A invasão das Redes Sociais Virtuais em nossas vidas – Uma reflexão sobre o filme “O Dilema das Redes”, baseada na Terapia de Aceitação e Compromisso.

Qual a primeira coisa que você faz ao acordar? Cada vez mais, respostas como “tomar um café”, “escovar os dentes” ou “ir para o chuveiro”, dão lugar a afirmações que envolvem pegar o celular para “checar o e-mail”, “ver as mensagens no WhatsApp” ou “verificar as novidades nas redes sociais”.

O Dilema das Redes, filme de Jeff Orlowski (2020) lançado na Netflix, já alcançou um número expressivo de visualizações e vem chamando atenção do público por tratar deste tema tão atual que é a invasão das redes sociais virtuais em nossas vidas. Ele será usado como base nesse texto, para refletir a respeito desse tema sob o olhar da ACT (Terapia de Aceitação e Compromisso). O documentário expõe um alerta de especialistas que trabalharam no desenvolvimento de tecnologias para grandes empresas como Google, Facebook, Instagram, Twitter e Youtube, sobre diversos impactos do uso excessivo das redes, denunciando o caráter viciante e manipulativo dessas ferramentas.

 “Somos mais lucrativos para uma empresa se ficarmos olhando para uma tela, assistindo a um anúncio, do que se estivermos vivendo a vida de forma significativa. Estamos vendo empresas usando uma poderosa inteligência artificial para nos superar e descobrir como atrair a nossa atenção para o que querem que vejamos, em vez do que condiz com nossos objetivos, valores e nossas vidas”. Essa fala inquietante de Justin Rosenstein (um dos entrevistados do filme) chama atenção, pois denuncia com clareza um dos dilemas que estamos vivendo. O que estamos sacrificando para nos manter constantemente conectados?

Não podemos negar que a tecnologia desses aplicativos instalados em nossos computadores e Smartphones facilitam o nosso dia a dia: podemos nos comunicar de forma mais rápida com um maior número de pessoas, utilizar um serviço de transporte com rapidez, obter informações, notícias, entretenimento e até fazer uma receita de bolo fica muito mais fácil com um simples toque na tela.

A tecnologia, portanto, não é um problema em si. O dilema evidenciado no filme está relacionado com o modelo de negócio das grandes empresas por trás dos aplicativos, que consiste em nos manter conectados à tela pelo maior tempo possível, enquanto são veiculados diversos tipos de publicidade que compõem sua lucratividade.

Esse modelo de negócio envolve a ação direta sobre a modificação do comportamento humano em direção ao consumo, cujo produto é a gradual mudança de modos de ser e pensar que interessem ao mercado, como sinaliza o próprio documentário em questão. Os conteúdos exibidos ditam o que é tendência, o que é necessidade, quais são os padrões a serem seguidos. A tecnologia permite a obtenção de dados fornecidos por nós mesmos nos meios digitais, para predição do tipo de informação que nos mantém conectados à tela, oferecendo assim conteúdos sob medida para cada usuário.

O filme também mostra que usamos compulsivamente essas redes, entre outros fatores, porque elas acertaram em cheio uma das principais necessidades humanas: a necessidade de conexão. Elas otimizaram a capacidade de criar modos de comunicação entre pessoas de qualquer lugar, sejam amigos de longa data ou pessoas que seriam estranhas para nós em outros contextos.

Porém, por mais que a tecnologia tenha evoluído a ponto de podermos conversar por videochamadas com ótima nitidez, ela não substitui (e nem deve) o olho no olho, o calor humano, a escuta atenta, poder ver as expressões e gestos que só os encontros presenciais permitem[1]. É comum, nesse meio digital, falarmos com várias pessoas ao mesmo tempo, enquanto utilizamos outros aplicativos, visualizamos as atualizações no instagram ou assistimos uma série na Netflix, o que dificulta ainda mais estar, de fato, presente.

Além disso, não é difícil gastar horas do nosso dia, que poderíamos usar para outras finalidades, visualizando imagens e vídeos de perfis de pessoas que muitas vezes nem conhecemos, e que transmitem a ideia de possuir uma vida sem defeitos, com alto padrão de produtividade e positividade. Uma vida editada nas redes, que enaltece a necessidade permanente de ser feliz, associada a frases motivacionais que não se encaixam na vida da maioria dos leitores, e, provavelmente, nem na vida de quem as compartilha.

Neste cenário, algumas pessoas podem crer que há algo de errado em uma vida que não se encaixa em tais padrões. Isso gera sofrimento, como mostram os dados expostos no documentário, a respeito do aumento exponencial da depressão entre adolescentes dos Estados Unidos, entre os anos de 2011 e 2013, que coincidiu com a ascensão do uso de redes com Facebook. Uma geração que vive boa parte do seu tempo no ambiente virtual se mostra mais fragilizada, entre outras causas, por que o aumento do uso das telas diminui a probabilidade de se expor a atividades que podem trazer reforçadores naturais (como atividades em grupo ou ao ar livre, por exemplo), e reduz as possibilidades de aprender habilidades sociais importantes, que permitam lidar com problemas da vida real. Ao contrário, os indivíduos se expõem constantemente a padrões inalcançáveis, através de uma realidade que é produzida e apresentada no meio virtual.

Essa vida perfeita e cheia de filtros exibida nas redes sociais nos remete à definição de “normalidade destrutiva” citada por Hayes, Strosahl e Wilson[2]. As redes sociais estão impregnadas pela cultura da felicidade, que, como alertou esses autores, ao invés de trazer a tão almejada felicidade, traz adoecimento psíquico, ao limitar a nossa capacidade de nos expor e lidar com as experiências negativas que fazem parte da vida. Russ Harris[3] define esse comportamento de evitar experiências, sentimentos ou pensamentos tidos como negativos ou desagradáveis, como Esquiva Experiencial. Essa é uma tendência humana, alimentada pela cultura em que vivemos, que impõe como regra a busca incessante pelo prazer.

