Relato de uma psicóloga e ativista do combate a violência sexual infantil que teve o “maio laranja” mais agitado e profícuo da sua vida (até o momento)

O artigo a seguir não se propõe a compartilhar conhecimento teórico a respeito do tema do MAIO LARANJA e LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTIL. A ideia, hoje, é dividir com o leitor um pouco das experiências que tive neste último mês de maio, partindo do pressuposto de que entrar em contato com experiências alheias também é uma forma de transmitir e adquirir conhecimento. Uma forma afetiva, e, creio eu, efetiva! Dito isso, vamos lá!

Eu, ativista do enfrentamento a violência sexual infanto-juvenil, palestrante, criadora de conteúdo, psicóloga de gente grande, que, quando pequena, passou por isso, e, anterior a tudo isso, eu mesma, uma vítima e sobrevivente, sonho com o dia em que todos os meses do ano sejam laranja, não apenas maio, porque crianças e adolescentes não têm seus direitos a proteção e dignidade sexual violados somente no mês de maio e foi exatamente isso que este maio laranja me mostrou.

Dia 02 de maio estive em uma cidade de 12 mil habitantes onde vigora a lei do silêncio diante dos abusos infantis. Fui chamada ao município mais para sensibilizar professores sobre a necessidade de não se calarem diante das suspeitas e revelações de abusos, do que para levar conhecimento propriamente dito, o que, obviamente, acabei por fazer também. O que me chamou a atenção foi o medo relatado pelos professores. Cidades pequenas “do interior do interior”, como eu costumo chamá-las, parecem ter, de fato, esta característica. As pessoas consideram primeiro contra quem se volta a suspeita do crime e somente então, a depender do sobrenome/ status/ cargo/ poder do suspeito, ponderam a respeito do cumprimento do dever de relatar o caso, independente de quem está no polo ativo da situação.

Situação parecida, verifico já há anos, ao conversar com professores da rede municipal da minha própria cidade. Há sempre um temor pela própria segurança, segurança dos filhos, medo de perseguição, medo de represália e um medo enorme de estarem sendo injustos, de difamarem uma pessoa e depois descobrirem que era tudo mentira – já ouvi isso nestes exatos termos -, o que é muito curioso porque, quando se encaminha para os órgãos competentes, uma suspeita de abuso proveniente de uma revelação espontânea, não se está acusando ninguém, muito menos julgando. Ao Ministério Público caberá acusar e ao Juízo de Direito caberá julgar e punir ou absolver, diante da falta de provas robustas.

Percebo que há uma grande confusão com o termo “denúncia”. Não é denúncia o que se faz ao descrever da forma mais literal possível o relato de uma criança ou adolescente que confidencia um abuso sexual vivido. Trata-se única e exclusivamente do cumprimento do dever legal de notificar suspeita de violação de direitos da criança ou do adolescente em questão. Mas, na prática, evidentemente, é tudo muito mais confuso, ainda mais, quando falamos de cidades muito pequenas onde todos se conhecem direta ou indiretamente.

Há ainda os casos de ameaça frontal, de coação explícita de professores e outros servidores que ousam cumprir os próprios deveres, ao passo que, parte do meu trabalho diante destes casos é acolher as suas angustias que são muitas e legítimas, informá-los a respeito de como proceder diante de ameaças ou retaliações e lembra-los, que, em detrimento de todo o medo justo e legítimo, não estamos falando de números, estamos falando de vidas, estamos falando de crianças e adolescentes e poderiam e que podem, efetivamente, serem seus filhos, netos, ou, que talvez um dia, décadas atrás, tenha o que eles próprios precisavam. Um adulto que fizesse o que tinha que ser feito, apesar do medo, pois, quando não o fazemos, estamos apenas perpetuando o sofrimento de quem já não vive, apenas sobrevive.

É sempre muito tocante observar as reações dos adultos nas capacitações ou palestras onde eles estejam acompanhando os alunos. São os que mais sinalizam positivamente com a cabeça e que mais choram a cada descrição de como se sente uma vítima de abuso, do que precisa uma vítima de abuso e do porquê não é uma opção se calar, apesar de todo o justo e legítimo medo. É frequente que estes mesmos adultos, ao final, perguntem se podem me dar um abraço e enquanto o fazem, em breves segundos me contam ao pé do ouvido que eles também passaram por isso e agradecem por abordar no assunto de forma tão “direta”, “corajosa” ou “sem meias palavras”, como já ouvi.

