Uma reflexão sobre a escolha da abordagem teórica em Psicologia Clínica

Escolher uma abordagem teórica para exercer a atividade clínica nem sempre é uma tarefa fácil, e pode ser, inclusive, bastante complexa e angustiante para os estudantes de Psicologia que se encontram nesta etapa da graduação. Este artigo se propõe a oferecer uma reflexão sobre este momento de escolha tão importante para os estudantes que pretendem atuar na clínica, ou mesmo para terapeutas já formados que, por alguma razão, não se sentem confortáveis atuando com determinada abordagem e consideram a possibilidade de mudar.

Para que a leitura possa se tornar mais leve a interessante, optou-se por abordar o tema de forma menos técnica, dando ênfase a algumas experiências do autor no que se refere a sua própria escolha por uma abordagem. Entretanto, serão considerados alguns pressupostos básicos da Análise do Comportamento que se relacionam com o assunto aqui tratado. Neste sentido, compreende-se que o sujeito que ingressa no curso de Psicologia carrega consigo um conjunto de aprendizagens ou experiências prévias que irão influenciar, em algum nível, o seu comportamento de escolha por uma determinada abordagem. Este conjunto de aprendizagens ou experiências prévias é denominado de “história comportamental” (Cirino, 2001). Por exemplo, ter visto determinados filmes, lido determinados livros, assistido determinadas aulas e conversado com determinadas pessoas no passado, são eventos históricos que formam o que convencionou-se chamar de “visão de mundo”, mesmo que o indivíduo não tenha consciência disso.

Esta visão de mundo, construída historicamente, exerce controle sobre uma ampla classe de comportamentos do indivíduo, inclusive sobre o seu comportamento de escolha. A especificidade do curso de Psicologia requer, de certo modo, que o estudante opte por uma “visão de mundo” – que são as diversas abordagens teóricas da área – com a qual irá exercer a sua atividade profissional. Esta adoção de uma determinada visão de mundo fica mais evidente quando a área que se pretende atuar é a clínica, uma vez que tal área constitui-se como a mais tradicional onde as teorias psicológicas são aplicadas.

Diante da diversidade de abordagens e das suas marcantes diferenças conceituais, é comum o surgimento de conflitos e dúvidas na hora da escolha. Isso pode ocorrer, por exemplo, em função de duas ou mais abordagens serem reforçadoras para o estudante e o mesmo ter que optar por apenas uma (Skinner, 1953/2003). Nesta condição de escolha, o comportamento do estudante fica sob controle de esquemas de reforço concorrentes, onde duas respostas – escolher entre duas abordagens – incompatíveis são mantidas por diferentes esquemas de reforço (Todorov & Hanna, 2005). Sustenta-se, aqui, que a escolha por uma única abordagem é coerente com a posição de que o ecletismo teórico gera confusão e pode interferir negativamente na prática.  Um efeito emocional decorrente desta situação é a ansiedade. Isto ocorreu com o autor quando duas abordagens distintas – comportamental e humanista – exerceram função de reforço e a escolha deveria ser por apenas uma delas.

Outras variáveis importantes relacionadas ao comportamento de escolha referem-se ao atraso e a magnitude do reforço. Estas variáveis, por sua vez, estão relacionadas a comportamentos designados como impulsivos ou autocontrolados (Hanna & Ribeiro, 2005). Neste contexto, se a escolha por uma determinada abordagem teórica produzir reforço mais imediato – por exemplo, elogio dos colegas – e de maior magnitude – por exemplo, maior compreensão dos seus conceitos – a probabilidade de escolher por tal abordagem aumenta de forma significativa, o que não indica, necessariamente, que a escolha foi a mais apropriada. Isso porque a imediaticidade e a magnitude do reforço podem interferir na discriminação de outros aspectos que seriam mais relevantes para uma escolha adequada. Por exemplo, escolher uma abordagem apenas porque os colegas elogiam ou também a escolhem, ou porque os seus conceitos são mais fáceis de compreender, pode gerar insatisfação, a longo prazo, se o estudante perceber que não está sendo coerente com aquilo que realmente acredita, não obtém bons resultados profissionais ou sente que seu trabalho não é significativo.

Para reduzir as chances de uma escolha equivocada, é fundamental que o estudante tenha um bom grau de autoconhecimento. Isto significa que, diante da situação de escolha, o estudante deve ser capaz de descrever o que está escolhendo e porquê está escolhendo (Brandenburg & Weber, 2005). Estas respostas verbais descritivas irão indicar as variáveis que estão controlando o comportamento de escolha e se esta escolha está sendo feita em função do que tem valor para o estudante e não em função de outros eventos irrelevantes. Um estudante que escolhe, por exemplo, uma abordagem porque está “na moda” ou porque lhe disseram que tal abordagem irá lhe trazer mais retorno financeiro, mas não acredita na sua proposta teórico-prática, pode estar se equivocando se o que ele valoriza não é o “modismo” ou a “questão financeira”, e sim trabalhar com algo que faça sentido para si.

