Algumas críticas e considerações minhas ao movimento de PBE na Psicologia no Brasil

Parte 01. Um contexto breve sobre PBE

A Prática Baseada em Evidências (PBE) em saúde pode ser sintetizada como um modelo para a tomada de decisão clínica que condessa três pilares: os valores e preferências da pessoa que recebe o acompanhamento, a expertise profissional e as melhores evidências disponíveis. Cada um desses pilares pode facilmente ser destrinchado em um grande número de processos e competências que, a partir desse modelo, seriam necessários para uma prática profissional ética e guiada pelo conhecimento científico.

Esse modelo não está isento de críticas¹ e, diferentemente do que muitas vezes se faz parecer, posições discordantes não surgem somente por parte de defensores de “pseudociências” e afins. Dentro das discussões atuais em Psicologia temos críticas pertinentes a certos aspectos que hoje fazem parte da espinha dorsal da PBE, como por exemplo, o uso extensivo de Estudos Controlados Randomizados (ECRs) como método de primeira escolha para avaliar eficácia clínica de uma intervenção e o foco em categorias sindrômicas e redução de sintomas para avaliar se um tratamento é bem-sucedido (ex.: Hayes & Hofmann, 2020; Hayes, Hofmann & Ciarrochi, 2023; Mullarkey & Schleider, 2021). Esses pontos, vale ressaltar, são intimamente ligados às origens da PBE no campo da saúde, que se deu em estudos farmacológicos.

Porém, devo dizer que o meu foco nesse texto não é criticar a PBE em si. Posso até salientar que a considero uma proposta bastante elegante, pragmática e importante para o momento em que vivemos. Não por acaso eu tenho formação em PBE e estou sempre estudando algo a respeito, apesar de não me apresentar como um “terapeuta PBE”. Na verdade, quero refletir justamente sobre o porquê de eu não conseguir me identificar com o movimento de PBE que temos hoje no Brasil.

Parte 02. As “autoridades da PBE” no Brasil e o seus comportamentos em contexto

Assim como podemos pensar a ciência como o produto do comportamento dos cientistas em um dado contexto histórico-cultural, podemos considerar a PBE como produto do comportamento das pessoas que alinham suas práticas a esse modelo e o divulgam como algo útil, também em um dado contexto. Esse é um recorte necessário aqui, para que possamos pensar a PBE não como uma “coisa” idealizada, mas como o fruto de um empreendimento social de um grupo de seres humanos se comportando sobre a influência de uma série de contingências.

Indo além, podemos considerar o quanto o nosso contexto socioeconômico atual está permeado por dispositivos que pautam a forma como nos comunicamos e interagimos com o mundo (ex.: publicidade digital e economia da atenção). O movimento de PBE no Brasil (assim como outros movimentos atuais) se consolida e se fortalece através das redes sociais. Nesses meios, o(a) profissional da Psicologia, o(a) entusiasta da PBE pode assumir (às vezes de forma quase compulsória) o papel de influenciador(a) digital.

Não é por acaso que algumas das pessoas consideradas e autodeclaradas como maiores autoridades em PBE no Brasil se mostram bastante ativas em suas redes sociais, colecionando milhares de seguidores (fenômeno que não sei se é generalizado para as “autoridades em PBE” de outros lugares do mundo). Fato é que, no processo de divulgação, alguns desses arautos da PBE acabam por naturalmente transferir parte das suas personalidades e valores para o modelo. Algo que é fortemente potencializado pela faceta de “influencer”.

Isso traz alguns riscos e implicações. O mais notável é a possibilidade de que o movimento se descole de seus fundamentos e se torne uma espécie de “culto à personalidade”, algo já visto em algumas abordagens psicológicas diga-se de passagem. Outros efeitos mais sutis dizem respeito à ênfase dada a pontos específicos do modelo (ex.: “Melhor evidência de eficácia” em detrimento dos outros dois pilares) ou a negligência de fatores considerados secundários (ex.: violência sistêmica sofrida por minorias sociais) ².

Esse mesmo contexto parece impactar na forma como a PBE é divulgada: por vezes em paralelo a promessas de maiores ganhos financeiros, de maior sucesso e realização profissional e até mesmo com um apelo estético específico e padronizado. Elementos que podem ser realistas, sobretudo com a chegada da PBE ao mainstream, porém que deixam em segundo plano o direcionamento ético em realizar um acompanhamento humanizado, individualizado e cientificamente amparado.

