Quem nunca se reuniu entre familiares e amigos para uma partidinha de pôquer, truco, bilhar ou se divertiu em jogos como bingo, dados, loterias e máquinas caça-níqueis? Há uma infinidade de jogos. Para alguns deles, é necessário que tenhamos habilidade e conhecimento técnico sobre as regras, enquanto para outros basta a sorte. Contudo, como podemos saber quando o jogo deixa de ser uma recreação e pode ser considerado patológico? E como a análise do comportamento entende o comportamento do jogador patológico?
Atualmente, algumas modalidades de jogos de acaso ou azar são proibidos no Brasil, mas isso não é suficiente para impedir o acesso a este tipo de jogo. Além da existência de cassinos e bingos clandestinos no país, a internet se tornou a principal via de acesso, que mantém o indivíduo envolvido no comportamento de jogar. Desta forma, o indivíduo não precisa se expor a ambientes ilegais, podendo cadastrar cartões de crédito em sites hospedados dentro ou fora do Brasil, jogando e realizando apostas virtuais até mesmo de sua própria casa, com baixo custo de respostas – já que não há legislação que permita controlar e fiscalizar este tipo de ação.
Oliveira, Silveira e Silva (2008) consideram como “jogos de azar” aqueles que envolvem apostas (de qualquer valor ou tipo) e tenham resultados incertos e/ou imprevisíveis. No Brasil, muitos destes jogos são legalizados e alguns são explorados pelo Estado, tais como as loterias, que oferecem a possibilidade de ganhos significativos, mediante apostas em dinheiro (Amorim, 2002). A repercussão do jogo patológico sobre a saúde dos indivíduos ainda não é mensurada de maneira apropriada e são escassos os estudos para subsidiar políticas públicas capazes de fornecer tratamento adequado (Oliveira, Silveira e Silva, 2008).
Presente na maioria das culturas, o comportamento de jogar é apresentado de forma lúdica pela comunidade verbal desde a infância. A depender da modalidade, o jogo pode ter a função de estimular a integração e socialização da criança, influenciar na aprendizagem de valores e na aquisição de novas habilidades, ensinar comportamentos como o seguimento de regras e a tolerância a frustração, além de auxiliar no desenvolvimento físico, cognitivo e emocional.
A depender do modo como o indivíduo se relaciona com os jogos, ele pode ou não desenvolver risco-dependência. A análise do comportamento compreende que o comportamento de jogar patológico é complexo e multideterminado pelos três níveis de seleção por consequências (filogenético, ontogenético e cultural). A maior parte dos comportamentos do indivíduo produz consequências que controlam e influenciam suas ocorrências futuras. Aquelas consequências que aumentam a probabilidade do comportamento ocorrer novamente são chamadas de reforçadores. Para compreender como funciona o reforçamento de uma resposta, Skinner (2003) estudou os esquemas de reforçamento contínuo e intermitente. No esquema de reforçamento contínuo, toda resposta é seguida por reforçador; enquanto no esquema de reforçamento intermitente nem toda resposta é seguida por reforçador. Os esquemas intermitentes básicos são razão fixa, razão variável, intervalo fixo e intervalo variável.
Os esquemas de razão, especialmente os de razão variável, podem nos ajudar a compreender melhor de que forma o indivíduo se mantem jogando: o esquema de razão fixa mantém o comportamento ao exigir um número fixo de respostas do indivíduo como condição para a apresentação de reforçador; já no esquema intermitente de razão variável o número de respostas necessárias para a obtenção do reforçador varia a cada novo ciclo. Deste modo, o indivíduo não pode prever quantas respostas precisa emitir para a liberação do reforçador, o que aumenta a frequência de respostas emitidas. Segundo Skinner (2003), é assim que funcionam os jogos de azar, que pagam a recompensa ao jogador em um esquema de reforço por razão variável. O esquema planejado no desenvolvimento do jogo faz com que o indivíduo continue jogando, já que ainda não obteve seu prêmio/recompensa/vitória e não pode prever em que momento ele virá. O jogar patológico é, então, exemplo de comportamento mantido por esse esquema de reforçamento, no qual as contingências de reforço se tornam imprevisíveis, fazendo com que o lucro ou a perda líquida final se torne irrelevante para explicação do comportamento do jogador.
