A experiência emocional da maternidade atípica sob o olhar da ACT

Bruna Petinatti, Amanda Rosa e Carolina da Silva

A maternidade atípica é um termo frequentemente utilizado para descrever a experiência de mães de crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), deficiências intelectuais (DI) ou outras particularidades que desviam do desenvolvimento típico, considerado o esperado de acordo com os marcos de desenvolvimento, sendo marcada por desafios únicos que transcendem as expectativas tradicionais do papel materno (Pastorelli, Viana & Benicasa, 2024; Viana & Benicasa, 2023). O conceito de maternidade atípica possui também uma função social de trazer maior visibilidade para as particularidades deste maternar, que pode ser complexificado por conta dos altos níveis de estresse, sofrimento psicológico e uma notável ausência de redes de apoio.

 É importante diferenciar que mães também podem possuir um diagnóstico, assim como seus filhos. Nesse caso, falamos de uma mãe atípica vivendo uma maternidade atípica. Quando falamos de maternidade, nos referimos ao cuidado com o filho, e quando falamos da mãe, consideramos a mulher que realiza esse cuidado (Viana & Benicasa, 2023). Neste artigo, discutiremos os impactos emocionais, sociais e políticos vivenciados por mães atípicas, refletindo sobre a necessidade de suporte integral e reconhecimento de suas demandas.

A experiência da maternidade, por si só, marca uma nova fase na vida da mulher, desencadeando um processo de luto. Isso ocorre porque o luto não se restringe apenas à perda por morte, mas pode ser compreendido como um processo psicológico e emocional decorrente da perda de alguém ou de algo significativo (Kübler-Ross, 1969). Desde a gestação, a mulher passa por transformações físicas, emocionais e psicológicas, especialmente em uma primeira gravidez, o que desperta novos sentimentos, fantasias e expectativas.

O momento do nascimento pode, muitas vezes, trazer uma sensação de decepção no primeiro contato com o bebê, especialmente quando há alguma particularidade significativa. As expectativas dos pais se fragilizam, pois a imagem da criança idealizada, que traria apenas alegrias, não corresponde à realidade (Meira, 1996 e Jerusalinsky, 2007 apud Smeha e Cezar, 2011). O impacto é ainda maior para mães que não foram previamente informadas sobre a possibilidade de uma síndrome ou condição específica.

 Essa decepção inicial se intensifica em determinados contextos, como em casos de TEA:  a criança nasce sem sinais aparentes, e os pais constroem um imaginário que, muitas vezes, se desfaz na primeira infância. Com o tempo, começam a surgir os primeiros sintomas, como atrasos no desenvolvimento e dificuldades de socialização e interação, tornando evidente que a criança não se comporta da mesma maneira que as demais.

Enfrentar essa nova e inesperada realidade traz consigo uma carga intensa de sofrimento, confusão, frustração e medo. Trata-se de um processo de ressignificação da vida e das prioridades, marcado por profundas transformações emocionais. Um relato tocante de uma mãe, citado por Smeha e Cézar (2011), ilustra bem essa mudança:

“(…) eu aprendi muito tendo um filho especial. Eu vejo que nessa vida a gente não é nada (…). Eu dava importância pra joias, carro, roupa, sabe? Hoje, eu vou te dizer, não dou importância pra mais nada. Nada, nada, nada!”

Assim, evidencia-se como a maternidade atípica pode alterar profundamente a forma como essas mulheres percebem o mundo, seus valores e o que consideram essencial em suas vidas. Nesse momento de sofrimento intenso, práticas baseadas na Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) podem ser especialmente úteis. A ACT parte do princípio de que tentar evitar a dor, em vez de acolhê-la, pode intensificá-la. Em vez de lutar contra os sentimentos de frustração, medo ou luto, a ACT propõe que a mulher se abra para essas experiências como partes naturais de sua vivência, reconhecendo-as sem julgamento. Esse movimento de aceitação cria espaço interno para que ela possa escolher agir em direção ao que é mais significativo para si, mesmo em contextos adversos (Hayes, et al, 1999).

