Modelando repertório em sessão

Cristina (caso fictício) veio procurar por terapia há cerca de 1 ano e tem demonstrado grande dificuldade em lidar com seus problemas. Quando está em sessão, conta facilmente sobre as coisas que a incomodam em seu dia a dia, comentando que seus companheiros de trabalhos são distantes, que gostaria de ter mais amigos e que confia muito pouco nas pessoas. Conta também que seu irmão, com quem vive, demonstra irritar-se facilmente com ela, o que gera muitas brigas e desentendimentos. O fato é que Cristina sempre se sentiu incompreendida e solitária. Sem saber ao certo como faz isso, acaba sentindo que afasta as pessoas que mais queria próxima. Se irrita com seu irmão, mas não se envolve muito em brigas e reais discussões com ele ou com os demais. Sente apenas que há um vidro, como um muro invisível entre ela e todos os outros.
Conta que seus pais morreram quando ela tinha 18 anos e ela e o irmão foram morar com a avó que não tinha muitas condições de sustenta-los. Eles aprenderam rapidamente que deveriam ajudar a avó com os afazeres domésticos, ao mesmo tempo em que deveriam buscar formas de ganhar dinheiro o quanto antes. Conta que seu irmão sempre repetia essas ideias, mas raramente fazia coisas concretas para ajudar em casa ou financeiramente. Ela, por sua vez, assumiu também a responsabilidade de cuidar dele, 3 anos mais novo do que ela, e tentou poupá-lo ao máximo dessas obrigações. Sentia que deveria servir aos outros, assumindo para si responsabilidades que não eram dela e cobrava-se demais para fazer tudo da melhor forma possível. Sente que preocupou-se em dar o menor trabalho possível para a avó, que na visão dela, já estava fazendo um favor imenso de abrigá-los.

Aprendeu a “ser invisível” e a deixar de lado suas necessidades pessoais para poupar os outros do trabalho que isso poderia trazer. Ao mesmo tempo, sonhava em conquistar seus sonhos, como ter uma família, filhos, seu próprio carro, mas não sabia o que deveria fazer para atingir esses objetivos.