O ambiente virtual é muito atrativo neste sentido, pois oferece sensações imediatas de prazer. Por isso, desbloqueamos a tela do celular a cada sinal de notificação e atualizamos a página do Instagram ou Facebook constantemente, submetidos a um esquema de reforçamento intermitente (quando o reforço não ocorre todas as vezes que um comportamento é emitido), esperando de novas curtidas, mensagens ou publicações interessantes. Como relatado no próprio filme, trata-se de “uma pílula para evitar desconfortos, que nos faz atrofiar as habilidades para lidar com as ocorrências da vida real”.

Acontece que a esquiva experiencial é uma estratégia que só costuma funcionar a curto prazo e que frequentemente nos afasta de experiências significativas para nós. Para estarem mais “conectadas”, muitas pessoas se afastam de seus objetivos, de atividades que gostariam de fazer, de estar com as pessoas que gostam, de dar mais atenção aos seus filhos ou de se inserir mais na vida familiar. Se afastam também da pessoa que querem ser, até mesmo da aparência que gostariam de manter, para seguir alguma regra que foi ditada por outras pessoas de acordo com a lógica mercadológica.

Podemos, assim, refletir sobre o uso prolongado das redes sociais virtuais a partir de duas questões: Esse comportamento está funcionando como uma esquiva? Ou seja, há algo desagradável, que estamos tentando evitar? Um relacionamento difícil? Atividades que requerem muito de nós? Uma rotina tediosa? Um trabalho que consideramos que não estamos aptos a fazer? E o que estamos deixando de fazer, que condiz com nossos objetivos, valores e nossas vidas?

Neste ponto alguns podem pensar que a saída proposta aqui seria excluir todas as redes sociais virtuais. Não se trata disto. Não podemos eliminar a possibilidade do uso dessas redes envolver aspectos importantes da vida de um indivíduo. Rus Harris[3], afirma que “as atividades podem ser reforçadoras se forem realizadas pela importância que tem para você”. Saber o que importa, o que é valoroso para nossas vidas, é um caminho para que possamos nos engajar em atividades que tenham sentido, inclusive na esfera virtual.

A Terapia de Aceitação e Compromisso propõe a adoção de ações orientadas por valores para uma vida significativa. Isso envolve a consciência de si, para perceber o que fazemos e quais as consequências do que fazemos. Conectar-se consigo pode ser uma alternativa para a necessidade de conectar-se com o mundo virtual o tempo todo. A ACT nos convida a entrar em contato com o momento presente, com o que quer que esteja acontecendo no “aqui e agora”, com abertura para entender que os eventos “desagradáveis” também fazem parte da vida.

Posso entender, por exemplo, que finalizar um trabalho é importante para mim, mesmo que seja difícil, e assim dedicar mais tempo a isso, diminuindo o uso das telas como recurso de esquiva. Posso, ainda, perceber que estar com familiares, filhos, companheiros, é algo valoroso ao meu ver, e assim me desconectar das redes sociais para estar presente em uma tarde de brincadeiras ou na mesa de jantar. Posso escolher ir visitar um amigo e olhar no olho enquanto conversamos, sem distrações com outros conteúdos oferecidos pelo celular.

Identificar nossos valores é ter clareza do que importa, que tipo de pessoa queremos ser e o que é significativo para nós mesmos. Construir uma vida rica depende da realização constante de ações comprometidas com esses valores[3]. São ações que nos aproximam do que nós somos e nos permitem questionar o que é imposto a nós, sejam os conteúdos que estão na internet ou padrões comportamentais de uso excessivo dela, que nos afastam de uma vida que vale a pena ser vivida.

Os impactos do uso das redes sociais virtuais é um tema denso e vasto, e existem algumas orientações sobre como utilizá-las de forma mais positiva (desativar as notificações, limitar horários de uso, procurar ativamente pelos conteúdos que deseja visualizar ao invés de clicar em conteúdos sugeridos, etc.). Podemos acrescentar a essa lista: nos expor mais às contingências da vida offline e aos reforçadores naturais provenientes das interações com pessoas e atividades valorosas para nós. Assim poderemos estar menos sob controle do que o mercado das redes sociais espera de nós, e mais comprometidos com nossos valores.

Referências:

[1] Rosa, Gabriel Artur Marra e, Santos, Benedito Rodrigues dos, & Faleiros, Vicente de Paula. (2016). Opacidade das fronteiras entre real e virtual na perspectiva dos usuários do Facebook. Psicologia USP, 27(2), 263-272. https://dx.doi.org/10.1590/0103-656420130026

[2]Hayes, S. C. ; Strosahl, K. D.; Wilson, K. G. (1999). Acceptance and Commitment Therapy: An Experimental approach to behavior change. New York: The Guilford Press.

[3]Harris, Russ (2011). Liberte-se: Evitando as Armadilhas da Procura da Felicidade. Rio de Janeiro: Agir.

[4]Skinner, B. F. (2007). Ciência e Comportamento Humano (J. C. Todorov, & R. Azzi, Trads.,11ª ed.). São Paulo: Martins fontes (Obra original publicada em 1953).  

4.8 17 votes
Article Rating
Avatar photo

Escrito por Ana Rosa Boaventura

Ana Rosa Boaventura é Psicóloga graduada pela Faculdade Ruy Barbosa - Salvador-Ba.

Parte 3 – Possíveis Modelos de Registro Comportamental na Terapia Analítico Comportamental Infantil

Qual o papel do homem na desconstrução do machismo estrutural?