária. Monografia não publicada. Fortaleza: Universidade de Fortaleza.
O’Hare, P. (1994). Redução de Danos: alguns princípios e a ação prática. In: Mesquita, F.; Bastos, F.I. (Org.). Drogas e AIDS: Estratégias de Redução de Danos. (pp. 65-78). São Paulo: HUCITEC.
Marlatt, G. A. (1999). Redução de danos no mundo: uma breve história. In: Marlatt, G.A. (Org.). Redução de danos: estratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco. (pp. 29-43). Porto Alegre: Artes Médicas Sul.
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