Frutos diferentes de uma mesma árvore: a ACT como proposta coerente com o Behaviorismo Radical

Lembro-me de quando comecei a estudar “essa tal de” Terapia de Aceitação e Compromisso. Eu, que venho de uma educação bastante Skinneriana, me assustei quando vi a Análise do Comportamento falar de “Aceitação”, “Desfusão Cognitiva”, “Mindfulness”, “Valores” e todos esses termos pouco técnicos, termos de nível médio, diferente de quem estava acostumado a falar de reforçamento, estímulo discriminativo, operação motivadora, punição, etc. Cheguei a diversas vezes me questionar, nos meus estudos iniciais: “Isso é mesmo Análise do Comportamento? A ACT é uma proposta Behaviorista Radical? ” São perguntas que, assim como eu já me fiz, muitos analistas do comportamento ainda o fazem e tendem a se afastar da ACT nas primeiras leituras.

As perguntas acima são as que pretendo responder nesse meu primeiro texto para o Comporte-se.

A resposta curta é sim. A resposta longa é sim e não.

Recentemente tive a oportunidade de comparecer ao congresso da ACBS (Association for Contextual Behavioral Science) em Sevilha, na Espanha, dos dias 20 a 25 de junho. Lá eu pude conhecer grandes autores da análise do comportamento internacional como Steven Hayes, Dermot Barnes-Holmes, Carmen Luciano, Kelly Wilson, Robert Kohlenberg, Mavis Tsai, Kirk Strosahl, Robyn Walser, entre outros vários. Reparei que quase que o tempo todo eles se firmavam como Behavioristas, não sendo incomum ouvi-los dizer frases como “Eu sou behaviorista, e por isso acredito que (…)” ou “Como um analista do comportamento, creio que temos que analisar da seguinte forma (…)”. O [agora ex] presidente da ACBS, Daniel “DJ” Moran , em um plenário seu que assisti, falou que ama o trabalho de Skinner e que quase deu o nome para seu filho de Burrhus Frederic (mas sua esposa disse ‘não’). Falou, inclusive, sobre a necessidade de definir ‘Mindfulness’ em termos operantes, analítico-comportamentais e realizou críticas (respeitosas) ao próprio Steven Hayes por seu artigo onde buscou fazer tal definição (Fletcher & Hayes, 2005) Pude ver outros plenários, palestras, simpósios e participar de workshops excelentes e em cada um deles ficava evidente a presença da análise do comportamento no discurso dos palestrantes. Pude perceber, também, que nesse “universo” da ACT e da FAP convivem tanto pesquisadores quanto clínicos e até pessoas que não são analistas do comportamento e que alguns grandes autores da área discordam entre si sobre, por exemplo, o uso dos termos de nível médio e sobre o “hexaflex”, mas acredito ser uma discussão pertinente a um outro texto.

Voltei, então, me questionando: se todos esses autores, da ACT, da FAP e da RFT  se dizem analistas do comportamento, o que será que causa o efeito contrário em muitos analistas do comportamento?

Isso me fez lembrar da minha inquietação original com a ACT, sobre ela não “ter cara” de behaviorista. Fui reler para tentar entender o porquê.

Em seu livro original, os autores dizem que a ACT é baseada nos pressupostos filosóficos do Contextualismo Funcional e que sua ciência é uma extensão da Análise do Comportamento tradicional chamada de Ciência Comportamental Contextual (Hayes, Hayes & Reese, 1988; Hayes, Strosahl & Wilson, 2012). E, afinal, o que diz o Contextualismo Funcional?

