
Depois de me formar em psicologia, fiz mestrado e doutorado em filosofia. Pude constatar, ao longo dos anos, que ninguém cursa filosofia impunemente. É uma espécie de karma. Se você se propõe a viver questionando tudo, o universo acha justo que sempre tenha alguém questionando o que é exatamente que você faz. Costuma começar nos círculos mais íntimos, como a família, mas, quando o estoque de parentes acaba, nunca faltam substitutos. A pergunta pode ser a mesma – “para que serve a filosofia?” – mas as atitudes com que ela é feita variam bastante, indo da curiosidade autêntica à intenção, bem disfarçada ou não, de convencer a pessoa a procurar algo mais decente para fazer. O filósofo Daniel Durante lapidou uma reposta que considero uma excelente maneira de encaminhar conversas desse tipo:
Muitas vezes já me perguntaram sobre a utilidade da filosofia. Minha resposta é sempre a mesma. A filosofia é inútil. Não serve para nada. Mas ao ser inútil, ao não servir para nada, a filosofia está em muito boa companhia. Pense um pouco. Para que serve a beleza? Para que serve o bem? Para que servem a paz, a alegria, o amor… para que serve a felicidade? Estas coisas não servem para nada. Elas são o fim, a meta de todas as outras coisas que servem, que têm utilidade. Estas coisas, como a filosofia, são inúteis, imprestáveis. Elas não servem, são servidas (2017, p. 10).
Esse movimento drástico e aparentemente autodestrutivo, que insinua que a filosofia não tem valor algum, parece ser, a meu ver, a melhor forma de reagir. A estratégia de Durante convida o interlocutor a reavaliar sua própria pergunta, lembrando que há casos em que não é pertinente perguntar “para que serve”. Caso o sujeito efetivamente reavalie o questionamento que fez anteriormente, afastando-se de sua forma usual de pensar, diremos que ele, na prática, se aproxima da filosofia, ainda que não tenha sido apresentado a nenhuma teoria sobre sua natureza.
Sem a pretensão de dar uma definição exaustiva, podemos dizer que o trabalho filosófico é um esforço amplo e deliberado para pensar da forma mais nítida possível. A filosofia, sob essa perspectiva, não precisa servir para nada além do seu próprio objetivo intrínseco: a nitidez do pensamento. Ela é, então, um fim em si mesma, não depende de nenhuma fundamentação fora dela própria. Mas o fato de a filosofia não precisar ser útil não quer dizer que ela não o possa ser em certos contextos. Ela o é, aliás, muito frequentemente. Imaginemos uma psicóloga atuando em seu ambiente de trabalho, seja ele uma clínica, uma empresa, uma escola ou algum outro. Para executar sua função de forma satisfatória, ela precisa utilizar uma teoria que a auxilie a interpretar de forma produtiva os fenômenos com que lida. Uma boa formação filosófica, que aguce sua capacidade de pensar nitidamente, pode ser de grande ajuda para que essa profissional perceba aspectos relevantes desses fenômenos e consiga refletir de forma crítica sobre a sua teoria de base, utilizando-a de forma flexível e profícua.
Isso não vale apenas para aplicações práticas da psicologia. A psicologia experimental, essencial para a expansão de nosso conhecimento empírico sobre o comportamento, na ausência de uma teorização clara, pode virar um grande caos (Machado, 2000). Como observou Skinner (1947), o trabalho do experimentador não se inicia com a observação do dado bruto, mas com a escolha das variáveis que serão observadas. Essa escolha não é feita de modo casual por um estudioso isolado, ela é moldada pelas complexas interações da comunidade verbal da qual ele participa. O esforço filosófico, obviamente, é fundamental para que o cientista compreenda de forma mais profunda e abrangente suas próprias práticas de produção de dados empíricos. E indo além da perspectiva individual, podemos dizer também que a reflexão filosófica permite que a comunidade elucide de forma mais precisa seus critérios de produção e avaliação do conhecimento e construa conceitos, teorias e métodos mais robustos e bem fundamentados, o que tende a beneficiar todos aqueles que se valem dessas teorias em suas pesquisas e práticas.
Ora, essa caracterização da filosofia como um instrumento de grande utilidade para a psicologia e para outras áreas do conhecimento parece ser incompatível com a ideia de que ela é um fim em si mesmo. Qual seria então a forma correta de defini-la? Aqui cabe, mais uma vez, evocar a prerrogativa do filósofo de questionar o questionamento. Essa pergunta pressupõe que há uma única forma correta de definir filosofia. No entanto, definir conceitos é uma atividade humana, que ocorre em contextos variados, com propósitos diversos. Assim, a melhor forma de caracterizar a filosofia, ou qualquer outro termo, pode variar conforme essas condições. Diversas correntes filosóficas destacam a importância do contexto na formulação de definições e na compreensão das ações humanas como um todo. Nos próximos textos, abordarei de forma um pouco mais detalhada como essa perspectiva é desenvolvida pelo Behaviorismo Radical e pelo Contextualismo Funcional.
Referências
Durante, D. (2017). Tão Inútil Quanto a Felicidade: reflexões filosóficas imprestáveis. Disponível em: https://philarchive.org/archive/DURTIQ
Machado, A., Lourenço, O., & Silva, F. J. (2000). Facts, concepts, and theories: The shape of psychology’s epistemic triangle. Behavior and Philosophy, 1-40.
Skinner, B. F. (1961). Current Trends in Experimental Psychology. In Skinner, B. F. (1961). Cumulative record. Appleton-Century-Crofts. (Originalmente publicado em 1947).