Mesmo os que não se aproximam e somente observam de longe, parados por um instante antes de irem embora, eu consigo ver, é até difícil descrever como, mas, anos fazendo isso me ensinaram a detectar e interpretar aqueles olhares demorados, aquelas expressões contidas de choro, aqueles “obrigada/ obrigado” mudos. Como seu sempre digo, os iguais se reconhecem!

Dia 15 de maio estive em outra cidade aqui da região, uma cidade ainda menor, 8 mil habitantes. Nesta, fiz 2 palestras numa escola, uma para crianças de 8 a 12 anos e outra para adolescentes de 13 a 16 anos e aconteceu o que eu sempre digo: basta levantar o tapete para que a sujeira apareça! No decorrer de ambas as falas pude ver sinais de desconforto em algumas crianças e adolescentes. Na verdade, é mais que isso, desconfortável ficam muitos, pois, o assunto é pesado e por mais que eu tenha todo o cuidado na forma de comunicar, agradável de ouvir não é e nunca será! Quando falo de desconforto, aqui, estou falando de muito desconforto, de olhares esquivos acompanhados de tentativas frequentemente fracassadas de não chorar. Não raro, estas tentativas culminam em pessoas se retirando do ambiente para ir ao banheiro lavar o rosto e por lá ficarem.

Nesta ocasião do dia 15 de maio aconteceram ainda outras coisas. Como uma menina de 13 anos que no recreio se esconder atrás da escola parar chorar e que, ao ser interpelada, contou que vinha sendo chantageada por um homem que conheceu na internet, para quem enviou nudes. Conversando com os professores, estes me relataram que a garota estava atipicamente introspectiva e agressiva já fazia alguns meses, para surpresa de ninguém, o início da mudança de comportamento era convergente com o início das ameaças que ela vinha sofrendo.

Neste mesmo período de 15 minutos de intervalo, uma garota de 11 anos me chamou num canto para contar com a voz baixa, falha e mal olhando nos meus olhos, que, aquilo sobre o qual eu havia falado aconteceu com ela até final do ano passado, que os abusos haviam durado por cerca de 1 ano, que haviam sido cometidos por um homem, amigo do seu padrasto, que passou a coabitar com ela, a mãe a mandou para morar com a avó quando ela revelou os abusos, mas que o abusador continua lá. Ela me procurou não apenas para relatar sobre o que havia lhe ocorrido, mas, para perguntar o que poderia fazer para proteger os irmãos mais novos, de 5 e 6 anos, que ainda moram com a mãe, o padrasto e este amigo do padrasto.

O curioso desta história é que esta angustia vivida por ela com relação à segurança dos irmãozinhos é exatamente o que o Rabicho vive na história de “Rabicho e o carinho esquisito”, meu livro infantil sobre o tema. Não atoa eu coloquei isso na história. Já perdi a conta das vítimas de abuso que me relataram terem criado coragem de contar o que lhes acontecia somente depois de se darem conta que próximos seriam seus irmãos. Dei um livro meu para a garota, falei para ela ler para os irmãozinhos e disse que comunicaria o que ela estava me contando aos adultos que poderiam fazer algo a respeito e assim fiz.

Ao final deste tipo de episódio, sempre me ocorrem pensamentos como: Que bom que ela falou, mas, que terrível que ela tivesse o que falar! E agora, o que vai acontecer? Vão conseguir proteger essas crianças? Como essa mãe vai reagir ao saber que a filha falou na escola sobre o abuso sexual que ela decidiu abafar mandando a criança para morar com a avó? São tantas perguntas, sempre!

