Biologia e Análise do Comportamento: Diálogos sobre Causalidade – Parte 1: Ernst Mayr

Prólogo

Começo hoje uma série de textos a qual denominarei “Biologia e Análise do Comportamento: Diálogos sobre Causalidade”, que será dividida em partes. Pretendo expor, sobre o tema, alguns pontos de vista de importantes biólogos evolucionistas e mais à frente encerrar com uma síntese e interlocução de fato entre as duas áreas em questão. Inicio com Ernst Mayr.

Introdução

A questão da causalidade na Psicologia às vezes é algo um tanto quanto complicado. A proposta skinneriana de compreensão dos processos causais do comportamento destoa daquela proposta de um modo geral pelas ditas ciências humanas (uma noção motivacional iniciada no interior do organismo) e por algumas ciências naturais com orientação mecanicista e pautada por modelos matemáticos (Andery, 2012). Ao propor o modelo de seleção por consequências em três níveis para a compreensão do comportamento, Skinner (1981) toma como referência as proposições darwinistas de funcionamento da seleção natural. É interessante perceber a forte influência de Darwin na construção do sistema explicativo do funcionamento da ontogênese estruturado por Skinner e seus colaboradores.

Sabemos que Skinner propôs três níveis de explicação na seleção do comportamento humano: a filogênese, a ontogênese e a cultura. Na primeira delas a seleção atua sobre comportamentos pertencentes à espécie humana, e aqui os processos fisiológicos nas relações com o ambiente possuem um destaque maior. Na segunda, a seleção por consequências opera sobre as respostas operantes emitidas ao longo do desenvolvimento de uma pessoa, isto é, refere-se à construção de sua história de vida. E a terceira está relacionada à seleção de práticas culturais que favorecem os grupos humanos, sociedades e instituições (leis, normas, regras e modos de funcionamento perante outros seres humanos). Durante o tempo em que Skinner desenvolvia estas percepções, paralelamente alguns evolucionistas importantes faziam estudos e proposições similares. Farei menção a dois deles: Ernst Mayr e Nikolaas Tinbergen.

Ernst Mayr

Nasceu na Alemanha, apenas 4 meses depois de Skinner, em 1904, mas teve a sorte de viver até 2005. Zoólogo, Mayr foi considerado um dos maiores biólogos evolucionistas do século XX, com contribuições notáveis para a área. Viveu nos Estados Unidos e durante os anos 30 liderou uma importante expedição científica à Nova Guiné e às Ilhas Salomão, onde estudou com sua equipe a fauna autóctone, especialmente a ornitológica. Pesquisador aplicado, Mayr ajudou a descobrir a função evolutiva da diferença dos tipos sanguíneos em uma série de pesquisas com o médico de hematologia pediátrica Louis K. Diamond, pai do famoso cientista e biogeógrafo Jared Diamond cuja obra tem gerado grandes contribuições para o entendimento do funcionamento da cultura e inspirado diversos analistas do comportamento a realizarem primorosos trabalhos (Dittrich, 2008; Sampaio, 2008; Vyse, 2001, por exemplo). Jared Diamond conheceu Mayr aos 16 anos de idade e afirma ter sido influenciado pelo biólogo. Trabalharam juntos e publicaram, aos 97 anos de Mayr, um importante livro de 556 páginas com as análises dos dados coletados nas Ilhas Salomão. Na descrição de Diamond (Diamond, 2005), Mayr foi o principal arquiteto da chamada “síntese evolutiva”, a qual apresentou como as mudanças que a seleção natural produz nas populações isoladas resultam na evolução da biodiversidade. Esta síntese fundiu, até o presente momento, programas de pesquisa antes separados na biologia – geneticistas e naturalistas -, e explicou como a evolução tem dado origem aos organismos, desde bactérias microscópicas a árvores de trocos vermelhos. Mayr foi curador da Coleção Whitney-Rothschild do Museu americano de História Natural de Nova York por mais de 20 anos, além de professor emérito de Zoologia Comparativa da Universidade de Harvard. É importante lembrar que parte da obra de Enst Mayr foi lida e citada por Skinner! Mais à frente falarei sobre estas citações.

