Há uns tempos falamos sobre os níveis de análise para a explicação do comportamento [1]. Cada um desses níveis é dedicado ao estudo de uma parte específica do comportamento, apesar de não ser tão fácil assim separar as variáveis que controlam nossas ações. Mas os esforços em estudar esses diferentes tipos de controle tem sido consideravelmente eficazes. A filogênese constitui-se como nível de seleção de propriedades anátomo-fisiológicas, determinadas respostas do organismo – reflexos incondicionados – a sensibilidade às consequências de comportamentos operantes e a sensibilidade diferenciada a eventos ambientais (Tourinho, Teixeira & Maciel, 2000). Esse tipo de característica fisiológica (denominada por alguns evolucionistas de “causas próximas”) só existe devido às contingências de adaptação evolutiva cujas pressões ambientais (ao longo de milhões de anos) selecionaram tal fisiologia em função da sobrevivência e da reprodução (causas últimas) (Izar, 2009; Wilson, 2008).
Se pensarmos que o humano assentado no sofá de um consultório possui todo o aparato biológico adaptado e que seu corpo e funcionamento também são herança de um processo que ocorreu com todos os membros de sua espécie, já temos então uma resposta para a questão que intitula nossa conversa: Pode! Mas pode com ressalvas, e estando em seu devido e exclusivo lugar. Como assim? Qual seria o lugar que a Teoria da Evolução poderia ocupar no consultório? Quando dizemos que há um lugar “devido” e “exclusivo” isto significa que existem critérios a serem respeitados no que diz respeito à inclusão de uma visão evolucionista ao trabalho terapêutico. Esses critérios precisam estar atrelados ao nível de análise ao qual pertence o conhecimento referido (neste caso, nos referimos à Teoria da Evolução por Seleção Natural), já que no consultório trabalhamos com o foco voltado majoritariamente aos processos ontogenéticos do comportamento (história de vida do sujeito). Deste modo, os problemas de pesquisa a serem levantados são distintos e levam a caminhos diferentes de trabalho, apesar de serem conhecimentos não-excludentes. Vale lembrar que uma visão evolucionista do comportamento estará sempre interessada em suas causas últimas. Vejamos a figura abaixo.
Eis então a forma mais adequada de permitir à Teoria da Evolução participar do processo terapêutico: buscar o entendimento das causas últimas do comportamento analisado, isto é, quais funções de sobrevivência e/ou reprodução a classe de respostas em questão possuíram durante o processo de seleção natural, e quais as relações entre as contingências de adaptação evolutiva (que selecionaram aqueles comportamentos) e as contingências atuais que controlam o repertório em análise.
Patologia, Normalidade e Adaptação
As doenças podem ser entendidas como estados fisiológicos que reduzem a habilidade funcional do organismo, direcionando-as abaixo dos níveis típicos da espécie; e saúde equivale ao funcionamento “normal”. Desta compreensão são extraídas as noções básicas de normalidade – por um viés estatístico, e de funcionamento, em termos de funções fisiológicas (Luz & Bussab, 2009). À partir desta noção médica, a psiquiatria trouxe ao campo do comportamento tal visão classificatória de normal e patológico que acabou por se integrar a alguns sistemas psicológicos.
Entretanto, se partirmos de uma noção Behaviorista Radical não nos atentaremos ao critério estatístico, mas sim ao de adaptabilidade. Ao contrário de algumas interpretações equivocadas sobre o que chamamos adaptação [2], este termo se refere à função de um repertório de comportamentos em contextos específicos, selecionado pelas consequências que produziu. Isto significa que todo comportamento é adaptativo por possuir uma função; é adaptativo porque é funcional. Se alguém emite uma classe de respostas obsessivo-compulsivas – tal como não pisar nas linhas da calçada por medo de que raios caiam do céu se o sujeito assim proceder, poder-se-ia dizer, a olhos leigos, que tal comportamento “não tem função”. Mas aí, retornamos novamente ao fato de que “função” é um conceito. Por um viés comportamental, podemos afirmar que este tipo de repertório possui uma função de esquiva (o sujeito responde a contingências de reforçamento negativo e goza de sentimentos de alívio dos respondentes de ansiedade ao emitir tais respostas de esquiva). Portanto, é uma forma adaptada de responder, possui uma função. Em outros termos, agir assim é a melhor forma que aquele sujeito encontrou para responder a determinadas contingências aversivas, o que muda completamente a ideia de adaptação.