O Contextualismo Funcional compreende o comportamento de um organismo como um todo; como uma ação inserida em um contexto e esse contexto é inseparável de sua história (Hayes et al., 1988; 2012). As partes só são compreendidas umas em relação às outras e nenhuma das partes tem um significado por si só. E, pelo contrário, o significado emerge através das relações dessas várias partes. O Contextualismo Funcional é monista, de forma que todos os elementos de uma análise científica fazem parte do mesmo plano; um evento interno não é de natureza diferente de um evento externo meramente por serem privados.
Sua unidade básica de análise se dá através da análise dos antecedentes e consequentes de uma resposta, onde uma consequência é definida pelo seu efeito no comportamento, comportamento definido pelas consequências que produz e antecedentes definidos pelos comportamentos que ocorrem na sua presença e as consequências que tais comportamentos produzem. Por fim, o Contextualismo Funcional nos diz que o comportamento é qualquer e todas as ações de um organismo como um todo. (Hayes et al., 2012; Zettle et al., 2016).

Tal definição é muito similar à do Behaviorismo Radical de Skinner (1945, 1957). A pergunta que muito ouço é do por que os autores propuseram outro nome para a mesma filosofia, já que os pressupostos são, a rigor, os mesmos? Uma resposta rápida se refere à questão do estigma envolvido com o nome “Behaviorismo Radical”, mas não se trata apenas de uma reformulação cosmética.

Segundo Hayes (2016, p.11):

“Esse processo não era uma mera tentativa de tradução, como se contextualismo funcional não fosse nada mais do que uma questão de evitar os lamentáveis termos que Skinner escolheu que tornaram ele quase impossível de ser ouvido sem distorção. Foi um exercício em extensão e explicação. Previsão e controle foi substituído por previsão e influência – um passo pequeno, porém necessário. Precisão, alcance e profundidade foram adicionados como dimensões principais de resultados. A natureza social da ciência tornou-se mais fundamental. Foi definido o nível de análise psicológico. O critério de verdade [pragmatismo] foi cuidadosamente especificado. A natureza a-ontológica da epistemologia evolucionária foi delimitada. O trabalho no contextualismo forneceu os fundamentos da CBS como uma forma particular da análise do comportamento, com um conjunto particular de suposições e propósitos.”

É uma redefinição filosófica, mas sem prescindir do que já fora dito anteriormente; mantém-se a visão de homem e a unidade de análise, enquanto outros elementos são revistos e adicionados.

Então, se o Contextualismo Funcional é a base filosófica da ACT e, por sua vez, compartilha de elementos do Behaviorismo Radical de Skinner², se posicionando como uma extensão deste, onde está o incômodo?

Um dos famosos incômodos está na Teoria das Molduras Relacionais (RFT), que serve de base teórica para a ACT. Uma inquietação comum é que a RFT se apresenta como uma teoria “pós-Skinneriana” da linguagem e cognição humana, e isso causa muita discussão na área. Mas, até onde sei, “pós” não significa “anti” e os próprios autores discutem que o responder relacional arbitrariamente aplicável é um operante de ordem superior (Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001) e, portanto, que não é possível estudar RFT prescindindo de conceitos comportamentais básicos. Se não é possível estudar RFT prescindindo de conceitos comportamentais básicos, e se a ACT se baseia na RFT, fica claro que a ACT é uma terapia que está de acordo com os pressupostos behavioristas radicais.

Então, onde será que está o incômodo? Sei que muito se refere à figura do próprio Steven Hayes, mas é uma discussão à parte. Vejo, no dia a dia, que muito dos incômodos com a ACT está no uso de termos de nível médio (“middle-level terms”) e sobre a sua falta de clareza e definições científicas, algo que é pouco característico da análise do comportamento, onde cada um de seus termos tem definições muito precisas.

A ACT apresenta um modelo unificado de flexibilidade psicológica, o “hexaflex” – hexágono da flexibilidade psicológica¹ e que é dividido em seis domínios: Aceitação, Desfusão Cognitiva, Contato com o Momento Presente (muitas vezes visto como Mindfulness), Self-como-contexto, Valores e Ações com Compromisso”. Ao centro disso tudo, reside a flexibilidade psicológica. Segundo os autores, o prejuízo em um ou mais desses domínios prevê sofrimento psicológico e o desenvolvimento de psicopatologias. (Hayes, Strosahl & Wilson, 2012).