Cerca de 3 anos depois de terem ido morar com a avó, esta veio a falecer, deixando para eles o apartamento onde moravam, seu único bem. Recentemente, ao procurar por terapia, aos 27 anos, Cristina morava com o irmão nesse apartamento e sentia que sustentava-o, já que ele fazia pouco esforço para ajudá-la com o que quer que seja. Constantemente surgiam conflitos em relação a isso e era frequente Cristina sentir que deveria cuidar dele e não lhe dar preocupações apesar de pensar, ao mesmo tempo, que as coisas deveriam ser diferentes.
Cristina se formou em publicidade recentemente e trabalha em uma agência de propagandas há cerca de dois anos. Tem bom relacionamento com os colegas, mas sente-se bastante distante de todos os que estão ali. Faz seu trabalho sem pedir ajuda a ninguém mesmo quando tem dúvidas de como agir.
Em sessão, Cristina sempre mostrou-se bastante agradável e demonstrou bastante vontade e disposição de seguir o que é discutido em sessão. Entende claramente as análises feitas em sessão sobre as formas como se comporta e é capaz sozinha de fazer essas análises. Porém, tem encontrado grande dificuldade em mudar suas atitudes em seu dia a dia, reconhecendo que permanece repetindo sempre os mesmos padrões. Cobrava-se muito por isso e frequentemente demonstrava muita culpa em não conseguir mudar e em não ser capaz de alcançar os progressos esperados em terapia e que ela acreditava que eu esperava.
Além disso, mostrava-se distante na sessão… apesar de muito agradável sempre, Cristina agia com grande respeito em relação a mim, tratando-me como a profissional que poderia ajudá-la a melhorar. De fato, esse era meu papel já que sou sua terapeuta, mas tratava-me como se eu soubesse as soluções que ela procurava ou como se eu fosse uma especialista em sua vida. Essa postura me incomodava, tanto pela minha consciência de que eu não tinha as respostas que ela procurava como pela distância que sentia dela ao me ver como uma profissional que tem respostas. Comecei a perceber que a facilidade que ela tinha em me contar as dificuldades pelas quais passava (e que não contava para mais ninguém) não era fruto de confiança em mim, mas sim por acreditar que esse era seu papel: me dar informações para que eu a entendesse e dissesse a ela o que fazer.
Como uma terapeuta que trabalha com FAP (Psicoterapia Analítica Funcional, ou em inglês Functional Analytic Psychotherapy), comecei me sentir incomodada de ser colocada nesse papel e compreendi que a distância que sentia em relação a ela era decorrente exatamente desse tipo de postura dela. Ela tentava ser a cliente exemplar (ao menos na forma como ela acreditava que seria exemplar), assim como ela tentava se portar em todos os âmbitos da vida dela, tentando ser a irmã exemplar, a funcionária exemplar, buscando a perfeição em todos esses contextos. Além disso, ao me ver como a profissional que a ajudaria a solucionar seus problemas, alguém que precisava de informações sobre ela para fazer análises, construía entre nós uma barreira (o mesmo muro de vidro) deixando de ver nossa relação como real.
Lembro-me de ter questionado algumas vezes qual o tipo de relação que ela achava que tinha ou que esperava ter comigo ou mesmo sobre a possibilidade dela apresentar as dificuldades dela do dia a dia em sessão, mas ela mal compreendia o que eu estava perguntando, sempre citando de diversas formas que eu era a profissional que a ajudaria e que confiava no meu trabalho. Eu tentava evocar algumas aproximações, explicitando o quanto eu me importava com ela, de uma forma mais pessoal, na tentativa de ajudá-la a ver que ela era real para mim, não uma cliente distante, com a qual eu executava meu trabalho, mas alguém que me causava impactos em sessão e fora dela, quando me lembrava dela. Em geral ela agradecia, mas não se aproximava mais.
Essa aproximação é considerada muito importante para a FAP. O principal pressuposto dessa abordagem é auxiliar o cliente em seus problemas interpessoais através da própria relação terapêutica, modelando nessa relação o repertório do cliente que tem estado ausente, dificultando relacionamentos saudáveis. Ou seja, no caso de Cristina, para ajudá-la a se aproximar dos demais, eu deveria ajudá-la a se aproximar de mim primeiramente. Eu precisaria ajudá-la a vivenciar nossa relação como sendo real, ajudá-la a me ver como uma pessoa real que poderia ou não merecer a confiança dela, ajudá-la a enxergar que uma impacta a vida da outra, de forma pessoal, ainda que mantivéssemos nossa relação dentro da ética terapêutica. Eu sabia que deveria ajudá-la a observar como se sentia realmente em relação a mim ao invés de se esquivar desses sentimentos ao colocar tudo no âmbito profissional. E precisaria ajudá-la a aceitar que ela causava impactos em mim, durante nossas sessões. Em outras palavras, ela precisava compreender que podíamos e sentíamos afeto, irritação, saudades, medo, desapontamento e vários outros sentimentos uma em relação a outra, como em um relacionamento normal. E ao lidarmos com todos esses sentimentos em sessão, estaríamos desenvolvendo habilidades necessárias em relacionamentos interpessoais. Ou seja, um novo repertório estaria sendo modelado em sessão e poderia ser aplicado fora de sessão, em outros relacionamentos.
Expliquei toda essa racional da FAP a ela e ela aceitou bem e disse que estaria disposta a qualquer coisa que eu sugerisse para melhorar. Porém, minhas tentativas de evocar (Regra 2) tais aproximações foram frustradas, assim como as tentativas de ajudá-la a não ser a cliente perfeita… e tentei ao máximo ficar atenta a qualquer aproximação que ela pudesse demonstrar.
Certo dia, ela chegou à sessão de terapia mostrando-se bastante apreensiva. Disse que precisava fazer uma pergunta a mim e mostrou-se ainda mais formal, distante e ansiosa do que o normal.
Ela disse que teria um compromisso de trabalho na semana seguinte bem no horário da sessão. Contou que poderia ter pedido a seu chefe para que o compromisso fosse mais tarde. Ela disse acreditar honestamente que seu pedido seria atendido por ele, já que sabia que ele tinha maleabilidade de horários e ela já havia presenciado colegas pedindo o mesmo sem encontrarem dificuldades. No entanto, ela não havia tido coragem de pedir a mudança de horário a ele. Sentia-se envergonhada por não conseguir algo que considerava tão bobo e com isso, “cheia de dedos” perguntou a mim se seria possível mudar o horário da nossa sessão na semana seguinte.

