Este texto propõe uma reflexão crítica sobre como algumas formações clínicas, especialmente no contexto brasileiro, encontram-se descompromissadas com sustentar e explicitar as inúmeras limitações que as intervenções por elas comercializadas apresentam, especialmente no que diz respeito a admitir a baixa qualidade de evidência ou até mesmo a escassez ou ausência de testagem de eficácia (no contexto da pesquisa) e efetividade (no contexto clínico). Também direciono minhas palavras a terapeutas que aparentam ter mais preocupação com faturar e defender seu amor à sua abordagem de estimação do que em admitir as intrínsecas restrições que qualquer trabalho clínico apresenta. Imagino que talvez eu esteja metendo a mão em um vespeiro e possa eliciar algum grau de desconforto a quem ler à medida que os pontos aqui propostos colocam em xeque algumas paixões intensas, convicções profundas e irrefutáveis e um fervoroso e irrestrito apego a ideias e instituições. Desde já, quero deixar explícito, como exercício de honestidade intelectual, meu viés de implicação, pois sou sócio-proprietário da Sínteses – Psicologia, Psiquiatria e Ensino, instituição que oferece cursos de extensão e formação em diversas abordagens de psicoterapia baseada em evidências, além de professor em várias outras empresas de ensino, pelas quais prezo e tenho respeito. Logo, eu não escapo de observar com atenção tudo aquilo que aqui argumento, justamente pelo meu compromisso de contrapor isso na minha atuação profissional.
Acredito ser importante começar definindo a proposta da Prática Baseada em Evidências (PBE), um paradigma que surgiu na Medicina na década de 1990 como reação a condutas clínicas informadas majoritariamente pelo mito de que basta ter experiência clínica para arrasar na clínica (não me refiro aqui a arrasar com a cara no chão da clínica, embora isso também possa ser colocado em questão). A PBE ganhou força na Psicologia a partir dos esforços da Divisão 12 da American Psychological Association (APA) em promover a avaliação de tratamentos empiricamente sustentados para diversos problemas clínicos e definir diretrizes específicas de atuação profissional em Psicologia, o que resultou na criação do termo Prática Baseada em Evidências em Psicologia (PBEP) (Leonardi & Meyer, 2015).
A PBEP vem sendo popularizada nos últimos tempos no Brasil e tem sido corriqueiramente descrita no plural, práticas, o que é um equívoco conceitual, pois PBEP não é sinônimo de intervenções ou tratamentos psicológicos específicos (American Psychological Association, 2006). Existe somente uma prática baseada em evidências, no singular, que vale para todas as áreas da saúde, ramificando-se em termos específicos como Prática Baseada em Evidências em Fisioterapia, Prática Baseada em Evidências em Nutrição e a própria PBEP. Todas se referem ao comportamento de tomada de decisão clínica que tem três elementos indissociáveis: 1) evidências científicas, 2) perícia clínica e 3) idiossincrasias de cada paciente e de seu contexto cultural.
O primeiro diz respeito à necessidade de terapeutas selecionarem a melhor evidência científica disponível de acordo com o grau de compatibilidade e confiabilidade para o problema em questão. Logo, a famosa pirâmide das evidências que recorrentemente circula por aí é uma generalização incorreta. Neste artigo, por exemplo, menciono sucintamente problemas relacionados à eficácia de algumas intervenções. Se tratasse de outras questões, como diagnóstico ou efeito de exposição a condições específicas sobre o desenvolvimento de problemas clínicos, por exemplo, a discussão sobre o tipo de estudo mais ou menos forte seria diferente. A seleção do tipo de evidência depende do objetivo específico pretendido e fica a cargo de cada terapeuta, que deve desenvolver um hábito recorrente de consultar bases de dados científicas e manuais clínicos atualizados.
Essa consulta deve ser considerada à luz do segundo elemento, a perícia ou repertório clínico individual, que envolve levar em conta o background de formação acadêmica de cada terapeuta, supervisão ou consultoria, experiência clínica, educação continuada e estudo pessoal da literatura. Esse repertório também envolve desenvolver habilidades básicas para estabelecer uma boa relação terapêutica, conduzir avaliações diagnósticas, identificar e monitorar alvos relevantes de tratamento, planejar e implementar as intervenções, entre outros.
