Terapia de Aceitação e Compromisso em 2024: Presente, Passado e Futuros possíveis (Parte 01)

Contato com o Presente – O que é a ACT em 2024?

A Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) pode ser definida como uma abordagem psicológica que visa o alívio do sofrimento humano e a promoção de bem-estar, ancorada filosoficamente no Contextualismo Funcional e informada pela compreensão dos processos verbais/cognitivos humanos fornecida pela Teoria das Molduras Relacionais (RFT). Para tanto, a ACT recorre a um modelo de saúde psicológica voltado para a promoção de Flexibilidade Psicológica, cuja apresentação mais popular envolve seis processos dimensionalmente distribuídos, o famoso Hexaflex: (1) Aceitação; (2) Desfusão; (3) Contato flexível com o momento presente; (4) Self como contexto; (5) Valores; e (6) Ações de contato com Valores (Zettle & Wilson, 2023; Hayes et al., 2011).

Porém, para uma análise precisa sobre a ACT, devemos considerar a existência de outros modelos e descrições de Flexibilidade Psicológica que servem como alternativas e/ou complementos para o modelo do Hexaflex (para exemplos: Strosahl et al., 2012; Hayes & Ciarrochi, 2015; Luciano, et al., 2021; Ong, et al., 2024). Assim, em uma tentativa de definição unificada e abrangente, Flexibilidade Psicológica é um repertório comportamental de abertura intencional para experienciar estímulos privados (como pensamentos e sensações) no aqui-agora em função do engajamento em ações vinculadas a direções e qualidades de ação valorizadas (Hayes et al., 2006; Luciano, et al., 2021; Ong, et al., 2024).

Como a maioria dos empreendimentos científicos humanos, a ACT é um campo de conhecimento em constante evolução, com refinamentos, revisões, divergências conceituais, críticas e diferentes adaptações mediadas pelas ações da comunidade de profissionais e pesquisadores interessados nessa forma de pensar a Psicologia. Isso leva alguns colegas a apontarem, por exemplo, a existência de “mais de uma ACT” ou “mais de uma forma de atuar com a ACT” (ie. uma ACT deliberadamente ancorada nos processos básicos da RFT e Análise do Comportamento, e uma ACT orientada aos processos descritos em termos de nível intermediário). Outros pontos pertinentes de debate sobre a área tendem a flutuar entre diferentes níveis de precisão, escopo e profundidade (ie. Barnes‐Holmes et al., 2015; O’Donohue, 2023; Hayes et al., 2023).

Com isso em vista, esse texto em duas partes não tem a finalidade de ilustrar uma “versão verdadeira e definitiva da ACT” (algo que certamente seria incompatível com o Contextualismo Funcional). Em vez disso, apresento alguns marcadores importantes que facilitam a compreensão da evolução da abordagem ao longo das décadas, assim como alguns terrenos frutíferos de desenvolvimento científico que podem sinalizar para o futuro desse campo. Tudo isso associado a um bom volume de referências às quais incentivo à leitura para aprofundamento.

Reconhecendo o Passado – Um pouco de história

Para compreender o surgimento da ACT, precisamos nos remeter à história das intervenções comportamentais e cognitivas no contexto internacional (O’Donohue et al., 2001; Hayes, 2004; Depreeuw et al., 2017). As primeiras formas de terapia comportamental, fundadas nas décadas de 1950 e 1960, surgem como alternativas aos modelos psicodinâmicos e buscam a implementação de tecnologias de modificação do comportamento, ancoradas em princípios básicos bem estabelecidos experimentalmente à época (i.e., Aprendizagem Respondente e Operante). No final da década de 1960, sob a influência de concepções teóricas e filosóficas diversas (i.e., Epíteto, Racionalismo Crítico, filosofia existencialista e analogias computacionais), ganham força as intervenções de base cognitivista, que se consolidam posteriormente a partir de um massivo número de evidências derivadas de estudos randomizados controlados voltados para o acompanhamento de transtornos psiquiátricos (i.e., Rush et al., 1977; Butler et al., 2006).

Nas décadas seguintes, paralelamente à hegemonia cognitivista, uma parcela da comunidade de profissionais e pesquisadores permaneceu interessada e engajada na tentativa de compreender fenômenos humanos complexos a partir dos princípios respondentes e operantes (como é o caso de parte da comunidade brasileira, conforme descrevem Leonardi & Cândido, 2022). Nesse contexto, Robert Zettle e Steven Hayes começaram a investigar possíveis análises das intervenções da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) sob a perspectiva do Comportamento Governado por Regras (Zettle & Hayes, 1982), o que eventualmente levou à criação de uma nova proposta terapêutica enfatizando não a reestruturação, mas a tomada de perspectiva sobre os processos cognitivos: o Distanciamento Abrangente (Comprehensive Distancing).