Mães de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), por exemplo, relatam um luto inicial pelo ideal perdido, seguido por um processo contínuo de enfrentamento de demandas práticas e emocionais (Bernardes & Silva, 2014). Esse luto enfrentado vai além da perda do ideal esperado, estendendo-se também à perda da vida anterior — uma transição vivenciada por todas as mães —, na qual ocorrem mudanças significativas nas dinâmicas familiares, nos relacionamentos e no trabalho. No entanto, na maternidade atípica, esse processo se intensifica por conta da rotina estabelecida, que tende a ser estruturada em torno das necessidades de tratamentos e acompanhamentos do filho, levando à perda de autonomia e liberdade, o que gera um sofrimento muitas vezes silencioso (Ematné, et al, 2023). 

A centralidade das demandas do cuidado, muitas vezes alimenta pensamentos ligados à performance materna, a ACT convida à prática da presença e da desfusão cognitiva, ou seja, observar pensamentos difíceis (como “sou uma má mãe” ou “não estou dando conta”) sem se fundir a eles ou permitir que definam sua identidade. Essa prática pode ajudar mães atípicas a reconhecer que, embora esses pensamentos surjam com frequência, eles não precisam guiá-las (Hayes, et al, 1999). Ao separar-se dessas narrativas internas, elas conseguem se reconectar com seus próprios valores e agir com mais liberdade.

O nível de estresse dessas mulheres é elevado, pois, além dos desafios inerentes à criação de um filho, a ausência de uma rede de apoio, a escassez de serviços inclusivos e acessíveis, e a precariedade do suporte público ampliam ainda mais essa carga, resultando em uma sobrecarga materna que impacta significativamente sua qualidade de vida (Luis, 2023). Tais desafios trazem consigo sintomas como ansiedade, insônia, angústia, preocupação excessiva, dificuldades interpessoais, incapacidade de relaxar, hipersensibilidade emocional, dificuldade de concentração e depressão (Fávero, 2005). 

A ACT não busca eliminar essas experiências internas, mas oferecer ferramentas para que a mulher possa conviver com elas com mais gentileza e menos autocobrança. Ao cultivar a aceitação e o engajamento com ações baseadas em valores como o amor, o cuidado e a conexão, essas mães podem construir uma vida com mais significado, mesmo diante da dor. A mudança aqui não é eliminar o sofrimento, mas transformar a forma como ele é vivenciado (Walser et al, 2019). 

Essas mudanças emocionais acontecem dentro de um contexto social que impõe à mulher a responsabilidade quase exclusiva pelos cuidados maternos. Como resultado, temos um ideal de mãe abnegada, construído historicamente em uma estrutura patriarcal, responsabilizando-se integralmente pelo cuidado dos filhos e desconsiderando suas subjetividades. No caso da maternidade atípica, isso se agrava. A ausência de uma divisão equitativa das tarefas parentais reflete um sistema que ainda entende a mulher como cuidadora natural, o que resulta em uma sobrecarga física e emocional invisibilizada (Bernardes & Silva, 2014).

Diante desse cenário, pensar em ações de cuidado exige um olhar atento e multidisciplinar, que complemente intervenções clínicas, como as baseadas na ACT. Isso inclui tanto profissionais de saúde que acompanham a mãe ou seu filho, quanto políticas públicas e redes de apoio. É necessário que esses recursos se articulem para acolher essas mulheres de forma integral, reconhecendo que, com frequência, suas necessidades são negligenciadas em favor do cuidado ao filho. Muitas vezes, a própria mãe não encontra espaço para se priorizar, nem dispõe de uma rede que possibilite seu autocuidado. Essas redes podem ser formadas por familiares, amigos ou por outras mães que compartilham experiências semelhantes, oferecendo não só auxílio prático, mas também escuta, acolhimento e pertencimento (Luis, 2023; Pastorelli, Viana & Benincasa, 2024).