Percebi nessa situação um momento precioso para me aproximar (Regra 1). Ao vê-la tão ansiosa e ainda mais formal ao me fazer esse pedido, supus que, naquele momento, ela estava tomada por sentimentos desagradáveis relacionados a minha pessoa, em outras palavras, ela estava talvez com receio de eu me aborrecer com o pedido dela ou com a falta de habilidade dela com o chefe ou algo do gênero. E me intriguei com esse medo, me perguntando qual seria a consequência aversiva que ela estava com receio de receber em função do pedido. Nesse momento, nossa relação pareceu real, ela estava cautelosa sobre o impacto que causaria em mim e possivelmente sobre o impacto que eu causaria nela dependendo de como eu respondesse. Pode parecer um exemplo bobo, mas para Cristina, era muita coisa. Ela poderia ter se calado e apenas avisado que faltaria, como já fez antes. Mas dessa vez ela arriscou me fazer esse pedido, apesar da ansiedade que o acompanhava. Era o CCR2 que há tanto tempo eu esperava e tentava evocar em vão. Fazer esse pedido a mim, bobo para tantos clientes, era para ela um avanço em termos de assertividade, de aproximação em relação a mim e de tomada de risco.

Tratei logo de reforçar naturalmente tal pedido (Regra 3). Como fazer isso? Bom, ao reconhecê-lo como um CCR2 fiquei verdadeiramente satisfeita por ela ter conseguido me pedir a mudança de horário. Como me importo de verdade com sua melhora, qualquer coisa que eu reconheça como indo nessa direção me traz sentimentos muito agradáveis e demonstrações desses sentimentos a ela deveriam ser reforçadores naturais ao pedido dela, afinal é esse tipo de interação que normalmente é valorizado em relacionamentos interpessoais. Sendo assim, falei que poderíamos sim tentar uma mudança de horário para a semana seguinte e que ficava feliz que ela estivesse conseguindo pedir a mim o que havia sido difícil com seu chefe. Inicialmente foi difícil acharmos um horário em comum, mas acabamos conseguindo. Mas mesmo que não tivéssemos encontrado possibilidades, acredito que, para Cristina, minha disposição em tentar já seria por si só reforçadora. Isso porque ela pareceu bastante aliviada, muito mais tranquila e informal, quando abri minha agenda e começamos a procurar por um horário.

Mais tarde, perguntei a ela como havia sido me fazer tal pedido (Regra 4) e pela primeira vez ela descreveu ter ficado nervosa com algo diretamente relacionado a mim. Mas que ficava aliviada por ter conseguido e por ver minha disponibilidade. Tratei de descrever a ela a interação que tivemos (Regra 5), mostrando como uma pode afetar a outra de maneiras muito pessoais e que, ainda numa relação terapêutica, sentimentos intensos podem surgir. Ela ficou surpresa ao constatar aquilo que eu vinha falando há tanto tempo e que soava tão estranho a ela.

Depois disso, outras situações desse tipo tem ocorrido e vem sendo mais natural para ela entender o que quero dizer com construirmos uma relação real. Ela tem se mostrado menos informal e mais próxima de mim, se interessando e se preocupando inclusive com o impacto que ela me causa em sessão. Certamente esse não é o passo final desse processo de melhora: é essencial que isso passe a acontecer também em seus relacionamentos interpessoais diários, através da generalização das melhoras obtidas em sessão para fora dela. Mas como todo processo de modelagem, essa mudança deve ocorrer aos poucos.
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Escrito por Alessandra Villas-Boas

Possui graduação em Psicologia (2003) e mestrado em Psicologia Experimental, ambos pela Universidade de São Paulo (2006), tendo o último recebido menções de distinção e Louvor pela banca examinadora. Tem experiência na área clínica, tendo trabalhado com atendimento infantil, de adulto, de casal, orientação profissional e como supervisora; experiência em docência universitária, tendo ministrado disciplinas de Análise do Comportamento; e experiência como acompanhante terapêutico. É Coordenadora Editorial do Boletim Contexto, uma publicação da ABPMC. Atualmente, é doutoranda no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo, investigando experimentalmente os mecanismos de ação da Psicoterapia Analítica Funcional (FAP), além de investigar suas formas de ensino e formação.

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