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Sonhos são comportamento e, neste caso, seria mais interessante, então, falarmos em Sonhar. Ou seja, o comportamento de sonhar. Podemos dividir didaticamente o Sonhar em três categorias de comportamentos:
- Comportamento Perceptual: responder discriminadamente ao que se é sonhado, sentir, ver, ouvir, etc.;
- Comportamento Encoberto: são eventos cuja acessibilidade é possível apenas para o sujeito que se comporta ou é parcialmente acessível à comunidade por meio do comportamento verbal;
- Comportamento Verbal: o meio pelo qual a comunidade tem maior acesso ao que foi sonhado, neste caso, não trabalhamos diretamente com o que foi sonhado, mas o que foi discriminado e posteriormente relatado.
No entanto, temos alguns problemas teóricos:
- Quando sonhamos, não percebemos uma coisa em si. Não é um objeto real ou idealizado que vemos, ouvimos ou sentimos. Trata-se de sentir na ausência da coisa sentida e, sendo mais específico, “observamos” o nosso próprio comportamento. Por exemplo, se eu solicitar para você fechar os olhos e imaginar uma bola azul na sua frente, você poderá “ver” a bola por meio da minha estimulação verbal que controlará a probabilidade do seu comportamento de imaginar. Da mesma maneira, há variáveis ambientais e relacionais que proporciona a maior ou menor probabilidade de sentir algo na sua ausência, como veremos a frente;
- Não é porque algo é encoberto que será inacessível e incompreensível a outras pessoas. Muitas das variáveis que percebemos foram treinadas e nomeadas pela comunidade verbal. Ou seja, quando você sonha com algo e você responde discriminadamente ao que foi sonhado, você só o faz pelo treino prévio, por que você teve uma comunidade que promoveu autoconhecimento;
- O que é relatado não é o próprio sonho. Não há correlação exata entre o percebido e o falado. Se existisse, estaríamos caindo no uso realista da linguagem e não estaríamos trabalhando de maneira pragmática. O que relatamos fica sob controle do que é sentido na ausência da coisa sentida e de outras variáveis ambientais, como, por exemplo, a pessoa a quem relatamos (audiência). Talvez este controle não seja tão claro porque não temos o costume de avaliar de que maneira a presença de uma pessoa torna mais provável certas verbalizações e não outras, mas basta lembrar quando você quer paquerar alguém e esta pessoa entra no ambiente. Sutilmente seu repertório fica sob controle desta variável e ocorrem modificações. Faça o exercício de auto-observação e você poderá verificar este controle comportamental pelo ambiente social;
Segundo Carlson (2002), em nível filogenético, o sonhar tem função de consolidar a memória, reposição de certas substâncias bioquímicas e ajudou na sobrevivência da espécie. Lembremos que reforçamos que sonhar é comportamento e, se foi selecionado, é porque desempenha uma função de sobrevivência.
Em nível ontogenético, o sonhar pode ser considerado tanto um comportamento consciente como inconsciente. Em análise do comportamento, comportamento consciente é equivalente a autoconhecimento, que equivale à discriminação das variáveis que controlam o comportamento, e os comportamentos inconscientes são aqueles que ocorrem sem que respondamos discriminadamente às variáveis relacionadas com o responder (ou seja, não sabemos o que controla nossos comportamentos). Assim, a noção de (comportamento) inconsciente e (comportamento) consciente foge ao senso comum de que é saber as consequências de nossos atos e escolher como agir, ser consciente é saber reconhecer as variáveis que controlam nosso comportamento. Neste caso, muitas das variáveis que controlam o comportamento de sonhar são inconscientes, por diversos motivos, como o simples fato de estarmos dormindo.