Nesse contexto, a atuação dos profissionais de saúde é fundamental. Oferecer espaços de escuta, promover psicoeducação e garantir acesso à informação são estratégias que ajudam essas mulheres a compreender tanto as demandas do cuidado quanto suas próprias necessidades emocionais. Isso favorece o manejo do sofrimento, reduz a sobrecarga e amplia o repertório para enfrentar os desafios diários, promovendo maior autonomia (Luis, 2023; Pastorelli, Viana & Benincasa, 2024; Ematné, et al, 2023). Promover saúde mental na maternidade atípica é mais do que cuidar do outro, é garantir que essa mulher também tenha espaço para existir. Além das intervenções clínicas, é essencial que políticas públicas e redes de apoio atuem para criar condições que facilitem a vivência da maternidade atípica, impactando diretamente o sofrimento dessas mulheres. Isso inclui acesso a escuta qualificada, orientações, grupos de apoio e serviços especializados (Luis, 2023).

REFERÊNCIAS:

Bernardes, R. O., Silva, E. (2014). Cuidadoras de pessoas com deficiências: Uma análise de gênero. Anais Eletrônicos do 3º Seminário Nacional de Educação, Diversidade Sexual e Direitos Humanos. Vitória. https://cefd.ufes.br/sites/cefd.ufes.br/files/field/anexo/rafaela_olegario_bernardes_-_cuidadoras_de_pessoas_com_deficiencia_uma_analise_de_genero.pdf

Ematné, M. F., Gomes, E. B. C., Campos, E. de O., Silva, M. A. da, Moreira, L. C. de M., & Gebara, C. F. de P. (2023). Psicologia e promoção da saúde mental materna. AnaLecta, 9(1). Recuperado de https://seer.uniacademia.edu.br/index.php/ANL/article/view/3874/0

Favero, M. A. B. (2005). Trajetória e sobrecarga emocional da família de crianças autistas: relatos maternos. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. doi:10.11606/D.59.2005.tde-27042005-113149. 


Hayes, S. C., Strosahl, K. D., & Wilson, K. G. (1999). Acceptance and commitment therapy: An experiential approach to behavior change. Guilford Press.

Kübler-Ross, E. (1969). Sobre a morte e o morrer. Rio de Janeiro. Editora Martins Fontes.

Luis, L. C. L. de A. (2023). Estressores psicológicos em mães de filhos diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista [Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal da Paraíba]. Repositório UFPB. https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/30394/1/LCLAL22062023-%20TCC%20FINAL.pdf

Pastorelli, S. de O. S., Viana, C. T. de S., & Benicasa, M. G. (2024). Maternidade atípica: caracterização do sofrimento e seus enfrentamentos. Revista Acadêmica Online, 10(50), 1–21. https://doi.org/10.36238/2359-5787.2024.v10n50.6

Smeha, L. N., & Cezar, P. K. (2011). A vivência da maternidade de mães de crianças com autismo. Psicologia em Estudo, 16(1), 43–50. https://doi.org/10.1590/S1413-73722011000100006

Viana, C. T. de S., & Benicasa, M. (2023). Maternidade atípica: termo e conceito. Revista Acadêmica Online, 9(46). Recuperado de https://revistaacademicaonline.com/index.php/rao/article/view/299

Walser, R. D., & O’Connell, M. (2019). The heart of ACT: Developing a flexible, process-based, and client-centered practice using Acceptance and Commitment Therapy (1st ed.; S. C. Hayes, Foreword). New Harbinger Publications.

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Escrito por SIG Mulheres na ACBS

Coluna do Grupo de Interesse Especial (SIG) em Mulheres na ACBS Br. Espaço para discussão de variáveis de gênero nas terapias comportamentais contextuais. Projeto organizado por Isla Cezzani, Julia Moreira, Aline Cristina da Silva, Amanda Rosa, Ana Patricia Cavalheiro, Bruna Petinatti, Camila Lourenço, Carolina da Silva, Juliana Melo

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