Existe uma relação entre mudanças climáticas, desastres naturais decorrentes delas e mortes por suicídio? Uma investigação preliminar

Os efeitos do aquecimento global e das mudanças climáticas estão cada vez mais presentes, embora muitos(as) tenham uma tendência a continuar a negá-las, inclusive da participação humana nelas. O que está acontecendo em diversos municípios do Rio Grande do Sul, tomados parcialmente por enchentes decorrente de aumento de nível de chuvas, era anunciado por cientistas anos anteriores, porém os alertas foram negligenciados pelas esferas municipal, estadual e federal, como já foi amplamente reportado pela mídia. Vale ressaltar que, de acordo com a especialista em política climática Natalie Unterstell, “o que está acontecendo no Rio Grande do Sul hoje é a nossa nova realidade e não uma ‘triste exceção’”1. Há modelos estabelecidos por especialistas que apontam um aumento de até 60% de chuvas extremas no Sul do país em 30 anos2.

Diante dessa nova realidade, alguns efeitos são esperados, que tendem a comprometer significativamente uma delicada harmonia da natureza: o aumento médio de temperatura agrava o espalhamento de queimadas, além de causar alterações em padrões de chuvas, resultando em deslizamentos, inundações e alagamentos que assolam municípios parcial ou completamente. Secas também podem ocorrer, resultando em quebras de safras, desertificação de áreas outrora propícias para cultivo. O oceano também pode se tornar mais ácido, que coloca em xeque a sobrevivência de grande parte da vida marinha.

Em um artigo de 2018, Helen Berry e colaboradores apontam a necessidade de ocorrerem pesquisas que explorem os impactos das mudanças climáticas na saúde mental de seres humanos3. Durante as ondas de calor que experienciamos no ano passado,  sentimos um aumento de temperatura não só durante o dia, como também à noite. De acordo com um estudo de Obradovich e colaboradores, em 2017, foi constatado que esse aquecimento do período noturno (night-time heat) piora a qualidade de sono4. Isto é relevante na análise, dado que há uma associação entre problemas de sono com comportamentos suicidas5. No estudo de Helen Berry mencionado acima, foram compilados fatos que podemos estabelecer paralelos com a realidade brasileira, tais como: ondas de calor em uma cidade na Austrália contribuíram para aumentar internações6, algumas delas sendo decorrentes de autolesões7 ou de tentativas de suicídio8. Além disso, a quebra  de safras decorrentes de calores extremos esteve relacionada com aumento de mortes por suicídio em agricultores(as)9. Vale ressaltar que, de acordo com dados de consultores do agronegócio, a quebra de safra de soja desse ano poderá levar este setor no Brasil a perdas estimadas de até R$24,3 bilhões10.

Tais informações apontam para diversos problemas que iremos enfrentar ao longo dos próximos anos e décadas. Isto posto, haverão fluxos migratórios de refugiados(as) climáticos em função destes eventos extremos – que, novamente, serão cada vez mais frequentes –. Em função disso, será necessário que cidades com maior capacidade de resposta a eventos climáticos tenham conscientização de tais migrações para absorver esse aumento repentino de pessoas em seu território, além de preparo para lidar com estigmas e xenofobia que podem ocorrer por parte da população já residente. Em uma metanálise  por Sohrab Amiri para investigar prevalências globais de suicídios entre imigrantes e refugiados(as)11, concluiu-se que refugiados(as) são um grupo muito vulnerável a experienciar ideações suicidas, sobretudo por serem forçados(as) a mudar de território, seja por guerras ou outros fatores. A percepção de racismo foi uma variável relevante em ideações suicidas12 e discriminação teve associação com ideações suicidas13. Mulheres refugiadas são bastante vulneráveis a violência doméstica14 e isso é um fator de risco para o desenvolvimento de comportamento suicida15

Diante do exposto, notamos que há diversas variáveis que são decorrentes de mudanças climáticas e desastres naturais que favorecem o surgimento de ideações suicidas. Em um curto prazo após o desastre natural, é possível que as mortes por suicídio diminuam, em função do “efeito lua-de-mel”16, mas a existência desses fatores de risco favorecem o aumento posterior de pessoas que tentarão tirar a própria vida. Em uma revisão sistemática feita por Jafari e colaboradores17, buscando identificar fatores de risco entre desastres naturais e comportamento suicida, os autores concluem:

                        “Em outras palavras, adereçar as consequências psicológicas de sobreviventes de desastres naturais é indispensável para normalizar as reações e prevenir complicações futuras que, caso contrário, podem levar à diminuição de qualidade de vida e ao funcionamento de indivíduos. Por fim, os grupos que são mais impactados, que sofrem mais e que são mais vulneráveis aos efeitos de desastres (como mulheres, adolescentes, pessoas idosas, pessoas com depressão e Transtorno de Estresse pós-traumático, vítimas e pessoas sem pais) devem ser mais protegidas.” (p. 29, tradução livre).

O que a Psicologia pode fazer?