Portanto, consideramos aqui que “doença” é uma expressão do corpo na direção da sobrevivência, é sinal de saúde. E esta noção também pode ser estendida ao campo comportamental quando falamos sobre adaptaçãoe função. Como uma ciência monista, excluímos também a dicotomia “normal x patológico”, tal como outras dualidades classicamente rejeitadas pelo Behaviorismo Radical (interno x externo, mente x corpo, consciente x inconsciente, social x individual, dentre outras). O principal critério utilizado pelos analistas do comportamento para intervenção é o sofrimento do sujeito (Banaco et al, 2012).
Esta noção de adaptabilidade também é extensiva aos processos filogenéticos. A diferença encontra-se na função. Na ontogênese a função diz respeito à produção de reforçadores (seleção por consequências) e na filogênese a função está relacionada à sobrevivência e reprodução (perpetuação genética). Um mecanismo adaptado é um agrupamento de processos decisórios geneticamente determinados, o qual resulta de avaliações custo-benefício em resposta a um arranjo específico de contingências ambientais (Crawford & Salmon, 2004). Isto não significa responder passivamente ao contexto, pois há uma busca por soluções e emissão de comportamentos que alterem o ambiente aversivo.
Psicopatologia e Evolução: formulando questões referentes às causas últimas
Se entendemos os seres humanos como uma espécie que possui um histórico evolutivo de aproximadamente seis milhões de anos, isto significa que algumas propriedades comportamentais poderão ser estudadas em termos de causas últimas, na ligação entre respostas comportamentais e seu valor adaptativo no sentido filogenético. De modo prático, isto se refere a perguntar se tal comportamento poderia ter contribuído para a sobrevivência de um indivíduo ou para sua perpetuação genética. Significa inferir contingências de adaptação evolutiva (com base nas descobertas da biologia, antropologia e paleontologia evolucionista) e testar a reprodução – mesmo que artificial, através de estudos – de propriedades desses contextos de seleção (Siegert & Ward, 2002). Luz e Bussab (2009) exemplificam: “reações emocionais de raiva, tristeza ou dor podem ser entendidas como adaptadas a eventos ameaçadores provenientes, respectivamente, de agressões, perdas ou injúrias, e tem sido consideradas promotoras de reestruturação cognitiva ajustada às demandas em questão” (p. 165)
Há, obviamente, aquelas enfermidades cujo principal fator etiológico encontra-se na herança genética do sujeito, que pode manifestar-se de acordo ou não com a trajetória de desenvolvimento (ontogênese) na interação gene-ambiente (Ridley, 2003). Exemplos de casos como este são o autismo e a esquizofrenia, que apresentam índices relativamente altos de herdabilidade.
Uma das principais questões que podem ser levantadas diz respeito à inserção dos seres humanos aos novos estilos de vida dos ambientes modernos que se contrastam às contingências de adaptação evolutiva para as quais os indivíduos possuem mecanismos adaptados. Sobre esse respeito, Nesse e Williams (1997) afirmam que muitos sintomas psiquiátricos acabam por não serem doenças em si, mas defesas, semelhante à febre e à tosse. Além disso, muitos dos genes que predispõem transtornos mentais são susceptíveis a terem benefícios adaptativos, muitos dos fatores ambientais que produzem perturbações mentais estão provavelmente relacionados aos novos aspectos da vida moderna, e muitos dos fatores mais infelizes da psicologia humana não são falhas, mas compromissos de adaptabilidade em função da perpetuação da vida.