No entanto, temos o nível cultural. Por meio dele aprendemos a relatar o que sentimos e imaginamos. Relatos de sonhos ocorrem porque desempenham alguma função social. Basta procuramos na internet por “significado dos sonhos” e encontraremos sites e livros que tentam interpretar os sonhos por uma via mística. Retomando ao nível cultural de seleção: nossa suposição/ proposta/ argumento/ sobre a manutenção dos relatos de sonhar são simples:
- Para o sujeito que sonhou, a audiência social funciona como reforçadora (atenção e contato social, por exemplo);
- Para o sujeito que ouve o relato, pode significar valorização, afinal a pessoa está confessando algo “intimo”, do seu “interior”, o que denota intimidade (reforçamento por meio de valorização afetiva, por exemplo);
- Em alguns contextos sociais, o sonhar é relacionado com status quo de vidência, capacidade de falar com deuses, inspiração artística, etc. assim o sonhador ganha reconhecimento social. Tal valorização destes comportamentos podem ser verificados em vários livros de história e antropologia, basta pesquisar por exemplo os povos hebreus, gregos, viking, algumas religiões contemporâneas, etc.;
- Da mesma maneira, o comportamento do ouvir (do ouvinte) é reforçado pelo contexto místico que possa envolver o relato como uma “revelação do destino”, por exemplo, além de que contextos que denotam “novidades” e proporcionam o comportar-se de modo curioso são reforçadoras naturais (vide Millenson, 1975).
Desta maneira, quando relatamos um sonho, ficamos sob controle de:
- Nossas condições corporais (o que identificamos no momento do relatar);
- Audiência do ouvinte (no caso do contexto clínico, do terapeuta); e
- Nossa própria audiência (às vezes editamos informações para evitar punições sociais ou exageramos quanto alguns conteúdos com a finalidade de aumentar a atenção do ouvinte).
Os eventos que ocorrem em vigília influenciam o que sonhamos no sono. Por exemplo, uma pessoa sob privação de contato sexual poderá sonhar com contextos que estejam relacionados com ato sexual. Em caso de controle ético muito rígido de uma comunidade quanto ao sentir-se excitado sexualmente, a pessoa poderá sonhar com obras de arte nuas ou com outras equivalências de estímulos relacionadas, como contato com uma peça de roupa macia (o “conteúdo” sonhado vai depender da história de reforçamento do sujeito).
Em alguns casos, os sonhos estão relacionados com experiências aversivas em vigília. Mesmo que, em tese, esquivemo-nos e fujamos de contextos aversivos, como temos que consolidar a memória se faz necessário sonhar com tais eventos aversivos. Sendo assim, sonhamos com um estímulo equivalente (funcionalmente falando) menos aversivo, mas que remeta ao contexto experienciado em vigília. Ou seja, nos comportamos de maneira simbólica, emitimos um comportamento simbólico enquanto dormimos.
Ao ler o texto de Delliti (2001) intitulado “Relato de sonhos: como utilizá-los nas práticas da terapia comportamental”, temos contato com um modelo de interpretação e intervenção comportamental a partir de relatos de sonhos. Lembremos que a interpretação funcional de relatos de sonhos deve ser utilizada como recurso clínico e não deve ser utilizada como principal fonte de dados sobre a história de vida do cliente/usuário.
Assim, para alguns clientes/usuários os seus relatos tem importância idiossincrática ou cultural (incluindo expectativas sobre como funcionará a terapia) e pode servir como um contexto que facilite o relato de diversos relatos do dia a dia e íntimos, incluindo eventos aversivos. Assim, é preciso considerar todos os tipos de relatos do cliente/usuário na medida que eles possam ajudar a coletar dados, promover análises funcionais e auxiliar no processo de mudança comportamental. O uso da interpretação de sonhos não deve ser utilizado como principal instrumento, mas como um recurso singular na medida que o relato do sonhar é recorrente e reforçador para comportamentos clinicamente relevantes.
REFERÊNCIAS
CARLSON, N.R. (2002) Fisiologia do comportamento. 7º ed. Barueri: Manole.
DELLITI, M. Relato de Sonhos: como utilizá-los nas práticas da terapia Comportamental. In. WIELESKA, R. C. (Org.) Sobre Comportamento e Cognição. Santo André: ESETec, 2001.
MILLENSON, J. R. (1975). Princípios de análise do comportamento. Brasília: Coordenada.
LEITRAS SUGERIDOS
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KOHLENBERG. M. L. & TSAI, M. Psicoterapia analítico Funcional: criando relações terapêuticas intensas e curativas. Santo André: ESETec, 2001.
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