Interessante ressaltar que o próprio terapeuta trabalha o seu hexaflex durante a sessão e durante o tratamento do cliente, tornando a ACT uma terapia bastante intensa devido à ênfase que se dá na relação terapeuta-cliente para promoção de flexibilidade psicológica.

Mas esses termos dizem pouco para o analista do comportamento; o que é “Aceitação”, em termos comportamentais? E “Valores”? São termos muito amplos e que sugerem pouca precisão, como dito anteriormente.

Felizmente, existe uma (boa) explicação para tal.

Levin , Twohig e Smith (2016) levantam que o uso pragmático da linguagem é uma qualidade que define a CBS. Os autores reconhecem a necessidade de conceitos comportamentais básicos (incluindo a RFT) na formulação de teorias e previsão e influência de comportamentos, mas também reconhecem que existem limitações em se usar uma linguagem estritamente técnica. Termos de nível médio, como vistos na ACT, não explicam comportamento em si mas servem para orientar indivíduos à domínios aonde serão realizadas análises funcionais mais específicas e é onde esse conjunto de termos técnicos tem seu lugar. Além disso a Ciência Comportamental Contextual se propõe a ser uma ciência mais adequada aos desafios da condição humana, não significando ser “superior” às outras formas de ciências mas uma ala da ciência que abraça explicitamente a meta, tanto científica quanto profissional, de desenvolvimento de pró-socialidade e desenvolvimento humano, o que significa que, de uma perspectiva da CBS, minimizar – a tendência de cientistas de dispensar a complexidade como sendo “meramente isso ou aquilo”, na ausência de evidência para tais afirmações – é firmemente rejeitada. (Hayes, Barnes-Holmes, & Wilson, 2012). Pensando desta forma falar de “aceitação” ou “valores” pode tornar-se justificável.

Para citar um exemplo: a relevância do conhecimento de como processos verbais podem aumentar as funções reforçadoras positivas de um comportamento específico através de governância por regras de augmenting dos tipos formativo e motivacional pode ser referenciado usando o termo de nível médio “valores”. Podemos falar também de tentativas de esquivar de eventos (externos e privados) e de sinalizações que indicam que tais eventos irão ocorrer e que estas tentativas são ações governadas por regras e que, diante dessas situações aversivas, o indivíduo pode emitir respostas alternativas àquelas previamente aprendidas que estejam sob influência dos eventos verbais identificados por augmenting e que isso pode ser referenciado usando o termo “aceitação”.

Os próprios termos de nível médio são bem definidos e ligados aos conceitos básicos. Em resumo, a função dos termos médios não é meramente reducionista ou de ter um olhar mais ‘amigável’, e sim para orientar o terapeuta à um domínio de análise funcional específico.

Agressividade, um termo muito visto em análise do comportamento, também é um termo de nível médio, mas especifica um domínio que pode ser analisado através de explicações existentes como mudanças de reforçamento produzidos por estimulação aversiva.

Gosto de pensar que essas terapias são excelentes por capacitarem o analista do comportamento com conhecimento teórico elevado a fazer um bom trabalho, bem como a formação de um “técnico”, não tão conhecedor de análise do comportamento, ser capaz de entender o que está sendo descrito e poder aplicar os conceitos no seu trabalho em consultório. A topografia da escrita pode não conter o nosso querido jargão Skinneriano, mas diversas vezes em minhas leituras vejo o quanto que está sendo descrito é bastante condizente com pressupostos behavioristas radicais.

Devemos usar termos mesmo que eles sejam termos “não-behavioristas”? Sim, mas que saibamos a função deles em nossa análise (Hayes, 1984).

Minha intenção aqui não é “alfinetar” colegas analistas do comportamento mas fazer um convite àqueles que possuem resistência à ACT, mas que demonstram um interesse nessa terapia, de que continuem a ler e estudar; é difícil no começo, passei por isso também, mas logo é possível identificar toda a nossa querida fala Skinneriana ali, em um parágrafo ou outro, descritas com outra linguagem enquanto forma, mas a mesma mensagem enquanto função. E posso afirmar que esse estudo é apaixonante, principalmente quando se vê a mudança que se é capaz de realizar na vida dos nossos clientes que vem ao nosso consultório. O resultado é muito recompensador pois ao transformarmos nosso cliente, nos transformamos enquanto terapeutas e também como pessoas.