Nos anos seguintes, o Distanciamento Abrangente recebeu várias adições, ampliando seu escopo inicial. Por exemplo, incorporando noções do que viria a se tornar a RFT (Sidman, 1971; Hayes & Brownstein, 1985) e pressupostos filosóficos/epistemológicos que embasariam o Contextualismo Funcional no futuro (Pepper, 1942; Kantor, 1959; Day, 1969; Hayes & Brownstein, 1986). Além disso, a “pré-ACT” passou a contar com a contribuição de novos pesquisadores interessados, como Kelly Wilson, Linda Hayes, William e Victoria Follette (Zettle & Wilson, 2023). Com isso, a década de 90 e o início dos anos 2000 foram marcados pela fundação do Contextualismo Funcional, da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) e da Teoria das Molduras Relacionais (RFT).

O primeiro manual de ACT foi publicado em 1999 (Hayes et al., 1999), marcando o início de um movimento de propagação e globalização desse modelo terapêutico. Desde então, houve um grande volume de publicações de diversos autores em vários países, incluindo a publicação de uma versão atualizada do primeiro manual em 2011. Outro marco dessa expansão foi a criação da Associação para as Ciências Comportamentais Contextuais (ACBS) em 2005, que hoje possui membros em mais de 90 países e realiza encontros anuais, além de uma série de atividades regulares que fomentam pesquisa, treinamento e implementação da ACT. Embora essa propagação indique um grande interesse nas contribuições que a ACT pode fornecer para a sociedade, é necessário estar atento à possibilidade de que esse processo ocorra de forma displicente, afastando-se de seus fundamentos básicos e levando a uma diluição do modelo, pauta importante em discussões atuais sobre a área (Walser & Wharton, 2023).

Considerando um cenário amplo dominado por outras terapias consideradas “padrão-ouro” para diversos diagnósticos psiquiátricos, consolidadas a partir de uma vasta produção de Estudos Randomizados Controlados ao longo das décadas, uma característica importante e controversa no desenvolvimento da ACT é a sua influência na concepção de um modelo de saúde psicológica que não se foca na redução de sintomas, mas na promoção da qualidade de vida através da Flexibilidade Psicológica e por meios menos protocolares. Para uma discussão completa e acalorada sobre o status atual das evidências em torno da ACT, consulte Öst (2014), Atkins et al. (2017), Öst (2017), Gloster et al. (2020) e Hayes et al. (2023).

A principal referência para a escrita da retrospectiva histórica que compõe esse texto foi o capítulo “Progression of ACT”, escrito por Robert Zettle e Kelly Wilson, publicado no livro “The Oxford Handbook of Acceptance and Commitment Therapy” de 2023. A leitura dessa referência é altamente recomendada para um maior detalhamento.

Prévia da parte 02

Vislumbrando o Futuro – Fortalecendo a ponte entre ACT e RFT

Vislumbrando o Futuro – A Terapia Baseada em Processos

Comentário final – ACT, feita por quem, como e para quem?

Clique aqui para acessar a parte 02

Referências

Atkins, P. W., Ciarrochi, J., Gaudiano, B. A., Bricker, J. B., Donald, J., Rovner, G., … & Hayes, S. C. (2017). Departing from the essential features of a high quality systematic review of psychotherapy: A response to Öst (2014) and recommendations for improvement. Behaviour Research and Therapy, 97, 259-272.

Barnes‐Holmes, Y., Hussey, I., McEnteggart, C., Barnes‐Holmes, D., & Foody, M. (2015). Scientific ambition: The relationship between relational frame theory and middle‐level terms in acceptance and commitment therapy. The Wiley handbook of contextual behavioral science, 365-382.

Butler, A. C., Chapman, J. E., Forman, E. M., & Beck, A. T. (2006). The empirical status of cognitive-behavioral therapy: A review of meta-analyses. Clinical psychology review, 26(1), 17-31.

Day, W. F. (1969). Radical behaviorism in reconciliation with phenomenology. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 12, 315– 328.

Depreeuw, B., Eldar, S., Conroy, K., & Hofmann, S. G. (2017). Psychotherapy approaches. International perspectives on psychotherapy, 35-67.

Gloster, A. T., Walder, N., Levin, M. E., Twohig, M. P., & Karekla, M. (2020). The empirical status of acceptance and commitment therapy: A review of meta-analyses. Journal of contextual behavioral science, 18, 181-192.

Hayes, L. L., & Ciarrochi, J. V. (2015). The thriving adolescent: Using acceptance and commitment therapy and positive psychology to help teens manage emotions, achieve goals, and build connection. New Harbinger Publications.

Hayes, S. C. (2004). Acceptance and commitment therapy, relational frame theory, and the third wave of behavioral and cognitive therapies. Behavior therapy, 35(4), 639-665.

Hayes, S. C., & Brownstein, A. J. (1985, May). Verbal behavior, equivalence classes, and rules: New definitions, data, and directions [Paper presentation]. Association for Behavior Analysis 11th Annual Convention, Columbus, OH.

Hayes, S. C., & Brownstein, A. J. (1986). Mentalism, behavior-behavior relations, and a behavior analytic view of the purposes of science. The Behavior Analyst, 9, 175– 190.