Na história dos seres humanos, as grandes civilizações, o avanço da ciência, da tecnologia, a complexidade da vida contemporânea são fatores absolutamente novos se comparados ao tempo levado para o desenvolvimento da seleção natural dos mecanismos comportamentais de sobrevivência e perpetuação genética. Para Luz e Bussab (2009) tanto no caso das patologias preponderantemente genéticas quanto naquelas em que o peso do ambiente é maior, há determinantes genéticos: para as primeiras há uma relação mais fortemente associada entre a carga genética e o desenvolvimento da enfermidade, e para as segundas há uma adaptação natural, geneticamente representada, dos indivíduos a um ambiente ancestral, que se mostra desajustada num ambiente subitamente modificado. Em outras palavras, temos um corpo selecionado para sobreviver nas intempéries das savanas, mas que habita numa selva de pedras e arranha-céus, com telefones celulares, e-mails, pressões, cobranças e interações sociais de altíssimo nível de complexidade.
Mais do que analisar isoladamente as doenças de classificação psiquiátrica (“pânico”, “depressão”, etc), importa-nos aqui analisar os respondentes e operantes envolvidos nessas psicopatologias e suas possíveis funções filogeneticamente adaptativas. Os respondentes emocionais, por exemplo, preparam e modulam o comportamento e não somente do sujeito que o emite: esses reflexos transmitem-se, eliciam respondentes em outros indivíduos, discriminam respostas operantes, o que talvez tenha por função principal certo tipo de comunicação: acredita-se hoje, retomando a hipótese levantada por Darwin, que a emoção seja basicamente adaptativa. Ela seria um mediador entre a estimulação externa (estímulos com função eliciadora e discriminativa) e o comportamento, um avanço evolutivo para além do puro automatismo instintual, um modo de influenciar a função e a topografia do comportamento sem tirar-lhe a flexibilidade. A alegria, por exemplo, permite ao indivíduo orientar-se a partir de marcos favoráveis. Já a tristeza permite-lhe mobilizar e atrair apoio em situações de desamparo, tal como reorientar o curso das próprias repostas operantes, e assim por diante (Luz & Bussab, 2009; Kennair, 2003; Siegert & Ward, 2002).
Emoções de aborrecimento ou raiva, por exemplo, podem ser consideradas como reações corporais com funções de defesa, na mesma medida em que dores ou tosses são defesas do organismo; da mesma maneira tanto a capacidade de humor efusivo quanto a de humor melancólico têm sido consideradas mecanismos para ajustar a alocação de recursos em função de oportunidades existentes. Alguns pesquisadores (e.g, Luz & Bussab, 2009; Kennair, 2003; Nesse & Williams, 1997; Siegert & Ward, 2002) salientam que o sentimento de tristeza tenha evoluído como resposta a situações de perda, sinalizando a possibilidade de que o indivíduo esteja fazendo algo errado. A tristeza agiria de modo a mudar de alguma forma o comportamento, do otimismo para o realismo, por exemplo, aumentando a probabilidade de impedimento de novas perdas, na medida em que agiria como uma espécie de alerta diante de uma conduta inadequada, à semelhança da reação à dor física.
Nos transtornos de ansiedade, a preparação para a defesa diante de um perigo real ou de um sinalizador associado à uma possível situação de risco, o medo, como aviso de perigo iminente, são formas de autoproteção. Os sintomas físicos do medo e do pânico são preparatórios para ação: o batimento cardíaco é acelerado, a adrenalina é secretada, estoques de energia são mobilizados no fígado e liberados na corrente sanguínea, o sangue é redistribuído a partir dos órgãos internos para carregar oxigênio e energia para os músculos e o cérebro; ao mesmo tempo, a tireoide é estimulada para aumentar a eficiência do metabolismo corporal; os glóbulos vermelhos são liberados no baço para elevar a capacidade de carregar oxigênio no sangue, etc. Todas essas alterações fisiológicas preparam o organismo para responder de maneira específica à luta ou à fuga (Luz & Bussab, 2009; Nesse & Williams, 1997). As fobias mais comuns, como de cobras e de aranhas, podem estar relacionadas a estímulos naturalmente ameaçadores no ambiente ancestral, mas que obviamente foram condicionadas no percurso ontogenético do sujeito. Há também outras possibilidades de análise tal como sobre a chamada Depressão Pós-Parto, discutida por nós tempos atrás, assim como o fenômeno da agressividade.