Em novembro de 1961, Mayr publicou na revista Science (a mesma revista em que Skinner publicaria “Seleção por Consequências” vinte anos depois) um importante artigo intitulado: “Cause and Effect in Biology: Kinds of causes, predictability, and teleology are viewed by a practicing biologist.” (Causa e efeito em biologia: Tipos de causas, previsibilidade e teleologia vistos por um biólogo aplicado). Este artigo será o alicerce das explanações do texto presente.

A questão da causalidade nas ciências biológicas sob a perspectiva de Ernst Mayr

Mayr afirma que causalidade possui três elementos constituintes: (a) explanação de eventos passados – “causalidade a posteriori”, (b) predição de eventos futuros e (c) interpretação de fenômenos teleológicos. Para explicar o funcionamento desses constituintes, Mayr faz distinção entre duas áreas da biologia as quais possuem pontos de contato e sobreposição: biologia funcional e biologia evolutiva. É exatamente na descrição e definição dos interesses dessas áreas que Mayr fará então as explanações acerca das diferentes partes das investigações causais. A biologia funcional está preocupada com a operação e interação dos elementos estruturais e suas questões envolvem o “como?”: Como algo opera? Como funciona? Como os eventos interagem? Para descobrir, e encontrar respostas, o biólogo funcionalista utiliza-se de experimentos, operando e manipulando variáveis. Já na biologia evolutiva, o método e o problema de pesquisa são diferentes. Suas questões giram em torno do “Por que?” No entanto, não no sentido finalista de “para que”, mas histórico de “porque desta forma?”, “quais os motivos?”. O biólogo evolutivo está interessado em investigar as causas das características existentes e as adaptações do organismo. Seu método é comparativo e analisa as estruturas de uma infinidade de espécies e organismos a fim de compreender o caminho evolutivo de tal estrutura.

Realizadas estas distinções, Mayr faz então a pergunta que o levará ao cerne de sua discussão: a compreensão de causa é a mesma para a biologia funcional e a biologia evolutiva? Para demonstrar a dificuldade de se construir uma resposta e ao mesmo tempo evidenciar a complexidade da questão, o cientista utiliza-se do exemplo da migração dos pássaros: qual a causa da migração de um rouxinol? Mayr lista então quatro causas da migração:

1. Causa Ecológica. Um rouxinol, sendo um comedor de insetos, precisa migrar já que morreria de fome se ficasse no local que receberá o inverno.
2. Causa genética. Este pássaro adquiriu uma constituição genética no curso da história evolutiva de sua espécie, a qual induz a responder apropriadamente ao estímulo adequado do ambiente em que se encontra inserido.
3. Causa fisiológica intrínseca. Seu organismo possui um mecanismo de reconhecimento de fotoperíodo. Responde adequadamente à duração da luz do dia, período este modificado pelo inverno. Portanto, está pronto para migrar assim que o número de horas da luz do dia comece a se reduzir até determinado nível.
4. Causa fisiológica extrínseca. Um rouxinol migrou em 25 de agosto porque uma massa de ar fria com ventos do norte passou na área em que ele estava exatamente naquele dia. A queda da temperatura, associada às condições do clima naquele dia, afetaram o organismo do pássaro, ativando sua prontidão para migrar.

Mayr classifica essas causas em duas classes: causas próximas (3 e 4) e causas últimas (1 e 2). Os biólogos funcionalistas estão mais preocupados em descobrir as causas próximas, enquanto os evolutivos as causas últimas. Assim sendo, todo fenômeno possui um conjunto de causas próximas e um conjunto de causas últimas. Para Mayr, as primeiras estão relacionadas a eventos imediatos, relacionados ao funcionamento fisiológico do organismo (o mecanismo de reconhecimento fotossensível do rouxinol, por exemplo) e às interações do indivíduo com o contexto imediato (a reação do pássaro aos ventos frios do dia 25 de agosto). Afirma Mayr (1961):

“… causas próximas governam as respostas do indivíduo (e de seus órgãos) a fatores imediatos do ambiente, enquanto causas últimas são responsáveis pela evolução de um código de informação de um DNA particular, o qual cada indivíduo de cada espécie é dotado” (p. 1503).