Concluindo, creio que não nos distanciamos do behaviorismo radical quando estudamos ACT, mas que somos parte da mesma árvore. Somos Contextualistas Funcionais que trabalham com Ciência Comportamental Contextual e, por isso, somos Behavioristas Radicais e Analistas do Comportamento.

Somos frutos de um outro galho, temos um gostinho diferente, um cheiro que talvez não agrade a quem costuma se saciar com outros frutos, mas sem dúvidas compartilhamos do mesmo tronco e raiz.

Notas:

¹. Como mencionado no texto, existem divergências na própria área sobre o uso do hexaflex e dos termos de nível médio, porém seu desuso ainda não é um consenso.

² E também do Interbehaviorismo de Kantor (Luciano, Valdívia, Gutierrez, Páez-Blarrina, 2006)

REFERÊNCIAS

Fletcher, L., & Hayes, S. (2005). Relational Frame Theory, Acceptance and Commitment Therapy, and a functional analytic definition of mindfulness. Journal of Rational-Emotive and Cognitive-Behavioral Therapy, 23(4), 315-336.

Hayes, S.  (1984). Making sense of spirituality. Behaviorism, 12, 99-110.

Hayes, S. (2016) Why Contextual Behavioral Science Exists – An Introduction to Part I. In: Zettle et al. (Org.). The Wiley Handbook of Contextual Behavioral Science. Estados Unidos: John Wiley & Sons, Ltd.

Hayes, S., Hayes, L., & Reese, H. (1988). Finding the philosophical core: a review of Stephen C. Pepper’s World hypotheses: A study in evidence. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 50, 97–111.

Hayes, S., Barnes-Holmes, D., & Roche, B. (2001) Relational frame theory: a post-Skinnerian account of human language and cognition. Estados Unidos: Springer Science+Business Media New York

Hayes, S., Barnes-Holmes, D., & Wilson, K. (2012) Contextual Behavioral Science: Creating a science more adequate to the challenge of the human condition.  Journal of Contextual Behavioral Science, 1, 1-16.

Hayes, S., Strosahl, K., & Wilson, K. (2012). Acceptance and Commitment Therapy: the process and practice of mindful change. Estados Unidos: The Guilford Press.

Levin, M., Twohig, M., & Smith, B. (2016) Contextual Behavioral Science – An Overview. In: Zettle et al. (Org.). The Wiley Handbook of Contextual Behavioral Science. Estados Unidos: John Wiley & Sons, Ltd.

Luciano, M. C., Valdivia, S., Gutiérrez, O., & Páez-Blarrina. (2006). Avances desde la terapia de aceptación y compromiso (ACT). EduPsykhé, 5(2), 173-201.

Skinner, B. F. (1945). The operational analysis of psychological terms. Psychological Review, 52, 270–276.

Skinner, B. F. (1957). Verbal behavior. Estados Unidos: Appleton‐Century‐Crofts.

Zettle et al. (2016) The Wiley Handbook of Contextual Behavioral Science. Estados Unidos: John Wiley & Sons, Ltd.

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Escrito por Raul Vaz Manzione

Psicólogo (Mackenzie) e Mestre em Análise do Comportamento Aplicada (Instituto Par/UFPA). Atua como psicólogo clínico, supervisor, professor e treinador de terapeutas É Peer-Reviewed ACT Trainer reconhecido e listado pelo processo oficial da Association for Contextual Behavioral Science (ACBS) sendo um dos únicos a obter o título na América Latina.
Em seu currículo já ministrou treinamentos em ACT a mais de 1000 profissionais no Brasil e no mundo. Atua como membro do Comitê de Treinamento da ACBS (ACBS Training Committee).

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