Sempre é válido relembrar que a nossa atuação, sobretudo do ponto de vista individual, é limitada diante da magnitude que vemos as mudanças climáticas e do impacto que elas causam nas pessoas. Entretanto, há a possibilidade de atuarmos para mitigar alguns dos danos psicológicos, sobretudo para promover maior qualidade de vida das pessoas afetadas. Olhando de um ponto de vista estrutural algumas ações parecem essenciais:

– Inserção em grades curriculares de Psicologia de Primeiros Socorros Psicológicos;

– Compreensão de estratégias mais eficazes para divulgações e campanhas para conscientização de aquecimento global e mudanças climáticas decorrentes dele;

– Realização de pesquisas e intervenções preventivas para mitigar efeitos psicológicos de mudanças climáticas.

Parafraseando Banaco18, o tema, conforme já foi indicado anteriormente, é bastante complexo e merece estudo, reflexão e atuação prática. Fica aqui o convite para essas atividades.

Referências

1 https://apublica.org/2024/05/tragedia-do-rio-grande-do-sul-era-mais-do-que-anunciada-mas-alerta-foi-ignorado/, acesso em 09 de Maio de 2024.

2 https://oglobo.globo.com/brasil/sos-rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/10/chuvas-extremas-no-sul-do-pais-terao-aumento-de-60percent-em-30-anos-aponta-inpe.ghtml?utm_source=Instagram&utm_medium=Social&utm_campaign=O%20Globo, acesso em 10 de Maio de 2024

3 Berry, H. L., Waite, T. D., Dear, K. B., Capon, A. G., & Murray, V. (2018). The case for systems thinking about climate change and mental health. Nature climate change8(4), 282-290.

4 Obradovich, N., Migliorini, R., Mednick, S. C. & Fowler, J. H. Nighttime temperature and human sleep loss in a changing climate. Sci. Adv. 3, e1601555 (2017).

5 https://comportamentoesociedade.com/2019/06/24/sobre-as-relacoes-entre-problemas-do-sono-e-pensamentos-suicidas/, acesso em 09 de Maio de 2024.

6 Nitschke, M., Tucker, G. R. & Bi, P. Morbidity and mortality during heatwaves in metropolitan Adelaide. Medical J. Aus. 187, 662–665 (2007).

7 Williams, M. N., Hill, S. R. & Spicer, J. Do hotter temperatures increase the incidence of self-harm hospitalisations? Psych. Health Medic. 21, 226–235 (2015).

8 Qi, X., Hu, W., Mengersen, K. & Tong, S. Socio-environmental drivers and suicide in Australia: Bayesian spatial analysis. BMC Public Health 14, 681 (2014)

9 Carleton, T. A. Crop-damaging temperatures increase suicide rates in India. Proc. Natl Acad. Sci. USA 114, 8746–8751 (2017).

10 https://exame.com/agro/quebra-de-safra-na-soja-pode-levar-a-perdas-de-r-243-bilhoes-diz-consultoria/, acesso em 09 de Maio de 2024.

11 Sohrab Amiri (2020): Prevalence of Suicide in Immigrants/ Refugees: A Systematic Review and Meta-Analysis, Archives of Suicide Research, DOI: 10.1080/13811118.2020.1802379

12 Wang, L., Lin, H.-C., & Wong, Y. J. (2018). Perceived racial discrimination on the change of suicide risk among ethnic minorities in the United States. Ethnicity & Health. Advance online publication. doi:10.1080/13557858.2018.1557117

13 Li, L. W., Gee, G. C., & Dong, X. (2018). Association of self-reported discrimination and suicide ideation in older Chinese Americans. The American Journal of Geriatric Psychiatry : Official Journal of the American Association for Geriatric Psychiatry, 26(1), 42–51. doi:10.1016/j.jagp. 2017.08.006

14 Erez, E. (2000). Immigration, culture conflict and domestic violence/woman battering. Crime Prevention and Community Safety, 2(1), 27–36. doi:10.1057/palgrave.cpcs.8140043

15 Colucci, E., & Montesinos, A. H. (2013). Violence against women and suicide in the context of migration. Suicidology Online, 4, 81–91.

16 Kõlves, K., Kõlves, K. E., & De Leo, D. (2013). Natural disasters and suicidal behaviours: a systematic literature review. Journal of affective disorders, 146(1), 1-14.

17 Jafari H, Heidari M, Heidari S, Sayfouri N. Risk factors for suicide behaviours after natural disasters: a systematic review. Malays J Med Sci. 2020;27(3):20–33. https://doi.org/10.21315/mjms2020.27.3.3

18 Banaco, R.A. (2001). Um levantamento de fatores que podem induzir ao suicídio. In H. J. Guilhardi, M. B. B. P. Madi, P. P. Queiroz & M. C. Scoz (Eds.), Sobre Comportamento e Cognição: expondo a variabilidade (pp. 210-217). Santo André: ESETec Editores associados.

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Escrito por Murilo Vasques Buso

Graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Qualificação Avançada em Terapia Analítico-Comportamental pelo Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento. Atuou como terapeuta no Laboratório de Terapia Comportamental Dialética (DBT-LAB).

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