Entre os dias 13 e 17 de maio estive nas escolas municipais da minha cidade fazendo intervenção com os alunos do terceiro ao quinto ano. Um concurso de desenhos relacionados ao tema após uma breve explanação minha a respeito do tema. Quanta coisa pudemos captar dos desenhos e das perguntas super específicas que as crianças fizeram ao longo das intervenções. Vários nomes anotados para posterior aproximação e acompanhamento na esperança de que, se algo estiver acontecendo, uma hora estas crianças consigam pedir ajuda! Em verdade, tive, já no primeiro dia de intervenções, a evidência de que este é realmente o caminho. Após a minha fala na primeira escola (minha primeira escola), uma garotinha de 10 anos me chamou num canto para contar, aos prantos e sem olhar nos meus olhos, que aquilo que eu havia explicado acontecia com ela já há 2 anos todas as vezes que viajava para a casa da avó em outra cidade, tendo sido, a ultima vez, dias antes, no dia das mães.

Me vi tanto nela, com 10 anos, sentindo que era responsável, culpada por tudo que acontecia, com medo do que iam pensar sobre mim (palavras dela) se eu contasse. Foi uma mistura de tristeza com alegria poder acolher aquela garotinha como eu gostaria que tivesse acontecido comigo. No dia seguinte a direção da escola contactou a mãe, marcamos uma reunião, começamos a tomar as providências legais e neste meio tempo, a criança criou coragem de contar para a mãe antes mesmo de falarmos com ela. Para minha alegria e alívio, de mediato a mãe registrou boletim de ocorrência e me procurou para perguntar como deveria conduzir a situação a partir dali para não piorar as coisas para a filha.

Um “desfecho” rápido e protetivo para a vítima, coisa rara, infelizmente. A partir de então tenho acompanhado a criança em questão na escola mesmo. Uma vez por semana apareço na escola no contraturno e, entre outras coisas, converso com ela. Aparentemente, ao menos por agora, a menina parecem estar bem, o que me faz pensar em como o desfecho de uma revelação espontânea de abuso pode ser alterado a depender da reação dos cuidadores e da pessoa que faz a escuta inicial da criança, o quão protetivo é para a saúde mental de uma vítima de abuso, a atitude de acreditar, apoiar e agir em defesa da vítima, desde o primeiro momento.

No dia 17 de maio estive na faculdade onde cursei psicologia falando sobre o tema para acadêmicos de pedagogia, fonoaudiologia e psicologia. Além de muita informação sobre o tema, neste evento eu pude fazer algo que gosto muito, que é “pesar a mão”. Não poupei ninguém de detalhes e termos quando necessário e aproveitei para contar a história do meu irmão, morto por suicídio aos 19 anos em 2012 em decorrência de um histórico imenso de abusos sexuais na infância que, sem o devido tratamento, o tornaram uma verdadeira “panela de pressão”. Costumo dizer que meu irmão é a prova morta do que acontece quando não pedimos ou não aceitamos ajuda, no caso dele, foi a segunda alternativa.

Algumas pessoas se incomodam com este meu jeito sem papas na língua de falar sobre o assunto, mesmo que para adultos, no entanto, percebo, pela minha experiência, que as pessoas só levam este assunto a sério e tomam esta causa para si quando elas são afetadas pelo que ouvem e não dá pra afetar ninguém falando de forma fria, polida e antisséptica, como se estivéssemos falando de um fenômeno que acontece só bem longe de nós, e não debaixo do nosso nariz, todo o tempo, o tempo todo, como acontece de fato.

No dia 22 de maio, em outra cidade pouco menor que anterior, falei para criança e adolescentes, cerca de 300 alunos. Gosto de falar com adolescentes porque, ao contrário do que o senso comum julga, eles são alvos fáceis e com eles dá pra pegar um pouco mais pesado na linguagem, até porque se tem uma coisa que eu aprendi ao longo destes 8 anos falando com todas as idades de alunos, é: Quanto mais formal e professoral for o tom da palestra, menos eles se conectam e menos absorvem do que foi dito.

Falei sobre pornografia da forma mais direta e sem moralismo possível, falei de pornô de vingança, vazamento de nudes e responsabilização criminal, mesmo em se tratando de adolescentes, falei de violência sexual dentro do namoro, dos conflitos vividos pelos garotos que são vítimas de abuso no tocante à orientação sexual, falei sobre como o abuso sexual muitas vezes não é necessariamente doloroso, bem pelo contrário, como isso não faz de ninguém menos vítima e diversos outros assuntos debaixo deste grande guarda-chuva que chamei de “o que você precisa saber sobre violência sexual contra e entre adolescentes”.