Bernik, Araújo e Wielenska (1995 apud Banaco, 1999), descrevem quatro possíveis relações funcionais que influenciam a instalação e manutenção do comportamento do jogar patológico: (1) Pareamento entre estímulos ambientais (CS) e sensações prazerosas relacionadas aos atos do jogar impulsivo (UCS) – jogadores relatam que as sensações corpóreas produzidas pelo comportamento de jogar são prazerosas. Quando estas sensações forem associadas a quaisquer estímulos, como os sonoros e visuais que façam o indivíduo se lembrar do jogo, podem adquirir função de estímulos condicionados para o comportamento de impulsionar o indivíduo a jogar – efeito este produzido pelo comportamento de jogar que pode ser comparado ao uso de substâncias psicoativas. (2) jogar mantido por intermitência de reforçamento positivo – comportamentos mantidos por reforçamento positivo intermitente tendem a manter a alta frequência de respostas que, sob outras condições, sofreriam o processo de extinção devido ao longo período sem reforçamento. Isto explicaria o porque o jogador diante de consecutivas perdas continua a realizar apostas, mesmo que o último reforçador não sinalize o reforço das próximas respostas. Além das sensações prazerosas, o jogar pode ter seu comportamento consequenciado pelo ganho eventual (além de observar outras pessoas ganhando), o que pode promover forte resistência ao processo de extinção para o comportamento de jogar. (3) Jogar mantido por respostas de fuga/esquiva de eventos/sensações (comportamentos privados) incômodos/desconfortáveis – A sensação corpórea que é eliciada enquanto o indivíduo está emitindo o comportamento de jogar pode aliviar outros sentimentos ou emoções negativas. (4) Dinheiro (reforçador generalizado) – ganhar neste tipo de jogo não depende de habilidades específicas do jogador e geralmente, quando associados a recompensas em dinheiro tendem a motivar e engajar mais o comportamento de jogar, já que a recompensa em dinheiro pode ser trocada por qualquer coisa que o indivíduo desejar – inclusive jogar novamente.
Bernik, Araújo e Wielenska (1995) (1995 apud Banaco, 1999) apontam que o terapeuta deve atentar para alguns fatores relevantes para a avaliação funcional da patologia, tais como o local ou meio de acesso ao jogo, a frequência, o horário e o tempo de permanência ao jogar, o valor perdido x investido pelo jogador. É também necessário conhecer as consequências pessoais para o indivíduo, tais como os prejuízos para a sua saúde física e emocional, aparência, nível de estressores, controle de gastos e relacionamento interpessoal. Estas informações podem ser fornecias pelo próprio cliente, através de relato ou registro de comportamentos, ou por meio de relato de seus amigos e familiares.
É importante que o indivíduo reconheça que tem uma dificuldade e que procure por ajuda terapêutica. Geralmente, o jogador patológico acaba mentindo ou omitindo informações para os familiares sobre os comportamentos de jogar, por achar que tem o controle de quando parar, ou ainda por sentir vergonha. O jogador não é o único a sofrer com as consequências da patologia: seus amigos e familiares geralmente não entendem que o indivíduo precisa de ajuda e costumam se afastar quando descobrem o comportamento dependente e a proporção dos prejuízos que o jogar trouxe para a família, tais como problemas legais, profissionais, omissões sobre a perda significativa de dinheiro, mentiras, falta de dinheiro para necessidades básicas, pedido de empréstimo e ameaça de agiotas. Isso tudo pode acarretar em desentendimentos, a ponto do jogador perder muito de seu suporte social, levando a uma condição de privação e aversividade que, por sua vez, pode aumentar a probabilidade de o indivíduo recorrer ao jogo como esquiva de sua condição de desconforto e tentativa de resgatar o que foi perdido.
O terapeuta deve esclarecer sobre a patologia para o cliente e citar a importância de envolver uma rede de apoio, que geralmente é formada por amigos e familiares, além de pesquisar e informar sobre os grupos de apoio para jogadores. Faz parte também da tarefa do terapeuta estabelecer com o cliente o objetivo terapêutico: ter controle sobre o comportamento de jogar ou parar de jogar e, a partir disso, direcionar o trabalho de apoio interventivo e informativo que auxilie o indivíduo a evitar recaídas.
Agradecimentos: A escolha pelo tema deste artigo se deu a partir de uma projeto de pesquisa desenvolvido na Universidade Presbiteriana Mackenzie intitulado: “Análise do relato verbal de ex-jogador patológico e profissionais: o que mantém o jogar?”, realizado no ano de 2011 sob orientação da Prof.ª Ana Cristina Kuhn Pletsch Roncati. Os autores participantes deste projeto foram: Ana Érica Olyntho de A. Q. Ferreira, Beatriz Fernandes Marinho da Silva, Bruno Farina Hucke, Marina Zendron Notari, Oscar Chang Lan, Renée Oliveira Rocha, Sabrina Costa Victorelli, Thaís Silva de Lacerda e Tiago Menezes Faria: agradeço-os primeiramente pela parceria de trabalho, por compartilharem o saber e contribuírem para o meu conhecimento sobre o tema.
Referências Bibliográficas
AMORIM, C. Cartas na Mesa: uma análise de possíveis determinantes do comportamento de jogo patológico em GUILHARDI, H.J (Org). Sobre Comportamento e Cognição. São Paulo: ESETEC, vol 9, 2002.
BANACO, R.A. Tratamento do jogar patológico e prevenção de recaída. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, vol.1, n.1, pp. 33-40, 1999.
OLIVEIRA, M.P.M.T.; SILVEIRA, D.X.; SILVA, M.T.A. Jogo Patológico e suas consequências para a saúde pública. Revista de Saúde Pública, 42(3), 542-9, 2008.
SKINNER, B. F. Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
TAVARES, H. Jogadores Patológicos. São Paulo, 2011. Disponível em: <
<http://drauziovarella.com.br/dependencia-quimica/jogadores-patologicos/>. Acesso em: 17 nov. 2015.