Escrito por Ana Patrícia Cavalheiro, Juliana Felix de Melo e Amanda Rosa
A viuvez é um evento da vida que todos estão aptos a passar e que pode acontecer a qualquer momento da vida, seja você: jovem, adulto ou idoso. Não se restringindo a um gênero específico, mas temos uma cultura que associa esse momento de vida à figura feminina.
Essa fusão com a figura feminina traz um histórico de estar vinculado a um problema social, trazendo modificações nas áreas da saúde física, mental, social e financeira. Com isso, foram implementadas maneiras de lidar com mulheres que passam por isso, sendo esperado que elas se comportem de maneira a compor o que é esperado socialmente (Buaes, 2007).
A fusão cognitiva, segundo a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), ocorre quando nos tornamos presos a pensamentos ou emoções como se fossem verdades absolutas — vivenciando-os como realidades incontestáveis, mesmo que sejam apenas conteúdos mentais. Perdemos, assim, a capacidade de olhar para esses pensamentos com distância ou questionamento.
No caso de mulheres que passaram pela viuvez, essa fusão pode se manifestar em pensamentos como: “Nunca mais vou ser feliz”, “Sem ele, minha vida perdeu o sentido”. Quando fusionadas a essas ideias, é comum que ajam de forma alinhada a esse conteúdo — isolando-se, evitando novas relações e se afastando de atividades que antes eram significativas para si.
Como explicam Hayes, Strosahl e Wilson (2015), “Quando fusionados, formulamos uma situação simbolicamente e então organizamos nosso comportamento para se adequar às demandas das regras que estamos programados para seguir. Essas regras são socialmente inculcadas em nós e, assim, parecem ser ‘a coisa normal e racional a ser feita’” (p. 196).
Quando estamos em um relacionamento em que cedemos grande parte de nossa identidade ao outro, podemos experimentar uma crise de identidade caso essa relação termine, seja por divórcio ou por viuvez. Sem o parceiro, surge um vazio que não se restringe apenas à ausência física, mas também a uma sensação de desorientação sobre quem somos e qual é o nosso lugar no mundo. Em relacionamentos marcados por fusão identitária, a perda do companheiro não significa apenas o fim de uma convivência, mas a necessidade de reconstruir aspectos fundamentais da própria identidade (Worden, 2018).
Para muitas mulheres, esse processo é ainda mais difícil devido às expectativas culturais que reforçam a ideia de que suas vidas devem girar em torno do papel de esposa e cuidadora. Isso pode gerar uma dificuldade maior na adaptação à nova realidade, tornando o luto também um momento de reconfiguração pessoal e social.
Nesse processo de reconstrução, muitas mulheres se deparam com a tarefa de olhar para si com mais atenção. Ao longo da relação, pode ser que tenham deixado de lado desejos, vontades e até partes importantes da própria história para se adaptar à rotina do parceiro. Com a perda, vem também a chance de reencontrar aquilo que talvez tenha sido esquecido. Reconhecer os próprios sentimentos e ter coragem para viver esse momento com autenticidade pode ser o início de um caminho de resgate da autonomia (Xavier, 2021).
As dificuldades enfrentadas nesse momento vão ser proporcionais à qualidade do vínculo e laço afetivo com o parceiro que faleceu. Em alguns casos, podemos nos deparar com mulheres que eram fusionadas com a identidade do parceiro, sendo dependentes a ele e sua rotina. A quebra desse padrão pode levar a sentimentos de tristeza, quadros de depressão, desvalia e um irreconhecimento de si (Calache et al, 2022)
Em mulheres idosas, muitas vezes, tem-se menos opções de reconfiguração da vida e podem se sentir isoladas, tanto social quanto fisicamente. O envelhecimento traz questões de saúde, limitações físicas e uma redução na rede de apoio social, o que pode intensificar o luto (Calache et al., 2022).
Existe ainda o recorte de mulheres que passaram por experiência de violência conjugal, adicionando camadas ao processo de luto. A exposição contínua à violência pode levar a sintomas de ansiedade e depressão, dificultando a regulação emocional e a adaptação à vida sem o parceiro (Zancan & Habigzang, 2018).
Esse processo de (re)descoberta da nova identidade é permeado por vários processos e apoio do contexto familiar e social da mulher viúva. Durante o processo de luto, a mulher se depara com os sentimentos da perda, a cobrança por ser uma pessoa funcional e com a liberdade de descobrir sua nova eu.
A liberdade recém adquirida dá a sensação de ser autora da própria vida, dando autonomia e uma sensação de bem estar, focando em projetos de vida. Algumas mulheres conseguem lidar bem com essas sensações e construir uma vida que faça sentido para si. Algumas outras, não acham o equilíbrio entre essa sensação de bem estar e o luto pela viuvez, apresentando dificuldades de lidar com a liberdade que é instalada.
Com isso, cada mulher vai lidar de maneira única com esse momento de vida e de (re)descoberta, transitando entre os momentos de liberdade e a solidão da viuvez, achando o caminho que faz mais sentido para si. Nesse contexto, a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) pode ser muito útil ao trabalhar com mulheres enlutadas, especialmente por meio da aceitação, da desfusão cognitiva e da conexão com os valores. Esses processos ajudam a criar um distanciamento saudável dos pensamentos, permitindo que sejam vistos como eventos mentais, e não como verdades absolutas. A aceitação permite acolher a dor do luto com tristeza, saudade ou raiva sem precisar lutar contra ela, evitando ciclos de esquiva ou culpa. Já a conexão com os valores oferece direção, ajudando a mulher a seguir em frente com mais liberdade e cuidado consigo mesma, mesmo na presença da dor.
Buaes, C.S (2007). O envelhecimento e a viuvez da mulher num contexto rural: algumas reflexões. RBCEH, Passo Fundo, v. 4, n.1, p. 103-114.
dos Santos Calache, J. P., Coutinho, T. A., da Silva, J. V., Quintiliano, G. L. N., & Reis, R. D. (2022). Viuvez: Modificações no autocuidado e na saúde entre pessoas idosas. Enfermagem Brasil, 21(1), 29–42.
Hayes, Steven C.; Strosahl, Kirk D.; Wilson, Kelly G. Terapia de Aceitação e Compromisso: Um Tratamento Comportamental Orientado aos Valores. Tradução de Alexandre Marques Cabral. Porto Alegre: Artmed, 2015.
Worden, J. W. (2018). Aconselhamento do luto e terapia do luto: Um manual para profissionais da saúde mental. Roca.
Xavier, R. N. (2021). Consciência, coragem e amor: Análise behaviorista de objetivos da psicoterapia analítica funcional. Psicologia em Estudo, 26, e47074.
Zancan, N., & Habigzang, L. F. (2018). Regulação emocional, sintomas de ansiedade e depressão em mulheres com histórico de violência conjugal. Psico-USF, 23(3), 357–368. https://doi.org/10.1590/1413-82712018230301