
Pouco antes da pandemia, eu tive um aluno que atuava como coach. Nunca fomos além dos cumprimentos de corredor, muito menos entabulamos qualquer debate propriamente dito, mas eu, não sem alguma angústia, algumas vezes imaginei que um dia talvez ele pudesse iniciar uma conversa mais ou menos assim:
– Professor, gostei muito dessa corrente filosófica que o senhor apresentou, o pragmatismo. É totalmente coerente com a minha prática.
– Maravilha, meu caro. Qual é mesmo a sua prática?
– Sou coach quântico emocional.
– …
– Então, adorei isso que o Skinner falou: o que torna uma proposição verdadeira é se ela permite à pessoa que a segue prever e controlar os fenômenos, e não a concordância de outras pessoas…
– Bem, de fato, o Skinner diz isso, mas…
– … então, se minha prática está dando certo para mim e para os meus clientes, então está tudo muito bem.
– Não é bem assim…
– Eu acredito que é, professor, e pensar desse modo ajuda muito a dar sentido a tudo que eu vivencio. É como disse o William James, esse grande filósofo pragmatista: as crenças servem para organizar nossa experiência. Até decorei aquela frase dele que o senhor colocou no slide outro dia:
“qualquer ideia que nos leve de forma frutífera de uma parte da nossa experiência a outra, conectando as coisas de maneira satisfatória, funcionando com segurança, simplificando, economizando esforço — é verdadeira nessa medida”.
– Veja bem, James escreveu isso, mas…
– Deixe-me só concluir. Considere o exemplo da crença de que minhas ideias fazem com que meu cérebro gere padrões vibratórios que influenciam o universo e cocriam o meu sucesso. É uma ideia simples, que me faz economizar bastante esforço, diferentemente de tantas teorias complicadas que vemos por aí. Além disso, ela tem me trazido cada vez mais clientes, o que mudou meu padrão de vida e de minha família.
– Mas seria necessário examinar se de fato esse sucesso ocorreu e se suas crenças têm realmente alguma coisa a ver com isso.
– Ora, mas eu já examinei. Nas minhas redes sociais eu só falo sobre minhas crenças, o número dos meus seguidores aumenta exponencialmente e eu acabo de adquirir o meu terceiro imóvel. Você não acredita na teoria vibracional do sucesso, não é?
– Não, não acredito.
– E quantos seguidores o senhor tem? Quantos imóveis?
– Isso não vem ao caso.
– Já eu acho que isso vem totalmente ao caso. É uma evidência límpida do que funciona e do que não funciona. É a confirmação da minha crença.
– Eu entendo o que você está dizendo, mas sua interpretação sobre o behaviorismo radical está incorreta. Isso vai ficar nítido na próxima aula, em que vamos explicar por que os behavioristas dizem que a mente não explica o comportamento.
– Sim, sim, eu vi por cima essa parte do conteúdo e a analisei como um bom pragmatista. Como o senhor sabe, a eficácia que uma proposição proporciona não é o único critério. Há também a coerência com as crenças anteriores. Essa história de deixar a mente de lado não é compatível com minha teoria vibracional do sucesso, portanto, eu vou descartá-la. Acho que vou até faltar a próxima aula e voltar apenas quando o tema for reforçamento positivo, porque a positividade é uma peça-chave no meu modo de ver o mundo. Inclusive, se o senhor topar, podemos até fazer uma colab sobre o tema, para o senhor ganhar uns seguidores.
– Obrigado, mas não.
***
É bastante comum que os analistas do comportamento digam que são pragmatistas. Mas por que o dizem? Os motivos variam. Em muitos contextos, o objetivo consiste em se livrar de algum rótulo incômodo. Em seu seminal artigo de 1945, On the operational definition of psychological terms, Skinner queria deixar evidente que discordava da teoria da verdade por consenso, segundo a qual apenas fenômenos passíveis de observação pública poderiam ser estudados cientificamente. Essa restrição negaria à ciência a possibilidade de estudar experiências subjetivas, que podem ser diretamente observadas unicamente pelo próprio sujeito que as vivencia. Esse critério é defendido por alguns teóricos positivistas do Círculo de Viena e por aqueles que Skinner chamou de behavioristas meramente metodológicos. O Behaviorismo Radical, segundo seu criador, distingue-se nitidamente dessas correntes de pensamento, pois adota o critério pragmático de verdade:
“O critério último para avaliar a validade de um conceito não é se duas pessoas chegam a um acordo, mas sim se o cientista que utiliza o conceito consegue operar com sucesso sobre o seu material — sozinho, se for necessário. O que importa para Robinson Crusoé não é se ele está concordando consigo mesmo, mas se está obtendo algum progresso no controle da natureza” (Skinner, 1945/1984, p. 552)
Outro autor muito influente entre os analistas do comportamento, William Baum, também defende essa distinção entre Behaviorismo Radical e Behaviorismo Metodológico, articulando-a com base na oposição entre pragmatismo e realismo:
“Uma visão mais antiga, o behaviorismo metodológico, baseava-se no realismo. … os behavioristas metodológicos pensavam que o único caminho para uma psicologia científica seria por meio de métodos que situassem o comportamento no mundo objetivo, o mundo que todos compartilham e sobre o qual poderiam concordar” (2019, p. 54).
