A série Atypical lançada pela Netflix relata a história de Sam, um jovem diagnosticado com o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e suas demandas sociais. Os critérios para o diagnóstico de autismo são delimitados pelo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, publicado em 2013 na versão mais atualizada (quinta revisão).
O DSM – V (2013) delimita os critérios para o diagnóstico de autismo que no geral referem-se a inabilidade persistente na comunicação e interação social nos mais variados contextos e padrões restritos/repetitivos de comportamento, interesses ou atividades. Cada critério apresenta ainda uma descrição específica das características que devem ser apresentadas para o diagnóstico.
Dentre as demandas apresentadas pelo personagem, uma se torna central ao longo da série: Sam quer ter uma namorada. Dentre as características descritas pelo DSM – V (2013) há o déficit nos processos de desenvolver e manter relacionamentos que retrata a dificuldade na comunicação e interação social. Contudo, manter um relacionamento amoroso pode ser uma tarefa difícil para jovens e adultos diagnosticados com TEA, principalmente por ser uma forma de relacionamento que exige “pré-requisitos” complexos como a reciprocidade socioemocional, comunicação não verbal, questões sensoriais, entre outros.
A reciprocidade socioemocional é uma habilidade muito importante para a interação, pois nos permite compreender a partir do contato social as emoções e sentimentos do outro. Segundo Tonelli (2011) pacientes diagnosticados com TEA carecem da habilidade automática e espontânea de se atribuir estados mentais a si mesmo e a outras pessoas, nomeada como Teoria da Mente. Sam exemplifica essa característica ao longo da série, como na cena em que uma garota sorri para ele, demonstrando interesse e ele não percebe, nem mesmo compreende o motivo.
Sam apresenta sua comunicação verbal bem estabelecida, porém, nas tentativas de manter um relacionamento amoroso, a comunicação não-verbal gera dificuldades, e ainda, algumas questões sensoriais, como sua sensibilidade a toques suaves. Diante destas características, a terapeuta realiza intervenções direcionadas ao desenvolvimento de diversas habilidades, modelando seus comportamentos a fim de que ele possa generalizar para outros contextos, como por exemplo, uma maneira sutil de olhar para as garotas e sorrir. Segundo Lima & Dilascio (2016) o treino de habilidades sociais é um conjunto de técnicas usadas na psicologia para melhorar a efetividade interpessoal e a qualidade de vida. Assim, tanto os comportamentos mais simples quanto os mais complexos poderão ser manejados na intervenção, para que o indivíduo com TEA possa emitir comportamentos mais assertivos e compreender com mais facilidade as nuances das trocas emocionais.
Segundo Camargo e Rispoli (2013) as intervenções comportamentais têm demonstrado melhora significativa no prognóstico do autismo e promovem uma variabilidade de habilidades sociais, de comunicação e comportamentos adaptativos. Os autores destacam algumas características gerais da intervenção em Análise do Comportamento Aplicada:
1. Identificação de comportamentos e habilidades que precisam ser melhorados.
2. Sistematização de objetivos.
3. Delineamento da intervenção.
Camargo e Rispoli (2013) destacam que todo o processo de intervenção em Análise do Comportamento Aplicada (ABA) requer uma coleta de dados consistente, antes, durante e depois da intervenção. Esta é uma forma de acompanhar os progressos e orientar as intervenções atuais e futuras.
“A Análise Aplicada do Comportamento tem como objetivo, na intervenção com pessoas diagnosticadas como autistas, desenvolver repertórios de habilidades sociais relevantes [..] servindo-se, para isso, de métodos baseados em princípios comportamentais.” (Goulart e Assis, 2002, p. 155).
Goulart e Assis (2002) ressaltam que as intervenções em casos de TEA baseadas na Análise do Comportamento Aplicada apresentam avanços significativos em termos de repertório, desde que as variáveis ambientais relevantes sejam identificadas e que as oportunidades de ensino apropriadas sejam programadas considerando os aspectos particulares de cada indivíduo.
Como um conjunto de comportamentos inferidos das relações funcionais e dos níveis de seleção comportamental, as habilidades sociais exigem ampla análise das variáveis filogenéticas, ontogenéticas e culturais relacionadas a cada caso.
No caso do autismo, as características específicas do transtorno referem-se a sua condição fisiológica e comportamental que interferem na aquisição dos comportamentos sociais. A forma como o indivíduo irá aprender essas habilidades e se relacionar em suas interações será influenciada por condições ambientais que também irão determinar a variabilidade e seleção desses comportamentos, o que correspondem aos níveis ontogenéticos e culturais. Del Prette e Del Prette (2010) ressaltam que as habilidades sociais são aprendidas e alteradas ao longo da vida por meio da variabilidade e seleção dos comportamentos submetidos às contingências ambientais.
