Esse texto é largamente baseado na importante coluna da jornalista Eliane Brum, intitulada O mundo da gente morre antes da gente. Tentei fazer uma reflexão comportamentalista do tema da coluna, e se fui bem sucedido ou não é uma tarefa para os eventuais leitores decidirem.
O assunto é morte, mas creio que não em seu sentido mais comum. Como sugere o título da coluna de Eliane, venho falar da morte que nos acomete todos os dias, todos os minutos e todos os segundos, mas que só nos damos conta em momentos mais dramáticos, por assim dizer, de nossas vidas, como a partida de entes de alguma forma queridos. Como podemos entender melhor essas sensações estranhas de perder pedaços nossos com o passar do tempo e a ausência que se faz presente, então, devagar e silenciosamente?
Gosto de pensar que nós, enquanto pessoas, somos resultado de três aspectos: a história evolutiva de nossa espécie, responsável por nosso organismo; a nossa história de vida, responsável pelo que chamamos de pessoa e que é nossa interação com o mundo ao nosso entorno; e a cultura da qual fazemos parte, responsável pelo que chamamos de eu/self, ou nossa consciência de quem e do que somos. Em poucas palavras, é como dizer que somos um animal como qualquer outro, que aprende a se virar e sobreviver nesse mundo caótico, mas que se reconhece como tal porque sua cultura o ensina a olhar para si mesmo e a fazer perguntas sobre o sentido das coisas. Ao fim e ao cabo, esses três aspectos podem ser vistos como um grande fluxo de desenvolvimento, mas que separamos didaticamente porque não resistimos a essa tentação.
Essa pessoa, cuja existência é nomeada e que costuma se reconhecer enquanto um eu, um self, desde muito cedo entra em contato com um mundo que a ela se apresenta; a cada molécula de ar respirado, a cada cheiro sentido, a cada movimento, age sobre esse mundo e por ele é inevitavelmente modificada. Como a criança que chora e ganha comida de seus pais. como o jogador de futebol que bate o pênalti quase sempre no mesmo canto porque a bola entra; como o taxista que costuma pegar a mesma rota porque se livra do tráfego pesado; como o idoso que deixa bilhetes com seus afazeres pela casa, senão esquece de cumprir a maioria deles; todos aprendemos o que fazer, como fazer, e quando fazer, devido às consequências de nossas ações. Também por isso, a explicação do comportamento humano só é viável se olharmos para sua história de vida, para sua cultura e para seu contexto atual.
A contínua relação do organismo com seu ambiente caracteriza o que chamamos de aprendizagem, que por sua vez é um conjunto de processos muito importantes para o ciclo vital do desenvolvimento humano. É aí que entra a morte. Costumamos pensá-la como uma coisa distante, principalmente quando jovens, a ponto de nossa cultura retratar a morte de uma pessoa jovem como antinatural, não raro sendo o maior pesadelo de uma mãe e um pai enterrar seu filho.
Em termos de importância do papel das consequências para o comportamento humano, não é de se estranhar os efeitos que a possibilidade de deixar de existir exerça sobre nós. Medidas punitivas tendem a gerar reações por parte de quem é punido: prisioneiros detidos pelo Estado podem tentar fugir, trabalhadores explorados por seus patrões podem fazer greves e boicotes, crianças que foram castigadas ou apanham dos pais podem mentir para evitar o castigo, mas, no caso da morte, a maior das punições, não há alternativas, organismos mortos são impedidos de se comportar. Até por isso, talvez possamos tomar a criação de diversas mitologias que afirmam a continuação da vida após a morte como efeito indireto dessa possibilidade, por vezes assustadora, que é o morrer.
Retomando o que anunciei lá atrás, morremos aos poucos a cada instante. Mas existem duas maneiras de olhar para essa afirmação. A primeira é com o olhar microscópico e fragmentado de nosso cotidiano; a segunda é com um olhar macroscópico, o olhar mais amplo que só é alcançado com a vivência e passagem do tempo.
O olhar cotidiano é o olhar das interações constantes, do desenvolvimento acontecendo aqui e agora, como se olhássemos para a vida com um microscópio e observássemos de perto o dia a dia. Cada situação que vivemos, cada palavra que tocamos, cada carinho que damos e recebemos, são eventos únicos e irrepetíveis. Heráclito, o filósofo grego, diria que não podemos no banhar duas vezes no mesmo rio, porque nem o rio e nem nós somos mais os mesmos na segunda vez, e podemos dizer que agimos sobre o mundo, o modificamos, e somos modificados pelas consequências de nossas ações. À medida que o ambiente muda, mudamos com ele, e não é raro que as mudanças sejam tão bruscas que tenhamos dificuldade em reconhecer algumas das atitudes que tomamos em épocas diferentes da vida, como se fôssemos pessoas diferentes. Esse é o primeiro sentido em que morremos um pouco a cada instante.
O olhar ampliado, macroscópico, é complementar ao anterior e menos dinâmico, porém mais histórico. Com ele somos capazes de perceber as mudanças com o passar do tempo, vemos desaparecerem e se modificarem os lugares que outrora frequentamos, as roupas que vestimos, as expressões que utilizamos e, de forma talvez mais intensa, as pessoas com quem convivemos. Cada lugar, roupa, palavra, pessoa com quem interagimos nos modificou de forma irreversível, e pouco a pouco saem de cena, não só por também mudarem com suas experiências de vida – como vimos no primeiro sentido de morte – , mas por simplesmente deixarem de existir enquanto algo ou alguém em relação ao qual nos comportamos. Sentir saudades de alguém é sentir falta dessa relação, das consequências que ela nos proporcionou; é não poder se comportar mais daquela maneira pois aquele contexto, ou pedaço de mundo, não existe mais. Quando perdemos essas possibilidades, o pedaço de nós que vai junto é o nosso modo de ser em relação a elas, como quando não podemos mais dar um abraço do jeito que gostava nossa mãe, ou não ter mais aquele amigo com o qual tínhamos interesses em comum.
As mudanças que resultam de nossas relações cotidianas vão ficando mais claras com o passar dos anos, e então o eu percebe que a pessoa que costumava ser só existia em relação àquele mundo, que aos poucos foi morrendo; o organismo se modificou, não somos tão mais altos, ou tão mais magros, ou tão mais fortes, ou tão resistentes, e agora temos problemas que antes não existiam; a pessoa se modificou, já não somos tão mais impulsivos ou tão agressivos, ou tão teimosos, simplesmente nos comportamos de forma diferente. O eu é a parte mais estável, aquela que é produto de uma cultura e que demora um pouco mais para mudar, e embora hoje sejamos eus conscientes das diferentes pessoas que somos e fomos, nos mantemos razoavelmente estáveis a ponto de mantermos uma identidade. Esse é o segundo sentido em que morremos a cada instante.
Corro aqui o risco de banalizar um assunto sério, mas talvez encarar a morte como essa velha amiga que nos acompanha desde muito cedo seja uma forma de encarar o fantasma da finitude com mais parcimônia e leveza, com menos sofrimento e angústia. Tenho o palpite de que pode ser mais fácil encarar o fim da viagem se soubermos que as paisagens que costumávamos contemplar já não estão mais por lá.