Ao final, algumas adolescentes me procuraram para agradecer a palestra, pedir para tirar foto e uma delas disse: “Você salvou umas 3 vidas hoje, foi um choque de realidade”. Ouvir isso de um adulto já é comovente, ouvir isso de uma garota de 15 anos, então! Achei tão maduro! Perguntei por que e ela contou que ali, entre as amigas presentes, algumas estavam sendo levadas a acreditar naquela história de “se você me ama de verdade vai transar comigo” ou “pode me mandar nude, eu juro que não vou mandar pra ninguém”. Acredito que o choque de realidade ao qual ela se referiu veio da minha exposição em primeira pessoa sobre o tema. Além de falar sobre o assunto, eu dei a mim mesma como exemplo, também fui vítima de extorsão sexual na adolescência e isso quase custou a minha vida. Seja como for, ganhei meu dia! Missão cumprida!

Por fim, nos dias 27 e 29 de maio, estive em outra cidade mais ou menos do mesmo tamanho das anteriores e foi uma maratona! Seis palestras em um dia para os alunos da rede estadual e quatro palestras no outro dia para os alunos da rede municipal. Contei a história do Rabicho projetando as imagens no telão e, para falar sobre o perfil dos abusadores de forma que fosse compreensível para crianças de 7 a 10 anos, usei o seguinte artifício: Todo mundo aqui já assistiu O Rei Leão, né? Então, imaginem que lá no mundo do filme O Rei Leão, um destes dois é um leão abusador de leõezinhos, qual dos dois vocês acham que seria? O Scar ou o Mufasa? Todos, absolutamente todos sempre respondem: SCAR! É uma ótima oportunidade para explicar como as pessoas que cometem abusos contra crianças não se parecem com o que esperamos que elas se pareçam, bem pelo contrário, no mundo imaginário do Rei Leão, é muito mais provável que o abusador seja o Mufasa, afinal de contas, ninguém jamais desconfiaria do Mufasa e no mundo dos humanos, acontece a mesma coisa.

Nas intervenções de segunda-feira, dia 27, identifiquei alguns adolescentes muito, muito mobilizados com as minhas falas. O de sempre: efusivos movimentos positivos de cabeça na medida em que eu descrevia o modus operandi dos abusadores, tentativas de esconder o choro, meninas se retirando do local, perguntas específicas demais, em particular, ao final da minha fala. Como de costume, as professoras e assistentes sociais estavam presentes com os olhos superatentos ao comportamento dos alunos. Desta vez não foram só as meninas, havia um menino também, muito atento, concordando com muitas coisas que eu dizia, por vezes escondendo o rosto e enxugando os olhos com o capuz do moletom e ao final, se aproximou de mim para agradecer a palestra, segundo ele “foi muito importante”. Meninos adolescentes dificilmente se aproximam, dificilmente falam alguma coisa. As professoras também notaram…e anotaram!

O que posso tirar deste maio laranja é a confirmação do que eu já sei há muito tempo, mas, não me canso de reafirmar: Basta dar chance, criar a ocasião e comunicar da forma certa, eles falam, eles pedem ajuda, senão em palavras, em gestos, em olhares demorados e profundos, em perguntas específicas demais para serem meras curiosidades, em desenhos com diálogos e descrições específicas demais, com direito a horários, datas e detalhes físicos dos abusadores, basta estarmos atentos! Eles falam! É um trabalho pesado, cansativo, mas, gratificante, e, tão certo quanto o ar que eu preciso para continuar viva, seguirei fazendo isso até o fim da minha vida (rimou!).

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Classificação do artigo
Julia Molina

Escrito por Juliana Molina Constantino

34 anos, paranaense, mãe, Advogada (OABPR89037) graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná em Curitiba/PR em 2014, Psicóloga (CPR 08-38459) Analista do Comportamento com ênfase no atendimento a adultos vítimas de abuso sexual infantil.

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