Todos esses “pré-requisitos” para uma interação social significativa e o desenvolvimento de habilidades são de certa forma interligados e quando se trata das intervenções possíveis para trabalhar essas dificuldades e estimular as potencialidades de um indivíduo com TEA, todos esses pontos deverão ser trabalhados de maneira integrada pelos profissionais envolvidos.
A temática da série expõe as características singulares do autismo e como isso reflete na vida social, tanto para o indivíduo com TEA quanto para a família e demais pessoas envolvidas. Uma das falas da mãe de Sam na série é: “Namorar alguém requer muita comunicação não-verbal, e o Sam é extremamente literal. Relacionamentos já são difíceis para neurotípicos, não quero essa pressão para o meu filho”. Em resposta a essa preocupação da mãe, a terapeuta enfatiza que os relacionamentos amorosos de jovens e adultos com autismo podem não se manter pela falta de saber como agir nessa interação. A partir desse diálogo e das intervenções realizadas pela terapeuta, o treino de habilidades sociais foi uma ferramenta importante para que Sam desenvolve-se um repertório comportamental mais amplo. Sam pôde aprender estratégias que o auxiliasse a agir em determinadas situações e a discriminar os sentimentos e emoções de outras pessoas.
Contudo, a Análise do Comportamento Aplicada e as intervenções voltadas para o desenvolvimento de habilidades sociais podem ser efetivas para a aquisição e aperfeiçoamento dos comportamentos sociais, a fim de contribuir para que jovens e adultos com TEA possam vivenciar as experiências que desejarem de forma assertiva, considerando as particularidades de seu comportamento em intervenções que promovam maior variabilidade comportamental. Vale ressaltar a importância da atuação de diversos profissionais e áreas para que as intervenções sejam melhor adaptadas e eficazes. Velloso et al. (2011) ressaltam que a avaliação de caráter interdisciplinar proporciona uma melhor investigação de todos os aspectos envolvidos na tríade que caracteriza o TEA: interação social, comunicação social e comportamento, especialmente levando-se em conta a variabilidade de graus de comprometimento em cada uma delas.
Referências:
Camargo, Síglia Pimentel Höher & Rispoli, Mandy (2013). Análise do Comportamento Aplicada como intervenção para o autismo: definição, características e pressupostos filosóficos. Revista Educação Especial, vol. 26, n. 47, 639-650. Disponível em: < https://periodicos.ufsm.br/educacaoespecial/article/view/6994>.
Del Prette, Zilda Aparecida Pereira & Del Prette, Almir. (2010). Habilidades Sociais e análise do comportamento: proximidades históricas e atualidades. Revista Perspectivas, vol. 01, 104-115. Disponível em: < http://www.uel.br/graduacao/odontologia/portal/pages/arquivos/NDE/HABILIDADES%20SOCIAIS%20E%20AN%C3%81LISE%20DO%20COMPORTAMENTO.pdf>.
Goulart, Paulo, & Assis, Grauben José Alves de. (2002). Estudos sobre autismo em análise do comportamento: aspectos metodológicos. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 4(2), 151-165. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-55452002000200007&lng=pt&nrm=iso>.
Lima, Maria Cecília G. P. F. de & Dilascio, Mariana Guimarães. (2016). Treinamento de Habilidades Sociais na Síndrome de Asperger. Revista Debates em Psiquiatria, 17-24. Disponível em: < http://abp.org.br/rdp16/01/RDP_1_201602.pdf>.
Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais: DSM-5 [recurso eletrônico] (2015) American Psychiatric Association; tradução: Maria Inês Corrêa Nascimento, et al.; 5. ed. Porto Alegre: Artmed.
Rashid, R. (Produção e Direção). 2017. Atypical [Série]. Califónia: Netflix. Disponível em: <https://www.netflix.com/br/title/80117540>.
Tonelli, Hélio. (2011). Autismo, teoria da mente e o papel da cegueira mental na compreensão de transtornos psiquiátricos. Psicologia: Reflexão e Crítica, 24(1), 126-134. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722011000100015>.
Velloso, R. L.; Vinic, A. A.; Duarte, C. P.; Dantino, M. E. F.; Brunoni, D.; Schwartzman, J. S. (2011). Protocolo de avaliação diagnóstica multidisciplinar da equipe de transtornos globais do desenvolvimento. Universidade Mackenzie, Cadernos de Pós Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, São Paulo, vol. 11, n. 1, 9-22.