Estas definições nos levam a entender os níveis de explicação de um determinado fenômeno, e aqui o comportamento pode muito bem ser incluído, dado o exemplo utilizado por Mayr (o comportamento do rouxinol) a fim de explanar suas proposições. No entanto, mesmo discutindo questões causais, que tipo de modelo seria adotado, já que em grande parte das ciências humanas, por exemplo, a concepção intencionalista encontra-se marcadamente presente? O próximo ponto abordado por Mayr é o da intencionalidade.

Teleologia

O grande problema de uso desta expressão, segundo Mayr, começou com a classificação aristotélica de causas, tendo uma de suas categorias intitulada “causas finais”, definida como o elemento “responsável por direcionar ordenadamente o alcance de um alvo ou objetivo previamente concebido”. Mas há fenômenos na natureza que não se enquadram nesta classificação. Mayr explica que a ideia de uma causa final (teleológica, intencionalista) é contrária ao modelo de seleção natural, pois leva à noção de haver um agente responsável pela movimentação dos fenômenos numa direção planejada. Eis uma afirmação de Mayr a respeito desta questão:

“As muitas filosofias dualísticas, finalísticas, e vitalísticas do passado meramente substituem a variável X desconhecida por outra diferente também desconhecida Y ou Z, denominando esses fatores como entelechiaou élan vital, o que não se configura como uma explicação. Não vou perder meu tempo demonstrando o quão equivocadas estas filosofias estavam” (p. 1503).

Deste modo, Mayr se afasta de propostas explicativas da seleção natural como sendo direcionada por um guia misterioso. Há uma questão, entretanto, que poderia ser questionável aqui: se a seleção natural não possui um mecanismo teleológico, como conceberíamos então sobrevivência e reprodução, já que são objetivos filogenéticos fundamentais na seleção natural e, portanto, um alvo? Mayr faz esta diferenciação. Ele se utiliza da expressão Teleonomiacunhada por Pittendrigh, a qual não possui relações nem similaridade ao termo aristotélico, mas propõe uma concepção de aperfeiçoamento genético através da adaptação controlada pela seleção natural. Mayr faz uma citação de Julian Huxley: “Teleonomia em biologia designa a aparente intencionalidade dos organismos e de suas características” (grifo nosso), mas não passa de uma aparência. A noção de teleonomia está relacionada aos processos de sobrevivência e reprodução, e a seleção natural atua de acordo com a adaptação às variações genéticas e ecológicas, de modo que não há espaço para perspectivas teleológicas, em que tudo estaria minimamente calculado e intencionado para se atingir determinado alvo. Afirma Mayr (1961):

“… A palavra intenção é singularmente inaplicável à mudança evolutiva, que é, afinal de contas, o que Darwin estava considerando. Se um organismo é bem adaptado, se apresenta uma aptidão superior, isto não é devido a qualquer intenção de seus ancestrais ou de alguma agência exterior, tal como “a natureza” ou “Deus”, que criou um plano ou design superior. Darwin, “varreu para fora tal teleologia finalística pela porta da frente” como Simpson (1960) certamente afirmou” (p. 1504).

Skinner leu e citou Mayr!

Farei menção a algumas citações de Skinner à Mayr. No artigo de 1983 intitulado “Can the Experimental Analysis of Behavior Rescue Psychology?”, Skinner cita uma entrevista dada por Mayr e seu livro “The Growth of Biological Thought” (Mayr, 1982). No artigo publicado pelo periódico The Behavior Analyst em 1983, Skinner faz uma série de observações acerca das mais variadas explicações para o funcionamento do comportamento, dentre elas a sociobiologia. Na discussão, Skinner faz uma crítica pertinente a alguns biólogos (mais especificamente a Herbert Spencer) que explicam comportamentos culturalmente selecionados com base em explicações unicamente filogenéticas, desconsiderando o segundo nível de análise, a ontogênese. Neste momento, Skinner analisa uma frase de Mayr sobre a composição e explicação física dos organismos e suas distinções da matéria inanimada, diferenças essas que seriam alicerçadas pelo nível de complexidade dos sistemas vivos e pela posse de um programa genético. Skinner comenta que até então os biólogos não definiam um organismo (ou sistema vivo) por sua organização ou complexidade, e complementa que um dos papéis importantes do programa genético seria também a prontidão (ou sensibilidade) do organismo às consequências de suas ações – seleção por consequências (Skinner, 1983).