É importante ressaltar que as explicações filogenéticas possuem um limite, o qual precisa necessariamente ser destacado. Há a tentativa por parte de alguns evolucionistas de explicar todos os fenômenos comportamentais partindo de um ponto de vista filogenético último exclusivo, o que pode ser algo bastante complicado. Se o nível de análise filogenético fosse suficiente para nos trazer todas as explicações que precisamos acerca do comportamento humano, a necessidade de níveis ontogenéticos e culturais seria inexistente. Uma das grandes críticas realizadas às explicações evolucionistas das psicopatologias é a carência de estudos empíricos que comprovem as hipóteses levantadas pelos pesquisadores (Gilbert, 2001). A compreensão de um fenômeno, explorando ao máximo suas possibilidades de análise e explicação, é algo imprescindível. Entretanto, retornando à nossa questão inicial, as restrições para a Teoria da evolução dentro consultório precisam estar bastante marcadas, pois as intervenções devem-se basear em análises comportamentais pertencentes ao nível ontogenético – principal nível de explicação e controle dos comportamentos na idade moderna.
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Notas:
[1] Para maior compreensão sobre causas próximas e causas últimas, veja os textos “Biologia e Análise do Comportamento: Diálogos sobre causalidade” – Parte 1 e Parte2.
[2] Lembro-me de ouvir na graduação uma professora dizendo acerca da Análise Experimental do Comportamento: “Onde há poder há resistência! Nosso compromisso como seres vivos é produzir resistência ao poder, o qual nos quer controlar a todo instante. Se um rato não quer pressionar a barra, isto significa que a natureza resiste, que até o rato resiste ao poder do experimentador e à adaptação. O poder quer que nos adaptemos, mas nós temos a capacidade de não nos adaptar ao que nos é imposto”. A professora partiu do pressuposto de que a noção behaviorista radical de adaptação correspondia ao mesmo sentido por ela utilizado, pertencente à abordagem institucionalista. Desconsiderou, portanto, que a palavra adaptação e suas derivações podem conter significados distintos e até mesmo antagônicos àqueles adotados por ela.
Referências
Banaco, R. A., Zamignani, D. R., Martone, R. C., Vermes, J. S., Kovac, R. (2012). Psicopatologia. In Hubner, M. M. C. & Moreira, M. B. Temas clássicos da psicologia sob a ótica da análise do comportamento. (pp. 154-166). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Crawford, C., & Salmon, C. (Eds.). (2004). Evolutionary psychology, public policy and personal decisions. Psychology Press.
Gilbert, P. (2001). Evolutionary approaches to psychopathology: The role of natural defences. Australian and New Zealand Journal of Psychiatry, 35(1), 17-27.
Izar, P. (2009) Ambiente de Adaptação Evolutiva. In E. Otta, & M. E. Yamamoto (Orgs.), Psicologia Evolucionista (pp. 22-32). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Kennair, L. E. O. (2003). Evolutionary psychology and psychopathology. Current Opinion in Psychiatry, 16(6), 691-699.
Luz, F., Bussab, V. S., (2009). Psicopatologia Evolucionista. E. Otta, & M. E. Yamamoto (Orgs.), Psicologia Evolucionista (pp. 163-175). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Nesse, R., & Williams, G. (1997). Are mental disorders disease? In S. Baron-Cohen (Ed.), The mal-adapted mind: Classic readings in evolutionary psychopathology (pp. 1–22). Hove, UK: Psychology Press.
Ridley, M. (2003). Nature via nurture: Genes, experience, and what makes us human. London: Harper Collins.
Siegert, R. J., & Ward, T. (2002). Clinical psychology and evolutionary psychology: Toward a dialogue. Review of general psychology, 6(3), 235.
Tourinho, E. Z., Teixeira, E. D. R., & Maciel, J. M. (2000). Fronteiras entre análise do comportamento e fisiologia: Skinner e a temática dos eventos privados. Psicologia: Reflexão e Crítica, 13(3), 425-434.
Wilson, D. S. (2008). Evolution for Everyone: How Darwin’s theory can change the way we think about our lives. New York: Bantam Dell.