Saber o que fazer ao se deparar com uma revelação de um cliente, já adulto, sobre os abusos sexuais que sofreu na infância ou na adolescência, pode ser uma grande angústia para os psicólogos que não estão familiarizados com o assunto.
No entanto, antes de pensarmos no que fazer com esta informação, compreender o que não fazer, é ainda mais fundamental, pois, a forma como o psicólogo irá conduzir a situação, será determinante para que o cliente continue a falar ou se feche de vez e possivelmente nunca mais toque no tema nem com o psicólogo, nem com ninguém.
É importante entendermos alguns pontos universais quando se trata de adultos vítimas de violência sexual infantil, tomando como base o que costumo chamar de “tríade maldita”: culpa, vergonha e medo.
Lidando com este público desde 2016 como palestrante, ativista, produtora de conteúdo e mais recentemente, também como psicóloga clínica, posso dizer com segurança que todos aqueles que passam por isso, temem, mais do que qualquer coisa, não serem acreditados e serem culpabilizados pelo que lhes foi feito.
Com uma frequência triste e assustadora, vítimas de abuso relatam se sentirem tão criminosas quanto aqueles que delas abusaram, e isso explica o porquê de tantas passarem décadas lidando com isso sozinhas, com os poucos recursos que tem e com muito, muito sofrimento. Paira sobre estes sobreviventes um grande medo de que as pessoas em seu entorno descubram que elas são criaturas horríveis, sujas, indignas de amor, de sucesso, de felicidade.
Isso acontece porque o modus operandi mais comum, quando se trata desta categoria de crime, a dos chamados “crimes de pedofilia”, é convencer a vítima de que ela quis, ela deixou, ela causou, ou seja, de que ela tinha o controle da situação, valendo-se, inclusive, das respostas fisiológicas geradas no corpo das vítimas a partir dos estímulos feitos, respostas estas que convencionamos chamar de excitação sexual, ou, prazer, daí a vergonha, a culpa, o medo de julgamento e a visão distorcida sobre si.
Uma infinidade de questionamentos ocorre naqueles que estão prestes a compartilhar o que é, muitas vezes, o segredo mais pesado de suas vidas:
E se eu não conseguir falar e começar a chorar?
E se ele contar para alguém?
Será que ele vai ficar com nojo de mim?
E se ele também não acreditar em mim, assim como toda a minha família?
E se ele acreditar, mas, perguntar por que eu demorei tanto para contar para alguém?
E se ele perguntar por que que eu não denunciei, por que eu me recusei a fazer exame de corpo de delito?
E se ele quiser saber por que eu menti quando me perguntaram se fulano de tal tinha feito algo comigo ou por que eu segui convivendo com o meu abusador como se nada tivesse acontecido?
Como eu vou explicar que apesar de tudo eu ainda gosto do meu pai/ tio/ avô/ padrinho/ etc ou que eu sinto falta das carícias mesmo sabendo que era crime?
Como eu vou contar que depois de um tempo, quem procurava o abusador, era eu, ou, que eu “deixava” ele fazer o que queria, porque ele sempre me dava alguma recompensa depois?
Se eu contar que eu não vejo o que aconteceu como um abuso, mesmo sabendo que tecnicamente é, ele vai me achar tão suja/sujo quanto eu me acho?
E se ele questionar a minha sexualidade e falar o que toda a minha família fala? Que eu só sou homossexual por causa do que me aconteceu?
Como eu vou contar que na época eu também fiz com outra criança o que fizeram comigo?
Como eu vou contar que eu tenho medo de me tornar um pedófilo/ pedófila sem que ele ache que eu estou dizendo isso porque eu já sou?
São tantas angustias, tantas perguntas, estas e muitas mais!
Podemos, a partir destes questionamentos, pensar em várias coisas para evitar ao nos depararmos com uma vítima de abuso que decide abrir “a caixa de pandora”.
Nestas circunstâncias, ao acolhermos o cliente que relata um abuso sexual infantil, devemos ter muito cuidado para não fazermos perguntas cujas respostas possam evocar sentimentos de vergonha, como “de que forma ocorriam os abusos?”. Uma exceção a esta regra são contextos em que o tratamento e a formulação de caso justificam claramente a formulação de questões como esta, como ocorre em uma Terapia de Exposição para Trauma.
Devemos ainda, evitar questionar, ainda que sutilmente, a veracidade dos fatos trazidos, mesmo que se trate de lembranças dos primeiros anos de vida; ou tentar amenizar a situação sob o argumento de que “que bom que foram apenas algumas vezes”, ou, “pelo menos não houve penetração”, ou, “já faz muito tempo” e “ficou no passado”.
Importante também evitar expressar opinião sobre a índole do abusador, visto que é bastante comum que as vítimas tenham sentimentos contraditórios por tais pessoas; importante não presumir que a vítima odeie seu algoz; ou indagar/ sugerir qualquer coisa relacionada à perdão ao abusador e aos cuidadores não protetivos. Neste momento,qualquer sugestão deste tipo, irá soar como um ataque, invalidação.
Nunca devemos subestimar o sofrimento e os potenciais danos gerados a partir do que possamos, enquanto ouvintes, considerar abusos “leves”. Não existe abuso sexual infantil leve, visto que, não existe uso adequado, aceitável ou mínimo da sexualidade de uma criança, portanto, não há que se relativizar a gravidade dos abusos ocorridos, independente das circunstâncias.
Uma passada de mão nas partes íntimas de uma criança ou uma exposição precoce à pornografia, pode, por vezes, representar um prejuízo na vida adulta, maior do que um estupro propriamente dito sofrido por outra criança, e é muito temerário colocar o sofrimento das vítimas num hanking de acordo com a quantidade e qualidade dos crimes sofridos, como se este dado desce conta da realidade, desconsiderando completamente a história de vida daquela pessoa, como o acolhimento familiar ou a falta dele, a presença ou ausência de violência real e de ameaça no decorrer dos episódios, ou ainda, o vínculo/ parentesco existente entre o abusador e a criança abusada.
Também é preciso tomarmos muito cuidado com as expressões faciais diante de relatos onde as pessoas descrevem como agiam durante os abusos, especialmente quando elas agiam de forma bastante ativa, pois isso costuma gerar muita vergonha. Lembrar que ativamente participava dos abusos que sofreu, evoca nela a ideia de que não foi crime ou que não foi um crime tão grave assim, afinal de contas, “eu até colaborava”, dizem as vítimas nesta situação, como eu mesma já ouvi de algumas delas.
Em verdade, quando nos deparamos com um adulto que finalmente decide romper o silêncio, estamos sim, diante daquela criança ora abusada, e devemos ter todo o cuidado para não sermos punitivos e invalidantes sem percebermos. Como costumo dizer, é preciso adquirir anticorpos para lidar com este assunto, ainda mais, se nós mesmos tivermos passado por isso, daí a importância de confrontarmos os nossos demônios e levarmos para a terapia nossas próprias dores relacionadas a isso.
Não significa ter que seguir com os atendimentos a qualquer custo. Pode ser que cheguemos à conclusão de que a melhor decisão é encaminhar o caso para algum colega com mais experiência nesta demanda. No entanto, saber como agir diante de uma revelação desta natureza é fundamental para não gerar ainda mais sofrimento naquela pessoa que precisou juntar todas as forças que tinha para te contar sobre a travessia mais difícil da vida dela. Sendo assim, sejamos oásis na vida destas pessoas, não deserto. De deserto, já basta o resto do mundo lá fora.