Nos meus últimos textos tenho discutido com maior frequência alguns processos da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT – do inglês Acceptance and Commitment Therapy) aplicado a parentalidade, em especial a prática parental de crianças autistas. Se você, querido/a leitor/a não leu esses textos ainda, sugiro que o faça, pois o texto de hoje visa complementar e ampliar essa discussão.
- Contribuições da ACT para Parentalidade – https://comportese.com/2020/04/17/como-eu-vim-parar-aqui-algumas-contribuicoes-da-terapia-de-aceitacao-e-compromisso-para-a-parentalidade
- Apresentação de uma pesquisa que utilizou ACT para redução de estresse em pais de crianças autistas – https://comportese.com/2019/07/10/utilizando-a-terapia-de-aceitacao-e-compromisso-act-para-a-promocao-da-reducao-de-estresse-em-pais-de-criancas-com-autismo
A proposta do presente artigo é ser um material interativo, onde convidarei você a realizar algumas práticas e vivências com a premissa de clarificar alguns de seus valores, bem como, facilitar que sejam identificadas algumas ações comprometidas que poderão possibilitar que você vivencie os seus valores ou alguns deles. Por isso antes de seguir com a leitura reserve algumas folhas e uma ou mais canetas ou outro material de escrita.
Parentalidade: Afinal o que é e o que isso envolve?
Não é possível, nem seria ético, restringir a prática parental a um único comportamento, como se fosse uma receita de bolo (ex.: “Diante desse comportamento faça isso” sem avaliar os gatilhos e identificar as prováveis funções do comportamento).
Parentalidade envolve uma série de comportamentos que tem como premissa garantir a sobrevivência da sua prole e aquém disso, possibilitar o ensino e modelação de outros repertórios comportamentais que irão viabilizar a formação da identidade da própria criança, bem como, facilitar que essa transmita os ensinamentos aprendidos e apreendidos com sua mãe, pai e/ou outros cuidadores de referência para as próximas gerações (Coyen & Murrel, 2009; Siegerl & Hartzell, 2014/2020; Whittingham & Coyne, 2019).
Parentalidade envolve, também, o ensino de comportamentos que são socialmente relevantes, isto é, que auxiliarão que a criança participe de forma ativa e funcional nos contextos aos quais está inserida, bem como, modelar e colocar em extinção comportamentos que podem impactar no funcionamento e autonomia da criança (Coyen & Murrel, 2009; Siegerl & Hartzell, 2014/2020; Whittingham & Coyne, 2019).
Falar isso parece que as coisas serão fáceis, não vou mentir para você: NÃO SERÃO. A prática parental é um processo permeado por momentos desafiadores e, também, por momentos de muita alegria, felicidade, afeto e amor. Eis a dialética da vida, é possível experienciar amor e alegria durante a parentalidade, bem como, vivenciar momentos de tristeza e desgaste emocional e está tudo bem, você não será um/a péssimo/a pai, mãe ou cuidador por isso. Na verdade, visualizar e permitir-se sentir essas polaridades o torna humano (Coyen & Murrel, 2009).
Valores: ACT e como isso se Relaciona à Parentalidade
Em linhas resumidas, valores podem ser conceituados como aspectos que descrevem a pessoa que você quer ser ou que identifiquem o que ou quem é importante para você (ex.: estilos de vida e pessoas que são significativas para você) (Hayes, Strosahl & Wilson, 2012/2021; Saban, 2015).
Coyne e Murrel (2009) definem que valores podem ser visualizados, também, como uma postura de valorizar, isto é, um verbo, uma ação, visto que os seus valores não cessarão após você emitir um comportamento, pelo contrário é importante que eles se mantenham ou sejam revistos, pois serão a bússola para a direção que você deseja caminhar e além disso irão engatilhar a identificação de comportamentos variados, flexíveis e conectados com esses valores que você poderá emitir a curto, médio e longo prazo.
Como dito anteriormente, a parentalidade pode incluir uma série de desafios, esses podem incluir: dificuldade para manejar comportamentos da criança como por exemplo: chorar, gritar e insistir em ter algo em locais públicos, mudanças relacionadas ao interesse, alterações na rotina do sono ou alimentação, ansiedades relacionadas a separação dos pais ao ir para escola ou a situações de exposição e interação social, dentre outras situações desafiadoras (Coyen & Murrel, 2009; Siegerl & Hartzell, 2014/2020; Whittingham & Coyne, 2019).