Hayes, S. C., Hofmann, S. G., & Ciarrochi, J. (2023). The idionomic future of cognitive behavioral therapy: What stands out from criticisms of ACT development. Behavior Therapy, 54(6), 1036-1063.

Hayes, S. C., Luoma, J. B., Bond, F. W., Masuda, A., & Lillis, J. (2006). Acceptance and commitment therapy: Model, processes and outcomes. Behaviour research and therapy, 44(1), 1-25.

Hayes, S. C., Strosahl, K. D., & Wilson, K. G. (1999). Acceptance and commitment therapy: An experiential approach to behavior change. New York: Guilford Press.

Hayes, S. C., Strosahl, K. D., & Wilson, K. G. (2011). Acceptance and commitment therapy: The process and practice of mindful change. Guilford press.

Leonardi, J. L., & Cândido, G. V. (2022). The history of behavior therapy in Brazil and its relationship with the three waves. In Behavior therapy: First, second, and third waves (pp. 723-741). Cham: Springer International Publishing.

Luciano, C., Törneke, N., & Ruiz, F. J. (2021). Clinical behavior analysis and RFT: Conceptualizing psychopathology and its treatment. Oxford handbook of acceptance and commitment therapy, 1-28.

Kantor, J. R. (1959). Interbehavioral psychology: A sample of scientific system construction, 2nd rev.

O’Donohue, W. (2023). The scientific status of acceptance and commitment therapy: An analysis from the philosophy of science. Behavior Therapy, 54(6), 956-970.

O’Donohue, W., Henderson, D., Hayes, S., Fisher, J., & Hayes, L. (Eds.). (2001). A history of the behavioral therapies: Founders’ personal histories. New Harbinger Publications.

Ong, C. W., Ciarrochi, J., Hofmann, S. G., Karekla, M., & Hayes, S. C. (2024). Through the extended evolutionary meta-model, and what ACT found there: ACT as a process-based therapy. Journal of Contextual Behavioral Science, 100734.

Öst, L. G. (2014). The efficacy of acceptance and commitment therapy: an updated systematic review and meta-analysis. Behaviour research and therapy, 61, 105-121.

Öst, L. G. (2017). Rebuttal of Atkins et al.(2017) critique of the Öst (2014) meta-analysis of ACT. Behaviour research and therapy, 97, 273-281.

Pepper, S. C. (1942). World hypotheses: A study in evidence. Berkeley: University of California Press.

Rush, A. J., Beck, A. T., Kovacs, M., & Hollon, S. (1977). Comparative efficacy of cognitive therapy and pharmacotherapy in the treatment of depressed outpatients. Cognitive therapy and research, 1, 17-37.

Sidman, M. (1971). Reading and auditory-visual equivalences. Journal of Speech and Hearing Research, 14, 5– 13.

Strosahl, K. D., Robinson, P. J., & Gustavsson, T. (2012). Brief interventions for radical change: Principles and practice of focused acceptance and commitment therapy. New Harbinger Publications.

Walser, R. D., & Wharton, E. R. (2023). Effective Training and Delivery of ACT: The Dissemination and Implementation Issues. The Oxford Handbook of Acceptance and Commitment Therapy.

Zettle, R. D., & Wilson, K. G. (2023). Progression of ACT. The Oxford Handbook of Acceptance and Commitment Therapy.

Zettle, R. D., & Hayes, S. C. (1982). Rule-governed behavior: A potential theoretical framework for cognitive-behavioral therapy. In P. C. Kendall (Ed.), Advances in cognitive- behavioral research and therapy (pp. 73– 118). New York: Academic Press.

Zettle, R. D., & Wilson, K. G. (2023). Progression of ACT. The Oxford Handbook of Acceptance and Commitment Therapy, 3.

5 1 vote
Classificação do artigo
João Martins de Araújo Júnior

Escrito por João Martins de Araújo Júnior

Sou nordestino, psicólogo (CRP13/7477) e mestre em Neurociência Cognitiva e Comportamento (UFPB). Possuo formação em Mindfulness (Mente Aberta/Unifesp), Psicoterapia Baseada em Evidências (InPBE) e Terapias Comportamentais Contextuais (Atitude Cursos, ACT na prática clínica, Praxis CET, Ceconte, CEFI), em especial na Terapia de Aceitação e Compromisso e nas aplicações clínicas da RFT. Atuo como psicólogo e supervisor clínico em consultório privado. Sou Membro Geral da diretoria do capítulo brasileiro da ACBS no biênio 2024-2025 e representante do Grupo de Interesses Especiais em ACT (SIG ACT Brasil) no biênio 2023-2024, onde contribuo com diversos projetos para a difusão da ACT e da Ciência Comportamental Contextual no Brasil. Tenho particular interesse na Terapia Baseada em Processos e em discussões clínicas que envolvam temas sociais e políticos.

Relato de uma psicóloga e ativista do combate a violência sexual infantil que teve o “maio laranja” mais agitado e profícuo da sua vida (até o momento)

Pressões estéticas como uma forma de violência