Skinner também citou Mayr algumas vezes em uma conversa que teve com Edward Osborne Wilson (um importante biólogo evolucionista estadunidense, ícone da Sociobiologia) no dia 19 de novembro de 1987, transcrita e publicada por Paul Naour (2009) no livro “E.O. Wilson and B.F. Skinner: A Dialogue Between Sociobiology and Radical Behaviorism”. Skinner menciona a mesma questão da complexidade dos seres vivos a qual discutiu no artigo de 1983 citado acima.

Em “Beyond freedom and dignity” (Skinner, 1971), Skinner faz menção ao debate entre biólogos evolucionistas sobre o lugar do indivíduo na espécie para falar do lugar do indivíduo na cultura. E sobre esta discussão, Skinner sugere na seção de notas a leitura do artigo de Mayr (1959). A mesma discussão é feita em “Contingences of reiforcement: A theoretical analysis” (Skinner, 1969), em que Skinner cita a descrição de Mayr (1959) acerca das dificuldades dos biólogos do século XIX quanto à distinção entre espécies e indivíduos. Skinner utiliza a explicação de Mayr como análogo para falar de respostas e operantes (na nota 5.3 “Classe versus caso” na versão brasileira de 1984).

A parte 2 desta série trará a perspectiva do biólogo holandês Nikolaas Tinbergen.

Referencias

Andery, M. A. P. (2012). Paradigma entrevista: Candido V. B. B. Pessôa e Jan L. Leonardi entrevistam Maria Amalia Pie Abib Andery. Boletim Paradigma, 7, 21-27.

Diamond, J. (2005). Ernst Mayr (1904–2005). Nature, 433, 700-701.

Dittrich, A. (2008). Sobrevivência ou colapso? B. F. Skinner, J. M. Diamond e o destino das culturas. Psicologia: Reflexão e Crítica, 21(2), 252-260.

Mayr, E. (1959). Agassiz, Darwin and Evolution. Harvard Library Bulletin, 13(2), 165-194.

Mayr, E. (1961). Cause and Effect in Biology: Kinds of causes, predictability, and teleology are viewed by a practicing biologist. Science, 134(3489), 1501-1506.

Mayr, E. (1982). The Growth of Biological Thought: Diversity, Evolution, and Inheritance. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

Naour, P. (2009). E.O. Wilson and B.F. Skinner: A Dialogue Between Sociobiology and Radical Behaviorism. New York: Springer Science.

Sampaio, A. A. S. (2008). A quase-experimentação no estudo da cultura: análise da obra Colapso de Jared Diamond. Dissertação de Mestrado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo-SP.

Skinner, B. F. (1969). Contingencies of reinforcement: A theoretical analysis. Michigan: Prentice-Hall.

Skinner, B. F. (1971). Beyond freedom and dignity. New York: Alfred A. Knopf.

Skinner, B. F. (1983). Can the experimental analysis of behavior rescue psychology? The Behavior Analyst, 6, 9-17.

Skinner, B.F. (1981). Selection by consequences. Science, 213, 501-504

Vyse, S. A. (2001). World history for Behavior Analysis: Jared Diamond’s Guns, germs, and steel. Behavior and Social Issues, 11, 80-87.

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Classificação do artigo

Escrito por Tiago Zortea

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, onde atuou como pesquisador-bolsista do Ministério da Educação pelo Programa de Educação Tutorial em Psicologia. Possui mestrado em Psicologia pela mesma instituição na área de Evolução e Etologia Humana (Bolsista CAPES). Possui formação em Terapia Comportamental pelo Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento (ITCR) e atua em consultório particular no trabalho com crianças, adolescentes e adultos. Atualmente é pesquisador de PhD na University of Glasgow (Escócia, Reino Unido), membro do Suicidal Behaviour Research Laboratory, onde pesquisa sobre comportamento suicida e práticas parentais. É membro da British Psychological Society e revisor do periódico Archives of Suicide Research (International Academy of Suicide Research). Trabalha com os seguintes temas/áreas: Suicídio; Comportamento Suicida; Autolesão; Prevenção ao suicídio; Práticas parentais; Psicologia Clínica; Análise do Comportamento; Etologia Humana; Investimento Parental.

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