Recentemente recebi uma valiosa indicação de leitura do historiador, pesquisador e divulgador de história o Sr. Icles Rodrigues da Universidade Federal de Santa Catarina e do Projeto LeituraOBRIGAHistória (blog e canal de divulgação sobre história). O livro em questão é intitulado Soldados – Sobre Lutar, Matar e Morrer (Neitzel & Welzer, 2014). Ao longo do livro encontramos um poderoso e intrigante argumento que questiona o papel da ideologia nazista como principal norteadora dos crimes de guerra cometidos pelo exército alemão durante a segunda guerra e levantando o papel do contexto de guerra como principal elemento contextual para ocorrência das condutas que conduziram aos crimes de guerra.
Interessante, não? Mas não estamos saturados dos comentadores da II Guerra Mundial? Não há como se cansar deste tema, em especial quando se agrega uma fonte historiográfica tão relevante quando às que trazem Neitzel e Welzer (2014). Primeiramente, os autores revisam uma extensa fonte de documentos transcritos de áudios clandestinos coletados por serviços de inteligência dos aliados e que se tornaram públicos ainda na década de 1990. Uma fonte direta de relato que evita os vieses de documentos como cartas, relatórios e outros documentos dirigidos a interlocutores claramente identificados e produzidos por ocasiões formais ou dirigidos à familiares, amigos ou jornalistas e que – de qualquer forma – são documentos produzidos com fins específicos e que mostram a história de um ponto de vista indireto e modulado por contingências sociais.
Ao longo de suas páginas, o livro revela diálogos de soldados e, ao mesmo tempo, de pessoas vivendo sob estado de guerra. Ficamos com a leitura cativa não pelos horrores de guerra, mas pela humanidade, sinceridade e autenticidade do relato desses homens. Conversas sobre o extraordinário pelos olhos do indiferente: violência, destruição, crimes, extermínios e morte; assim como histórias humanas: aventuras, sentimento, sexo, valores e vínculos. Esse conjunto de coisas mostram um cenário em que a guerra e seus motivos formam um pano de fundo (nos termos dos autores, um marco referencial) que orienta as ações, reorienta a função dos eventos e redefine o impacto das ações desses mesmos homens sobre o mundo.
Os autores concluem que o papel da ideologia sobre o comportamento desses soldados tem uma importância bem mais restrita e circunscrita do que costuma-se atribuir na história política e social do nazi-fascismo e da segunda guerra como um todo. Em sua tese, demonstram como esta ideologia – ainda que possa exercer papel importante entre as políticas de Estado e estratégias de guerra, cumprem um papel distante sobre o comportamento cotidiano dos combatentes, sendo estes – aparentemente – mais orientado pela rotina do trabalho (em especial o trabalho fabril) e pelos valores individuais, vínculos e circunstâncias sociais que produzem ocasiões ou contextos para uma conduta agressora e/ou criminosa para com prisioneiros de guerra e civis.
Neitzel e Welzer trazem à tona dados de extrema relevância histórica e social, mas – para os interessados no comportamento humano e em seus determinantes, trazem uma especial lição: é preciso tratar o comportamento em seu contexto, atentando para as nuances espaço-temporais que o afetam assim como as diferenças que o ambiente próximo pode exercer em relação ao ambiente mais distante. No caso de um cenário sócio-político de guerra, o ambiente social distante pode ser modulado por regras e contingências que – embora gerais – afetam o comportamento individual de maneira particular e atuam com peso e significância diferentes daqueles exercidos pelo ambiente social próximo (família, amigos, colegas de farda e de regimento).
Em meio a uma crise social que nos leva a cenários de retrocesso político e boicote à ciência como um todo e às ciências humanas em particular, o livro Soldados – Sobre Lutar, Matar e Morrer torna-se um reflexo que deve nos fazer preocupar ainda mais com os rumos e decisões políticas que tem sido tomadas recentemente na esfera política e, embora possa nos afetar pouco ainda em nossa vida civil ordinária, deve nos fazer despertar para o poder contextual do discurso de ódio e do cerceio aberto à liberdade.
Os autores nos mostram como, mesmo que a ideologia em si possa ser alimentada por poucos, quando estes estão nas posições políticas capazes de movimentar o tecido social em larga escala, poucos podem traçar o destino de muitos e tornar a tragédia ordinária e a catástrofe algo banal. As contingências estão dispostas em um cenário preocupante e, para evitar os passos errados, é preciso que passemos a estabelecer o contra-controle apropriado à coerção que se apresenta pelo conservadorismo, pela ignorância e pela cultura do privilégio e da vingança. Este texto não se pretende um manifesto, mas também não é apenas uma resenha. É um exercício de reflexão que – no contexto atual – torna uma certa implicação social do autor quase inevitável. Ainda assim, espero que a indicação venha em boa hora e que a livre interpretação faça sentido à luz dos ataques à cultura da educação cosmopolita, científica e de tolerância com os quais temos convivido.
Referência
Neitzel, S., Welzer, H. (2014). Soldados: Sobre Lutar, Matar e Morrer. Rio de Janeiro: Companhia das Letras. Título original em inglês Soldaten: On Fighting, Killing, and Dying.