Um primeiro problema a destacar nessa estratégia de contrastar o pragmatismo com outras formas de pensar é que ela frequentemente utiliza espantalhos argumentativos, retratando de modo simplificado e impreciso o alvo das críticas, a fim de facilitar sua refutação. No artigo de 1945, Skinner preferiu não examinar os detalhes de alguma teoria da verdade rival, limitando-se a criticar por alto o que ele descreveu como a “árida filosofia da verdade por consenso”. Baum consegue ir além, atingindo níveis impressionantes de supersimplificação:
“As ideias dos behavioristas contemporâneos sobre ciência diferem daquelas que foram expressadas pelos primeiros behavioristas e por muitos pensadores anteriores ao século XX. O behaviorismo radical está de acordo com a tradição filosófica conhecida como pragmatismo, ao passo que os pontos de vista anteriores derivaram do realismo“. (p. 40)
Não é necessária muita erudição para constatar que é totalmente despropositado agrupar, como um conjunto caracterizado por uma única teoria da verdade, todas as formas de pensar distintas do Behaviorismo Radical. Outra caracterização imprópria ocorre neste trecho: “O realismo pode ser contrastado com o pragmatismo, uma visão que foi desenvolvida por filósofos nos Estados Unidos, particularmente Charles Peirce e William James” (p. 49). Como observa Haack (1978), Peirce, apesar de considerar o pragmatismo uma excelente forma de elucidar conceitos, não renuncia ao pressuposto realista, sobre o qual fundamenta sua concepção de verdade.
Caso deixemos de atentar ao modo como os behavioristas radicais caracterizam as teorias da verdade rivais e direcionemos nosso foco para o que diz a tese pragmatista, é possível observar um problema bem mais central. Em Sobre o Behaviorismo, Skinner sintetiza a concepção pragmatista de verdade da seguinte forma: “Uma proposição é ‘verdadeira’ na medida em que, com sua ajuda, o ouvinte responde de forma eficaz à situação que ela descreve” (1974, p. 235). Ora, essa não é uma caracterização do conceito de verdade, mas a construção de um conceito distinto, que não corresponde aos modos como falamos da verdade, seja na linguagem cotidiana, na prática científica ou na reflexão filosófica. Existem inúmeros casos em que uma proposição pode ser falsa e ao mesmo tempo proporcionar uma interação eficaz com o ambiente. Imaginemos uma pessoa interessada em atrair a atenção dos participantes do Encontro Cearense de Análise do Comportamento. Em momentos estratégicos, ela diz a seguinte frase:
Skinner nasceu em Itapipoca.
Essa fala poderia despertar a curiosidade de muitos daqueles analistas do comportamento, auxiliando o falante a atingir seu objetivo. Mas independentemente das reações dos ouvintes, a proposição continua sendo falsa, pois o que determina seu valor de verdade é o lugar em que Skinner efetivamente nasceu e não os efeitos que ela produz. Algo similar ocorre no caso do meu ex-aluno coach. O fato de ele conseguir muito retorno financeiro com suas crenças de que supostas vibrações emitidas por seu cérebro alteram a realidade e produzem o seu sucesso não torna as afirmações dele verdadeiras, apesar de elas proporcionarem uma interação eficaz com os clientes.
Os exemplos acima deixam evidente que verdade é verdade e eficácia é eficácia. Os analistas do comportamento têm plena ciência dessa distinção, ainda que repitam com frequência o mantra pragmatista. Assim, frequentemente ocorrem incoerências entre o discurso sobre a verdade e o comportamento teórico e prático dos behavioristas radicais, de maneira que suas considerações sobre a natureza da verdade muitas vezes destoam dos critérios que de fato orientam a prática investigativa dos analistas do comportamento. A argumentação de Baum contra o mentalismo exemplifica esse tipo de incoerência:
“a mente e todas as suas partes e seus processos são fictícios. Dizer que a mente é fictícia significa dizer que ela é inventada, simulada. Eu tenho uma mente tanto quanto tenho uma fada madrinha. Posso falar com você sobre minha mente ou sobre minha fada madrinha; isso não torna nenhuma delas menos fictícia” (p. 63).