Parte 03. Por que não me nomeio como um “terapeuta PBE”

Durante meu mestrado em Neurociência em 2017, tive o primeiro contato estruturado com a PBE. Na época, eu era um terapeuta cognitivista³ recém-formado. Participei de disciplinas onde realizávamos análises críticas de produções científicas, explorando especialmente o pilar da “Melhor evidência disponível”. Na ocasião, percebi como a PBE poderia funcionar como uma ponte de comunicação entre mim e meus colegas de mestrado, muitos dos quais profissionais de outras áreas da saúde, como enfermagem, fisioterapia, medicina e fonoaudiologia. O modelo oferecia uma linguagem comum que facilitava o diálogo em um campo unificado, uma “Saúde Baseada em Evidências”.

Em 2018, mais especificamente em abril, tive acesso ao livro “Process-Based CBT” de Hayes e Hofmann, recém-lançado na época e traduzido para o Brasil como “Terapia Cognitivo-Comportamental Baseada em Processos” em 2020. Este livro teve um papel significativo em minha trajetória clínica, plantando a semente da minha “crise epistêmica”. A partir desse momento, gradualmente me aproximei das Terapias Comportamentais Contextuais e do Contextualismo Funcional como visão de mundo. Vale destacar que o livro também apresenta uma visão crítica em relação à PBE¹.

Em 2021, durante a pandemia e após participar de outras formações nos anos anteriores, incluindo Mindfulness e Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), optei por realizar uma formação completa em Prática Baseada em Evidências (PBE). Meu objetivo era consolidar conhecimentos adquiridos durante o mestrado e integrar essas bases com minha abordagem profissional atual, que já vinha se ancorando na ACT. Embora tenha desfrutado de algumas aulas muito boas, minhas expectativas foram parcialmente frustradas, sobretudo pela escassez de discussões que fossem um pouco além dos manuais e que envolvessem, por exemplo, sensibilidade ao contexto sociocultural brasileiro.

Durante esse período, meu contato com a comunidade da PBE nas redes sociais foi intensificado. O que pouco a pouco consolidou o meu desconforto com certas direções que o movimento passou a tomar: Além do uso crescente de estratégias agressivas de divulgação (ex.: incitar insegurança para vender cursos) e da emergência de atitudes proselitistas e policialescas por parte de alguns adeptos, o que ocorreu foi um posicionamento acrítico (ou até mesmo de apoio) a uma figura de posturas documentadamente elitistas, reacionárias e antiéticas, ao meu ver, pelo simples fato de a tal figura ser uma influenciadora da PBE com grande alcance.

Desde então, minha posição tem sido ao mesmo tempo de interesse e de crítica ao movimento da PBE em Psicologia: Interesse por compreender que devemos nos orientar pelos meios que nos forneçam as intervenções mais adequadas no amparo às vulnerabilidades vivenciadas pelas pessoas e por saber que o paradigma da PBE traz diversos pontos válidos para essa orientação; crítica por considerar que esse é um processo complexo, que carece de um alto nível de humildade intelectual, bastante letramento sobre questões sociais e uma análise aprofundada sobre o nosso atual modelo de sociedade, elementos que não costumam ser enfatizados quando a discussão se resume a “qual melhor terapia para o transtorno X?”.

Parte final. De qual PBE estamos falando?

A escrita desse texto me envolveu com várias experiências internas, das mais diversas valências e intensidades. E como bom contextualista funcional noto que a presença dessas experiências também me sinaliza processos que são valiosos para mim: Eu me importo muito com a nossa atuação profissional e com o papel que a Psicologia pode desempenhar na sociedade. Desejo profundamente que a Psicologia possa servir como um meio de transformação social e promoção de experiências de vida significativas e que não se resuma à manutenção do status quo. Quero uma Psicologia que seja mais parte da solução do que parte do problema, para citar um behaviorista famoso (Holland, 1979).