Por fim, esses dois componentes cruciais devem ser aplicados no contexto de cada paciente a partir de suas características, preferências e cultura. É essencial envolver o indivíduo nas decisões referentes ao seu tratamento e considerar todos os aspectos envolvidos no caso em questão, de modo a oferecer intervenções efetivas, individualizadas e culturalmente responsivas (American Psychological Association, 2006).
O paradigma da PBEP procura denunciar e combater más práticas profissionais, algumas das quais encontram-se descritas em um clássico artigo anedótico escrito por Isaacs e Fitzgerald (1999). Entram nesse grande balaio de comportamentos inadequados as práticas baseadas na:
1) Eminência, respaldada no mito da suficiência da larga experiência clínica e a palavra das grandes autoridades (o que inclui as igrejas de Skinner, Beck, Freud e qualquer outra aglomeração de pessoas dedicadas fervorosamente a pregar a palavra divina dos papas teóricos);
2) eloquência, ou seja, a capacidade de convencimento e persuasão de que algo que não funciona é muito razoável, bonito e eficaz;
3) veemência, que envolve o nível de chatice, insistência e estridência que terapeutas podem empregar para defender suas paixões pessoais;
4) providência, maculada por crenças e vieses religiosos de terapeutas, comportamento que deveria ser inadmissível, mas é mais comum do que se imagina, como alguns grupos de WhatsApp Brasil afora demonstram;
5) difidência, arvorada na arrogância terapêutica que desconfia de evidências que contrariam seus amores teóricos, ainda que a pessoa não saiba a diferença entre uma variável dependente e independente;
6) previdência ou nervosismo, que ocorre quando profissionais agem de forma defensiva e excessiva no planejamento e registro das intervenções de modo a não se responsabilizar por eventuais falhas (também conhecida como medo do processinho);
7) e confiança, quando terapeutas se pressupõem acima do que a evidência científica demonstra, podendo também ser chamada prática baseada na arrogância.
Minha contribuição a esse debate é a proposição de um oitavo elemento à crítica satírica original, carinhosamente aqui nomeado prática baseada no livro-caixa, tanto em termos de mensuração do faturamento pessoal de cada terapeuta quanto das generosas contas bancárias das empresas de ensino. Basicamente, a grana ganha no consultório e nos cursos formativos costuma falar mais alto do que o compromisso com oferecer intervenções que sejam fundamentadas cientificamente e o reconhecimento de nossas limitações. Hoje em dia, se você domina ferramentas estratégicas de marketing, capricha na dancinha no Reels do Instagram, conhece os truques de fidelização do público, está estabelecido como autoridade no seu campo de atuação, tem uma boa rede de contatos e é uma pessoa com mínimas habilidades sociais, você lota uma turma de formação em psicoterapia sem tanta dor de cabeça. Isso passa longe de ser um problema, não sendo algo errado ou condenável; eu estaria sendo hipócrita se achasse isso um problema. Trabalho é trabalho e promover acesso a conhecimento é uma das coisas que particularmente me brilha os olhos.
O que acontece é que, na busca por defender a proposta comercial e/ou o faturamento recorrente, esquece-se muitas vezes de manter o olhar crítico sobre potenciais limitações que cada abordagem teórica apresenta. Vamos a alguns exemplos. Terapeutas que trabalham com Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) adoram falar que essa abordagem tem mais de 400 ensaios clínicos randomizados, esquecendo de mencionar o pequeno-grande detalhe de que uma parcela significativa deles apresenta baixa qualidade metodológica e tamanho de efeito ínfimo, assim como outras terapias comportamentais e cognitivas no geral (Graham et al., 2016; Hunot et al., 2013). Obviamente essa é uma discussão complexa, que envolve mudanças de paradigma da pesquisa a partir da pesquisa sobre processos de mudança terapêutica e a adoção de sistemas transdiagnósticos. Eventuais críticas ao que estou expondo são certamente bem-vindas, pois gosto de boas conversas e de questionar o que faço e escrevo. Eu só me preocuparia caso emergisse das profundezas de Hades o negacionismo científico em prol da defesa da paixão teórica e da prática baseada no livro-caixa. Mas parto do pressuposto que você que está lendo é uma pessoa legal e não deixará de brincar comigo no parquinho porque ficou chateada com algo que escrevi.