É comum que a escolha por uma abordagem seja consideravelmente influenciada pelo professor que ministra a disciplina desta abordagem. Neste caso, temos um conjunto de estímulos que podem exercer controle sobre o comportamento de escolha. Por exemplo, a relação professor-aluno, a forma como o professor transmite o conteúdo, o domínio que ele demonstra do conteúdo e o entusiasmo com que o transmite. Além disso, o próprio comportamento do professor pode ser uma fonte de controle importante na hora de escolher uma abordagem. Ou seja, o professor pode atuar como um modelo de comportamento onde o estudante o admira e desejaria “ser como ele”. Segundo Baum (1994/2006), uma vez que o comportamento é influenciado desta forma, ele pode ser reforçado e modelado até atingir formas mais evoluídas. Assim, agir como o professor pode produzir consequências reforçadoras para o estudante e para a sua comunidade verbal que irão fortalecer a ideia de que “é esta abordagem mesmo que devo escolher”.

Esta condição descrita acima foi vivenciada pelo autor. Ou seja, na presença de um conflito entre duas abordagens, como mencionado anteriormente, o fato de um dos professores exercer uma influência extremamente forte sobre o autor, este optou pela abordagem ministrada por este professor, mesmo não tendo total clareza sobre a coerência da proposta teórico-prática da abordagem e o seu sistema de crenças e valores. Na realidade, havia uma certa consistência entre estas duas variáveis – a proposta teórico- prática da abordagem e o sistema de crenças e valores do autor – no entanto, após a graduação, tendo contato mais profundo com outra abordagem relacionada, mas com diferenças teóricas marcantes (desconhecida praticamente durante a graduação), o autor se identificou com a última e concluiu que ela “se encaixa” dentro daquilo que acredita em termos de como o ser humano funciona.

É evidente que as variáveis que controlam o comportamento de escolher uma abordagem teórica são múltiplas e por vezes difíceis de identificar, pois não se trata apenas de considerar o ato de escolher, mas sim o ato de escolher em um dado contexto e com uma história prévia de aprendizagem. Pretendeu-se aqui, destacar algumas condições que estão envolvidas nesta escolha importante na vida do estudante de Psicologia e, como se viu, também para aqueles que optam por outra abordagem após formados, quando, por exemplo, entram em contato mais profundo com outras proposições em um curso de pós-graduação. Para finalizar, é altamente provável que o estudante faça uma escolha adequada e satisfatória se dispuser de um bom repertório de autoconhecimento e discriminar quais as variáveis que estão relacionadas a sua escolha por esta ou aquela abordagem e se estas variáveis são, de fato, as que dão sentido a sua prática clínica.

 

Referências:

Baum, W. M. (1994/2006). Compreender o Behaviorismo: Ciência, comportamento e cultura. Porto Alegre: Artmed.

Brandenburg, O. J., & Weber, L. N. D. (2005). Autoconhecimento e liberdade no behaviorismo radical. Psico-USF, vol. 10 (1), pp. 87-92.

Cirino, S. (2001a). O que é história comportamental. Em H. J. Guilhardi, M. B. B. P. Madi, P. P. Queiroz, & M. C. Scoz (Orgs.), Sobre Comportamento e Cognição, vol. 7, pp. 153-158. Santo André: ESETec.

Hanna, E. S., & Ribeiro, M. R. (2005). Autocontrole: Um caso especial de comportamento de escolha. Em J. Abreu-Rodrigues & M. R. Ribeiro (Orgs.). Análise do Comportamento: Pesquisa, teoria e aplicação. Porto Alegre: Artmed.

Skinner, B. F. (1953/2003). Ciência e comportamento humano (J. C. Todorov, & R. Azzi, trads.). São Paulo: Martins Fontes.

Todorov, J. C., & Hanna, E. S. (2005). Quantificação de escolhas e preferências. Em J. Abreu-Rodrigues & M. R. Ribeiro (Orgs.). Análise do Comportamento: Pesquisa, teoria e aplicação. Porto Alegre: Artmed.

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Escrito por Pedro Gouvea

Psicólogo. Especialista em Análise Comportamental Clínica pelo Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento. Especialista em Docência do Ensino Superior pela AVM Educacional/UCAM. Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental pelo Centro de Psicologia Aplicada e Formação/UCAM. Atua como psicólogo clínico e em instituição de acolhimento para idosos. Tem interesse principalmente pelos seguintes temas: Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) e Psicopatologias/Comportamentos que envolvem a ansiedade social, como o transtorno de ansiedade social (fobia social), timidez, introversão e personalidade evitativa. E-mail para contato: pedrow.gouvea@gmail.com

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