Psicólogos clínicos lidam cotidianamente com tomada de decisões e intervenções complexas diante dos fenômenos humanos e dos indivíduos que os manifestam. Na condução dos tratamentos clínicos, adaptamos protocolos empiricamente sustentados à individualidade de quem nos confia suas dificuldades e seu sofrimento, assim como um alfaiate ajusta as suas técnicas de corte e costura às medidas e preferências da pessoa que atende. Nós, terapeutas, formulamos nossos casos clínicos considerando tanto as descrições do fenômeno em questão, suportadas pelas teorias com evidências relevantes e por pesquisas de qualidade, como nos atentamos às particularidades da pessoa com quem interagimos e conhecemos nas suas necessidades, desejos e prioridades.
Pesquisas ajudam a equilibrar vieses do terapeuta que, não obstante, é o melhor perito da relação terapêutica: é quem conhece a pessoa de quem está diante. O terapeuta sabe identificar as dificuldades do cliente, mantenedores e comportamentos associados; é capaz de desenvolver explicações e de conduzir a formulação dos objetivos da terapia; e, principalmente, é quem conhece a história de vida da pessoa e o observa em suas potencialidades e dificuldades. No trabalho psicoterapêutico nos orientamos para mudanças que levam ao ganho de repertório e melhora da vida da pessoa, o que vai reduzindo déficits e excessos comportamentais.
Na formulação de caso, portanto, terapeutas elaboram hipóteses e as revisam; organizam as informações levantadas; identificam e categorizam os problemas identificados; e desenvolvem planos de tratamento com monitoramento de todo o processo (Eells, 2007). Com isso, proponho aqui três eixos para uma formulação de caso que, embora descritos didaticamente como diferentes partes de uma formulação, frequentemente se interpõem. Após a descrição do que compõe cada eixo, elaborei um caso fictício para ilustrar como esses aspectos constariam em uma formulação de caso clínico.
Avaliação
Contamos com o relato do cliente, dados de avaliações e com nossas observações de seu comportamento em sessão. Registramos histórico relevante (eventos e experiências que se relacionam com os problemas atuais). Identificamos padrões comportamentais e conhecemos como aquele cliente responde. Fazemos uma lista de problemas da vida da pessoa, em que hierarquizamos prioridades e consideramos as suas urgências.
Terceiro filho de pai alcoólatra, cresceu em um ambiente familiar conflituoso, sofrendo abusos físicos, emocionais e negligência por toda infância e adolescência. Via a mãe apanhar do pai e sofrer de depressão. Atualmente está em um namoro e não mantém outras relações próximas. Trabalha em uma grande empresa multinacional em cargo de liderança; sente-se sobrecarregado e tem dificuldade de relacionamento com as pessoas da sua equipe. Pratica atividade física regularmente e mantém uma boa alimentação. [relato do cliente]
É habilidoso para se comunicar, consegue articular ideias em um raciocínio sensato e coerente. Comporta-se com muita autonomia, aceitando pouca ajuda, e fala dos seus problemas usando raciocínio lógico (sem expressividade emocional). [observação da terapeuta em sessão]
Escore 21 no Inventário de Depressão de Beck II (BDI-II), o que indica depressão moderada a severa; 24 no Inventário de Ansiedade de Beck, nível moderado de ansiedade; e 116 no instrumento OQ-45 (sofrimento clinicamente significativo), sem risco de suicídio e abuso de substâncias. [dados de avaliação]
Lista de problemas em hierarquia de prioridades:
Depressão e ansiedade
Estresse no trabalho
Isolamento e ausência de apoio social (família, amigos)
Hipóteses, Explicações e Diagnósticos
Elaboramos hipóteses e explicações sobre o funcionamento do cliente a partir de teorias com dados empíricos substanciais sobre os problemas clínicos. Fazemos análises funcionais do cliente e da interação conosco, terapeutas, buscando as variáveis mantenedoras de seu repertório. Também consideramos comportamentos do terapeuta que oportunizam e fortalecem alvos terapêuticos. Diagnósticos orientam os Tratamentos Empiricamente Sustentados recomendados.
Diagnosticado com depressão, sem ideação suicida e prejuízos na funcionalidade cotidiana, e com queixas importantes de ansiedade e estresse no trabalho. Relata e demonstra padrões de comportamentos passivos e sentimento de frustração frequente. Excessivamente responsivo às críticas (estímulo discriminativo para respostas de afastamento, com efeito estabelecedor), tenta ser agradável usando simpatia (função esquiva de julgamentos e críticas) e se sente muito sozinho (esquiva de relacionamentos pelo alto custo da resposta de ser agradável). Tem dificuldade de expressar experiências emocionais (história de punição familiar) e fica desconfortável quando recebe manifestações de interesse e atenção às suas necessidades (responder afetivo extinto).
Em sessão, analisa seus problemas de forma racional e evita expressão emocional. Reage às autorrevelações do terapeuta com distanciamento, dando respostas genéricas ou ficando calado. Terapeuta tende a dar explicações sobre a sua intervenção (racionalizando), também se esquivando de manter contato com as sensações geradas pela interação (insegurança em resposta à indiferença do cliente), devendo sustentar autorrevelação sobre impacto gerado pelo cliente e evocar resposta mais próxima de expressão afetiva (repertório de vulnerabilidade), que deve ser reforçada.
Objetivos e Planos de Intervenção
Objetivos devem ser significativos para a pessoa, equilibrando dificuldade e desafio, devem priorizar ganhos e satisfazer necessidades psicológicas básicas (pertencimento, autonomia e competência, de Ryan & Deci, 2017). Devem ser precisos e proximais, ainda que relacionados a alvos amplos e distais (i.e., valores, seguindo definição de Luoma, Hayes e Walser, 2007). O cuidado com esses aspectos sustenta a motivação ao tratamento e ajuda na boa relação terapêutica. É também responsabilidade do terapeuta ter meios para medir/identificar as mudanças nos objetivos terapêuticos.
Manejo da ansiedade e depressão: habilidades de aceitação, desfusão cognitiva, contato com momento presente, self como contexto, e ação com compromisso. Reaplicação mensal dos inventários Beck e semanal da escala OQ-45.
Aprendizagem de repertório de intimidade com terapeuta que gere mudanças nos relacionamentos da vida do cliente: autorrevelar-se (tato e mando sobre self) e reforçar comportamentos de aproximação.
Socialização com colegas de trabalho e amigos: treino de exposição e habilidades de efetividade interpessoal do protocolo DBT.
A formulação de caso guia o tratamento ajudando o terapeuta a manter a consistência da intervenção garantindo sua continuidade. Aumenta a eficiência do tratamento, centrando-se nas dificuldades do cliente, e gerando descrições/explicações validantes. Uma boa formulação de caso é o que possibilita ao terapeuta ser técnico ao mesmo tempo que espontâneo no relacionamento com o cliente durante todo o processo terapêutico.
Eells, T. D. (2007). Handbook of psychotherapy case formulation, Second edition. New York: Guilford Publications.
Luoma, J. B., Hayes, S. C., & Walser, R. D. (2007). Learning ACT: An acceptance & commitment therapy skills-training manual for therapists. Oakland, CA: New Harbinger Publications.
Ryan, R. M.; Deci, E. L (2017). Self-determination theory: basic psychological needs in motivation, development, and wellness. New York: Guilford Publications.
Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follete, W. C. & Callaghan, G. M. (2009). A guide to Functional Analytic Psychotherapy: Awareness, courage, love and behaviorism. New York: Spring.