Quem trabalha com Terapia Comportamental Dialética (DBT) eventualmente a propaga como se fosse uma panaceia para todos os males, quer envolva desregulação emocional grave ou não. Cabe lembrar que este modelo de tratamento possui evidências de eficácia e efetividade principalmente para o transtorno da personalidade borderline associado a comorbidades, não podendo ser generalizado para, por exemplo, outros casos envolvendo risco de suicídio (Fox et al., 2020; Storebø et al., 2020). A Psicoterapia Analítica Funcional é alardeada como uma excelente ferramenta para aprimorar a relação terapêutica, mas até o momento não apresenta sustentação empírica que justifique ser vendida como uma panaceia relacional, sem explicitar suas limitações. Isso foi constatado numa revisão feita por trainers oficiais da FAP, num verdadeiro e valioso exercício de honestidade intelectual, que muito tem a contribuir com o debate científico e a própria evolução da abordagem (Kanter et al., 2017). Mas obviamente ter coragem, consciência e amor é muito bonito (e rentável).
A Terapia Analítico-Comportamental (TAC) é uma curiosa criação brasileira, só existente por aqui, que transpôs com muita confiança o conhecimento básico de análise do comportamento para a prática clínica, carecendo, contudo, de estudos de eficácia e efetividade que justifiquem adotá-la em detrimento de intervenções já consolidadas (Leonardi & Meyer, 2016). Em defesa da TAC, há quem inclusive questione o método científico como um todo, semelhante ao que fazem negacionistas da pandemia, terraplanistas, antivacinas, praticantes de coaching quântico e reprogramadores de DNA; afinal, vale-tudo pela minha paixão. Para que eu não seja “xingado” de mentalista (mesmo sem sê-lo), é importante também mencionar a baixa qualidade de muitos estudos da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), que usa inapropriadamente o rótulo padrão ouro para vários transtornos mentais (Leichsenring & Steinert, 2017) e tem perdido efeito nas pesquisas ao longo dos anos (Johnsen & Friborg, 2015). Vale também mencionar como a Terapia do Esquema (TE) tem sido utilizada de forma ampla e sem critério bem estabelecido para inúmeras demandas, sendo que não há evidência que apoie essa conduta generalizada (Taylor et al., 2017).
Não estou colocando em questão a realização de cursos e treinamentos dessas abordagens. Eu trabalho com algumas delas e dou aula em formações que treinam terapeutas para aplicarem essas intervenções. A grande questão é que possamos parar de alardear que nosso trabalho é a oitava maravilha do mundo e assumir os vieses, limitações, falhas e restrição das evidências que sustentam o tratamento (o que inclui deixar explícito quando não há evidência suficiente). Estamos num estágio de desenvolvimento científico de testagem de psicoterapias em que uma parcela substancial dos estudos publicados carece de qualidade, o que sugere prudência no consumo da literatura (Hetrick et al., 2016; Shires et al., 2020).
Dizer que algo é baseado em evidências é muito bonito, está na moda e vende bem. É necessária cautelosa e parcimônia na hora de propagar informações. Isso não significa colocar na arte de divulgação “venha fazer nosso curso, mas cuidado, pois não tem evidência nenhuma de que funciona”, mas adotar uma visão analítica e ponderada no compartilhamento do conhecimento durante as aulas, expondo os limites do que está sendo proposto, além de incentivar enfaticamente que o público-alvo consuma a literatura atualizada, já que muitas pessoas saem de cursos formativos com titulação sem terem lido sequer um artigo científico, ou mesmo um capítulo de livro. Há algumas limitações nessa empreitada, como o fato de a ampla maioria das evidências científicas ser publicada em inglês, por exemplo, o que não deve nos privar, enquanto docentes, de defender a atualização recorrente daquilo que estamos propagando, pois temos grande papel de influência e as pessoas alunas às vezes acreditam piamente naquilo que falamos. Estimulemos que duvidem de nós e corram atrás da literatura para fazer uma apreciação crítica!