Ao meu ver, a PBE em Psicologia pode ser um movimento amplo e plural de reflexão e (auto)crítica sobre as nossas atuações, sobre os impactos que estamos gerando nas pessoas que desfrutam dos nosso acompanhamentos, sobre como potencializar benefícios e reduzir os riscos, sobre como implementar para mais pessoas processos prevenção em saúde mental e promoção de qualidade de vida e, até mesmo, sobre se é possível se manter “psicologicamente são” ainda que estejamos atravessados por inúmeras violências estruturais próprias da nossa época como a precarização do trabalho e as mudanças climáticas.

A PBE em Psicologia também pode ser uma marca (uma brand, no sentido mais mercadológico da palavra). Algo que é vendido e divulgado, de preferência em larga escala, que visa alcançar uma legião simpatizantes/adeptos/consumidores que, idealmente, vão defendê-la com unhas e dentes independentemente do contexto. Nessa faceta, as discussões sobre PBE se tornam um tipo de “você é time Apple ou time Android?” e a própria PBE pode se tornar um artigo de luxo, voltada, também, a um mercado de luxo.

Finalizo esse texto com um elogio às(aos) colegas que defendem a bandeira de uma PBE crítica e socialmente comprometida, que não são poucas(os). Espero que esse texto possa chegar até vocês não como um ataque e que, ainda que não concordem com nenhuma das minhas impressões, possam aproveitar dos pontos levantados para refletir sobre quais direções aproximam ou afastam a PBE dos seus valores originais como proposta.

¹ É valida a ressalva de que as críticas citadas não se voltam à “toda a PBE”, tão pouco invalidam a necessidade de um amparo empírico para a tomada de decisão clínica. De certa forma são mais propostas de reforma do modelo do que propostas de modelos novos completamente diferentes.

² Obviamente esse tipo de viés não está presente no discurso de todas as pessoas que trabalham e divulgam a PBE no Brasil. Algumas, inclusive, se destacam por serem referências no acompanhamento de grupos minorizados (ex.: a população LGBTQIAPN+). O que não abona a falta de letramento sobre atravessadores sociais que pode ser notada no discurso de outras figuras com grande voz na comunidade da PBE brasileira.

³ Naquele momento com uma ênfase maior em Compaixão e Mindfulness do que em Terapia Cognitiva clássica de Beck.

Hayes, S. C., & Hofmann, S. G. (Eds.). (2018). Process-based CBT: The science and core clinical competencies of cognitive behavioral therapy. New Harbinger Publications.

Hayes, S. C., & Hofmann, S. G. (Eds.). (2020). Beyond the DSM: Toward a process-based alternative for diagnosis and mental health treatment. New Harbinger Publications.

Hayes, S. C., Hofmann, S. G., & Ciarrochi, J. (2023). The Idionomic Future of Cognitive Behavioral Therapy: What Stands Out From Criticisms of ACT Development. Behavior Therapy, 54(6), 1036-1063.

Holland, J. G. (1979). Comportamentalismo: parte do problema ou parte da solução?. Análise Psicológica, 2, 317-326.

Mullarkey, M. C., & Schleider, J. L. (2021). Embracing scientific humility and complexity: Learning “what works for whom” in youth psychotherapy research. Journal of Clinical Child & Adolescent Psychology, 50(4), 443-449.

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João Martins de Araújo Júnior

Escrito por João Martins de Araújo Júnior

Sou nordestino, psicólogo (CRP13/7477) e mestre em Neurociência Cognitiva e Comportamento (UFPB). Possuo formação em Mindfulness (Mente Aberta/Unifesp), Psicoterapia Baseada em Evidências (InPBE) e Terapias Comportamentais Contextuais (Atitude Cursos, ACT na prática clínica, Praxis CET, Ceconte, CEFI), em especial na Terapia de Aceitação e Compromisso e nas aplicações clínicas da RFT. Atuo como psicólogo e supervisor clínico em consultório privado. Sou Membro Geral da diretoria do capítulo brasileiro da ACBS no biênio 2024-2025 e representante do Grupo de Interesses Especiais em ACT (SIG ACT Brasil) no biênio 2023-2024, onde contribuo com diversos projetos para a difusão da ACT e da Ciência Comportamental Contextual no Brasil. Tenho particular interesse na Terapia Baseada em Processos e em discussões clínicas que envolvam temas sociais e políticos.

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