Dado os desafios inerentes a parentalidade, com frequência pais, mães e outros cuidadores de referência apresentam comportamentos por vezes impulsivos, para aliviar ou cessar com a estimulação aversiva que é ver o/a filho/a apresentando comportamentos problemas em situações de visibilidade social e/ou quando está apresentando dificuldade ou comportamentos opositores para realizar outras rotinas familiares e comunitárias (Coyen & Murrel, 2009; Siegerl & Hartzell, 2014/2020; Whittingham & Coyne, 2019).
Alguns desses comportamentos podem incluir: dar acesso ao que a criança quer; bater nela; o pai, a mãe ou cuidador ficar imerso (leia-se fundido) aos pensamentos, emoções ou memórias; sair do local; pegar a criança e leva-la embora; etc.. Tais comportamentos podem ter um impacto considerável na forma com que o pai, a mãe ou outros cuidadores entram em contato com seus valores, pois esse tipo de reação ao invés de lhe aproximar dos seus valores irá afastar ainda mais (Coyen & Murrel, 2009; Hayes et al., 2012/2021; Saban, 2015; Siegerl & Hartzell, 2014/2020; Whittingham & Coyne, 2019).
Somado a isso, é provável que seja estabelecido um ciclo vicioso: “comportamento da criança e reação do/a cuidador/a”, dito de outra forma o pai, a mãe ou o cuidador, diante dessas situações ou ocasiões semelhantes, irá apresentar esses mesmos comportamentos ou outros com funções equivalentes (Coyen & Murrel, 2009; Whittingham & Coyne, 2019).
Antes de seguirmos cabe um convite preliminar:
- Por um momento pare a leitura desse artigo e avalie se os seus comportamentos durante a interação com sua criança estão lhe aproximando ou lhe afastando dos seus valores.
- Quais os impactos das suas reações aos comportamentos da sua criança na vivência dos seus valores?
A proposta desses questionamentos não é, EM HIPÓTESE ALGUMA, fazer com que você se sinta culpado/a ou responsabilize outra/s pessoa/s pelas dificuldades relacionadas a parentalidade, que você possa estar experienciando nesse momento, mas sim um convite a reflexão e que esse convite possa lhe impulsionar a realizar as práticas que vem a seguir.
Bora praticar um pouco?
Abaixo são listados alguns valores que foram definidos pelo Russ Harris (2011), peço que você os leia e anote quais são seus valores (ver Tabela 1). Caso algum de seus valores não esteja na lista sinta-se à vontade para escrever na sua folha.
Aceitação: aceitar as coisas que acontecem. Aceitar o que está acontecendo dentro da minha pele. Aceitar a mim mesmo, os outros, a vida. Não resistência. Aventura: ser aventureiro. Ser ativamente ativo na busca de situações novas e estimulantes. Assertividade: ser assertivo. Respeitosamente lutar pelos meus direitos e requisitar o que eu quero. Autenticidade: ser autêntico. Ser genuíno, real, ser verdadeiro comigo mesmo. Compaixão: ser cuidadoso e atencioso em relação ao seu próprio sofrimento e o sofrimento dos outros Conexão: engajar-se profundamente com aquilo que você está fazendo e nas relações pessoais. Contribuição: contribuir, ajudar, assistir e fazer a diferença para mim e para os outros. Coragem: ser corajoso, persistir mesmo diante do medo ou das dificuldades. Criatividade: ser criativo e inovador. Encorajamento: ser encorajador, olhar para os aspectos positivos em mim e nos outros. Flexibilidade: ser adaptável. Ser flexível a depender das circunstâncias. Perdão: perdoar-se por seus erros e os erros dos outros. Diversão: ser divertido, procurar situações de diversão e descontração. Gratidão: ser grato. Apreciar as coisas que você já tem e ser grato por isso. Dedicação: ser dedicado, trabalhar duro. Independência: ser independente, me autossustentar. Escolher a minha forma de fazer as coisas. Não depender dos outros. Intimidade: estar aberto, entregar-se, revelar-se emocionalmente e fisicamente para as pessoas nos meus relacionamentos. Amor: ser amável e afetuoso comigo e com as pessoas. Empatia: abrir mão de alguns pontos de vista, ver as coisas em outras perspectivas, colocar-se no lugar do outro. Paciência: ser paciente comigo mesmo e com os outros. Saber esperar por aquilo que eu quero. Prazer: criar prazer, dar prazer para si mesmo e para os outros. Responsabilidade: ser responsável, fazer aquilo que foi combinado. |
Ainda sobre essa lista, você identificou se os valores registrados se relacionam a uma área em comum na sua vida e/ou interação com sua criança? Em caso afirmativo, faça essas conexões no material que você está utilizando.