A prática baseada no livro-caixa costuma vir acompanhada de um visceral apaixonamento teórico, que é importante para se aproximar da produção do conhecimento, mas péssimo para desenvolver a crítica daquilo que se faz. É quando eu tenho uma abordagem para chamar de minha e aplico para tudo; uma festa danada, como alguém disse por aí. “Não vem dizer que a abordagem do meu coração não tem evidência ou que tem limitações, seu mentalista bobo e feio”. Muito menos me dizer que há uma pletora de evidências que demonstram que terapias cognitivas funcionam para muitas coisas, embora não para tudo (Fordam et al., 2021), pois “eu odeio essa abordagem e discordo dela”. Papai Skinner disse que “mente não existe”, então como intervenções mentalistas vão funcionar? Não vem querer me fazer sentar com terapeutas cognitivo-comportamentais no recreio. Não “quelo”!
Sinceramente, eu entendo o apreço que as pessoas têm pelas abordagens de psicoterapia que empregam no seu cotidiano, para além dos aspectos financeiros envolvidos. Nosso trabalho faz parte da nossa identidade; quando alguém joga um holofote sobre as rachaduras dele, talvez gere a sensação de que a estrutura irá ruir. Mas e qual o problema disso? Eu adoro a DBT. Os princípios filosóficos dela fazem muito sentido para mim, e evidências apoiam sua aplicação para uma parcela da população com a qual trabalho, que apresenta o diagnóstico de transtorno da personalidade borderline. Mas a DBT não é um vale-tudo, e quando, por exemplo, uma hipotética Terapia do Ornitorrinco Lustroso e Obstinado (TOLO) se mostrar mais adequada para essa demanda, pode ter certeza de que procurarei algum treinamento em TOLO para não dar uma de tolo e aplicar métodos ultrapassados.
Brincadeiras à parte, é importante frisar que o ecletismo e integração técnica (necessário para trabalhar com múltiplas demandas) é diferente de miscelânea epistemológica (e.g., fazer interpretações com base na Terapia do Esquema e na DBT, que são abordagens com pressupostos frontalmente diferentes). Você pode utilizar estratégias de reestruturação cognitiva quando isso é necessário e preservar uma interpretação comportamental dos efeitos, ou utilizar intervenções comportamentais à luz da teoria da mediação cognitiva. A integração de estratégias e a busca pelos processos de mudança em psicoterapia parece ser o futuro desse campo (Hayes & Hoffman, 2018).
Fazer PBEP exige um constante exercício de (auto)crítica, atualização e honestidade em explicitar os limites daquilo que fazemos. Práticas pautadas exclusivamente na nossa paixão por teorias e apego fervoroso a doutrinas não são compatíveis com a PBEP e devem ser questionadas, pois ameaçam esse paradigma, que é necessário para aprimorar a atuação profissional e oferecer serviços de qualidade, que ajudem as pessoas a terem vidas valiosas. Sei que dói ter nossa prática questionada, e definitivamente me incluo aí, mas alguns desconfortos são inevitáveis e necessários para o progresso pessoal e profissional.
Precisamos cuidar para que nossa conta bancária da pessoa física e/ou jurídica mensalmente preenchida por cinco dígitos não conduza a uma confiança excessiva nas intervenções e à proposição de cursos com divulgação superestimada. Além disso, é necessário que os resultados terapêuticos sejam interpretados com parcimônia e a divulgação profissional siga mínimos parâmetros de razoabilidade, evitando sensacionalismo. Defendo que nosso trabalho clínico se sustente na evidência científica, respeito à diversidade sociocultural e compromisso ético de oferecer às pessoas o que funciona, recorrendo a estratégias variadas sempre que a queixa clínica apontar essa necessidade, fazendo as necessárias adaptações, adequações e integrações. Esse é o espírito da PBEP: consultar o que existe de melhor, tomar doses generosas de temida vergonha na cara e aplicar a intervenção conforme o contexto e necessidade de cada paciente. Será que é adequado fazer o contrário? Fica o convite à reflexão.