Vimos anteriormente que Baum rejeita a premissa realista, mas, para fundamentar sua posição antimentalista, ele recorre à ideia de que devemos abandonar conceitos que se referem a entidades fictícias, ou seja, que não existem na realidade. Diante dessa reaproximação com o realismo, nosso coach quântico poderia replicar: se minha fada madrinha, fictícia ou não, está me trazendo clientes e dinheiro, pode deixá-la exatamente onde ela está. Afirmando isso, ele estaria sendo mais coerente com a tese pragmatista que o próprio Baum.
Outra passagem de Compreender o Behaviorismo que destoa acentuadamente do modo de fazer ciência dos behavioristas radicais afirma que “o mais coerente com o pragmatismo seria simplesmente abandonar totalmente os dois termos, subjetivo e objetivo” (p. 52). Ora, distinguir entre proposições objetivas e subjetivas é indispensável à formação de um cientista. É por meio dessa distinção que os aprendizes compreendem que é necessário diferenciar os fatos de suas impressões sobre os fatos. Abolir o uso desses termos inviabilizaria a produção de relatos apropriados aos objetivos da ciência. Se seguíssemos essa recomendação, o resultado provavelmente seria a substituição dos rigorosos textos científicos por uma multiplicidade de verbalizações despadronizadas, indiscerníveis de um amontoado de opiniões postadas em redes sociais.
Ao criticar a teoria da verdade por consenso público, Skinner também se distancia dos próprios parâmetros que ele efetivamente seguiu ao conduzir suas pesquisas experimentais. Ninguém faz ciência simplesmente alegando que “está obtendo algum progresso no controle da natureza”. Uma contribuição científica genuína requer um contexto de validação intersubjetivo, em que a qualidade das evidências produzidas possa ser verificada por terceiros. Sem isso, como viríamos a saber se o controle da natureza que alguém diz ter alcançado é controle de fato e não uma ilusão? Como observa Carvalho Neto (2011), “o equívoco … parece residir na interpretação de que a observação pública é o inimigo do “bom” behaviorismo. Ela foi e é crucial para uma ciência do comportamento”. Essa constatação é tão óbvia que chega a ser estranho que alguém precise escrever um artigo sobre isso. Qualquer pessoa que conheça minimamente a Análise do Comportamento sabe que seu vocabulário técnico é construído, preferencialmente, em meio a condições privilegiadas de controle e observação pública do comportamento. Em defesa de Skinner, cabe ressaltar que, não obstante suas críticas à noção de verdade por consenso, especialmente em Comportamento Verbal, o autor interpreta a ciência como um empreendimento comunitário, possível apenas através da criação de contingências especiais que controlam os comportamentos dos indivíduos de formas específicas. À luz dessa concepção, os acordos intersubjetivos são requisitos indispensáveis à prática científica.
É possível sintetizar minha crítica da seguinte maneira: enquanto teoria da verdade, o pragmatismo pode até ser útil, a depender do contexto, mas não é verdadeiro. Em diversos momentos, teóricos behavioristas se caracterizaram como pragmatistas no intuito de se distanciar de certas correntes de pensamento, aparentemente sem perceber que esse mesmo movimento os aproxima de perspectivas bem mais problemáticas. Não vale a pena se distanciar do positivismo, do behaviorismo metodológico e assim por diante, se o preço disso é o alinhamento, ainda que involuntário, a discursos pseudocientíficos como os de coaches quânticos e consteladores familiares.
É importante, entretanto, ressaltar que essa crítica se restringe ao pragmatismo compreendido como uma teoria da verdade. Essa não é a única forma de usar o termo pragmatismo, como veremos no próximo texto. Até lá.
Referências
Baum, W. M. (2019). Compreender o behaviorismo: comportamento, cultura e evolução (3ª ed., V. F. da Cunha, Trad.). Autêntica. (Original publicado em 2017)
Carvalho Neto, F. (2011). A observação pública no behaviorismo radical: considerações sobre um equívoco. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 13(3), 113–125.
Haack, S. (1978). Philosophy of logics. Cambridge University Press.
James, W. (1907). Pragmatism: A new name for some old ways of thinking. Longmans, Green and Co.
Skinner, B. F. (1974). Sobre o behaviorismo (J. C. S. Bruni, Trad.). Cultrix. (Original publicado em 1974)
Skinner, B. F. (1984). On the operational definition of psychological terms. In C. E. Skinner (Ed.), The behaviorism of B. F. Skinner: A synthesis (pp. 541–553). University Press of America. (Trabalho original publicado em 1945)
Skinner, B. F. (1957). Verbal behavior. Appleton-Century-Crofts.