Valores podem ser relacionados a área do sentir, pois são vivenciados e experienciados e não algo que tem um início-meio-fim como os objetivos e metas. É provável que nesse momento você esteja se perguntando: “Tá, então como eu posso vivenciar os valores que eu listei?”. Lembra que destaquei anteriormente que os valores envolvem ações? Logo você precisará emitir comportamentos variados e se comprometer com isso para que assim possa vivenciar seus valores (Coyen & Murrel, 2009; Hayes et al., 2012/2021; Saban, 2015).
Os comportamentos que você irá apresentar podem ser descritos como objetivos ou metas. Saban-Bernauer e Matos-Ragazzo (no prelo) descrevem uma metáfora em que os valores são como estradas que você irá percorrer e nelas estarão presentes algumas placas indicando cidades que você tenha passado ou irá passar, essas placas são os seus objetivos que você realizou, se propôs e vai realizar para vivenciar seus valores.
A próxima e última atividade traz um convite para que você escreva sua “Estrada dos Valores” (Firestone et al., 2019 apud Saban-Bernauer & Matos-Ragazzo, no prelo). Para isso, selecione um valor que você identificou na tarefa anterior e liste objetivos que você poderá realizar essa semana; objetivos para o próximo mês; e objetivos a médio prazo e logo prazo (ver Imagem 1).
Como dito anteriormente a proposta desse texto não é que ele seja compreendido e seguido, literalmente, como uma receita de bolo, mas sim como um recurso para criar contexto a fim de que você, enquanto pai, mãe ou cuidador de uma criança, clarifique seus valores, bem como, identifique quais ações que tem realizado não estão sendo congruentes com esses e quais comportamentos poderão ser tomados a fim de que você possa ter uma interação com sua criança e viver uma vida significativa, valorosa e que valha a pena ser vivida.
Viver uma vida valorosa não é fácil, mas é possível, significativa e transformadora. Vale lembrar que a vida é feita de momentos felizes e desafiadores e que ambas essas situações geram inúmeras oportunidades de aprendizado. Como costumo dizer para meus clientes: “Flor de Lótus não nasce em água limpa”, ou seja, por mais desconfortável, desagradável ou desafiadora que uma situação ou interação com sua criança, consigo mesmo/a ou com seu/sua cônjuge possa ser, ainda assim, existem múltiplas oportunidades de transformação e construção de repertórios comportamentais flexíveis e valorosos.
Referências
Coyne, L.W., & Murrell, A.R. (2009). The joy of parenting: An acceptance and commitment therapy guide to effective parenting in the early years. New Harbinger
Harris, R. (2011). The confidence gap. A guide to overcoming fear and self-doubt. England
Saban-Bernauer, M. T., & Matos-Ragazzo, A. N. S. (no prelo). Terapia de aceitação e compromisso no contexto educacional. In L. R. V. Gonzaga, A. L. M. Andrade, & L. L. Dellazzana-Zanon. (no prelo). Estresse e ansiedade acadêmica: Processos psicológicos e intervenções com alunos e professores. Springer
Saban, M. T. (2015). Introdução à terapia de aceitação e compromisso. 2 ed. Belo Horizonte
Siegel, D., & Hartzell, M. (2014/2020). Parentalidade consciente: como o autoconhecimento nos ajuda a criar nossos filhos. São Paulo
Whittingham, K., & Coyne, L. W. (2019). Acceptance and commitment therapy: The clinician’s guide for supporting parents. United States
Hayes, S. C., Strosahl, K.D., & Wilson, K. G. (2012/2021). Terapia de aceitação e compromisso: O processo e a prática da mudança consciente. 2 ed. Porto Alegre