Olá leitores do comporte-se!
Dias atrás eu estava assistindo ao comentado documentário da Netflix que se chama “o dilema das redes”. Assim como aconteceu com meu companheiro e a maior parte das pessoas com quem conversei após a experiência, me impressionou compreender como funcionam as mais diversas estratégias adotadas pelo marketing digital e como o conteúdo que se encontra disponível em nosso “cardápio digital” é selecionado de acordo com as nossas necessidades, gostos e desejos, ou seja, funciona como um “canto da sereia” especialmente para atrair, hipnotizar e nos fazer comprar! Tal influência realmente se mostra impactante e é de deixar qualquer um cismado…
O documentário ainda nos lembra a respeito da influência da mídia em aspectos como autoimagem e socialização – dois fatores importantes no que se refere à saúde mental no plano mundial. O sofrimento psicológico, principalmente o relatado por jovens, parece se relacionar diretamente com os likes que recebemos nas redes sociais. Aliás, estas redes de conexão vêm se tornando o meio mais comumente utilizado para medir a popularidade e o desempenho social de alguém e negar este fato seria fechar os olhos para uma verdade já revelada!
Diante de tudo isso que o documentário expõe com maestria, logicamente, ao final, eu e meu namorado estávamos, assim como muitos outros que assistiram, “vilanizando” a tecnologia e a apontando como mal do século e a responsável pelo adoecimento mental da população, principalmente entre os mais jovens. Foi aí que eu me lembrei da DBT e decidi fazer, assim como Marsha Linehan nos aconselha, “dos limões uma limonada”, ou seja, utilizar a situação para treinar as habilidades que ensinamos. Ao notar uma defesa emocional do ponto de vista inicialmente adotado, ativei minha mente sábia em busca de uma postura não julgadora para avaliar a situação baseada em como ela de fato é e não em minhas interpretações. Foi neste instante que uma coisa me intrigou e eu me perguntei: “o que eu estou deixando de lado quando vilanizo as redes sociais e, de forma mais ampla, a tecnologia?”. Neste momento dei dois passos para trás e comecei a repensar aquelas mil coisas tão pouco descritivas que estavam sendo ditas por nós antes daquele momento…
Não! A minha ideia neste momento não era negar as fortes revelações que aquele documentário contém. Seria no mínimo inefetivo fazer isso, tendo em vista que o conteúdo parecia muito consistente… A minha ideia naquele instante era a de também revelar quais eram as outras possibilidades que estavam de fora do que eu podia ver. No caso, seria a tecnologia, em algum nível, mocinha também? Para avaliar isso de forma consistente é necessário considerar outros fatores.
Com a pandemia COVID-19 o uso de tecnologias para acessibilidade e manutenção de processos terapêuticos tornou-se essencial. Durante este período surgiram dúvidas de pacientes (e também de terapeutas) quanto a eficácia das intervenções online. Para avaliar isso de forma consistente é importante frisar que existem muitos estudos previamente realizados que atestam a mesma efetividade da terapia online quando comparada aquela realizada no formato presencial (Thompson, 2016). Logicamente, dentro deste contexto é necessário considerar aspectos peculiares a cada um dos indivíduos (paciente e terapeuta) envolvidos no processo. Entretanto, cabe dizer que estudos sobre intervenções psicoterápicas online, diferente do que muitos pensam, também não revelam prejuízo ao vínculo terapêutico (Sucala et al. 2012) sendo observado, inclusive, uma aliança ainda mais forte em um dos artigos que discorre sobre o tópico (Bergen, 2015). A terapia online ainda trata, de forma efetiva, sintomas psiquiátricos específicos como, por exemplo, ansiedade e depressão (Axelsson et al., 2020; Kobak et al. 2017).
Em DBT, particularmente, desde 2015 Linehan & Wilks já apontavam as intervenções online como parte do progresso da DBT, tendo em vista a reconhecida eficácia deste modelo de intervenção quando realizada presencialmente desde aquela época (e hoje só cresce). Nesta área, apesar dos estudos sobre intervenções online serem limitados, o treino de habilidades em DBT (Lungu, 2015; Willks et al., 2017; Willks et al., 2018) já foi considerado efetivo para pacientes suicidas e em uso pesado de álcool, quando realizado à distância e com auxílio de tecnologia. O mesmo foi observado no que se refere ao treinamento de profissionais, sendo este formato considerado efetivo (Worrall & Fruzzetti, 2009; Worrall et al., 2011), e inclusive o melhor, por Dimeff et al., (2009). Apesar da psicoterapia em DBT ainda não apresentar estudos específicos que atestam sua efetividade, logo mais poderemos esperar que isso aconteça – assim como prevê o artigo de Linehan & Wilks!
Diante de tal cenário ainda é importante mencionar que a terapia online diminui barreiras. A partir dela pessoas de pequenas cidades, que antes não tinham acesso a modelos de intervenção específicos para pacientes com desregulação emocional, ou seja, a DBT, podem participar de grupos de habilidades próprios da abordagem ou se engajar em processos terapêuticos com profissionais com formação na área. Consegue observar ganhos para a população a partir disso?
Outro grupo também foi muito beneficiado com aumento do uso da tecnologia em termos de formação: os terapeutas. Estes passaram a ter acesso a formações que outrora só estavam disponíveis em grandes cidades e por um alto custo. Ainda no que se refere ao auxílio tecnológico, o uso de recursos específicos para psicoterapia, como, por exemplo, aplicativos de registro, tem auxiliado tanto terapeutas quanto pacientes na manutenção da adesão terapêutica e na extensão das atividades da sessão para o restante da semana. E não para por aí! Além das melhorias já citadas, é importante lembrar dos recursos midiáticos diversos como, por exemplo, podcasts que treinam novas habilidade que levam a uma vida melhor e mais leve, lives em mídias sociais sobre assuntos relacionados à saúde mental e tratamentos que funcionam e blogs e portais como, por exemplo, o Comporte-se, que oferecem cada vez mais conteúdo de qualidade, fácil acesso e gratuito, tanto para terapeutas quanto para pacientes que desejem se informar sobre saúde mental e psicoterapia.
Diante dessa dialética cheguei a uma síntese que me fez ficar em paz: de fato a tecnologia pode trazer danos à saúde mental, entretanto, ao mesmo tempo, pode servir como uma via para aqueles que não tem acesso ou que se encontram em situações estritas de isolamento como, por exemplo, as que vivenciamos durante este período pandêmico. A tecnologia ainda facilita a formação de terapeutas e o acesso a conteúdo de qualidade em qualquer lugar do mundo. Essa perspectiva leva em consideração a postura dialética da DBT proposta por Marsha Linehan, onde podemos substituir o “MAS” e o “OU” pela ideia mais inclusiva do “E” (Linehan, 2018). Sendo assim, como saber se a tecnologia é vilã ou mocinha? Depende da perspectiva que escolhemos olhar. Eu, de forma particular, prefiro considerá-la vilã E mocinha...
Até a próxima pessoal!
REFERÊNCIAS:
Dimeff, L. A., Koerner, K., Woodcock, E. A., Beadnell, B., Brown, M. Z., Skutch, J. M., … & Harned, M. S. (2009). Which training method works best? A randomized controlled trial comparing three methods of training clinicians in dialectical behavior therapy skills. Behaviour Research and Therapy, 47(11), 921-930.
Worrall, J. M. (2011). Evaluation of an Internet-based training system for improving peer supervisor ratings of therapist performance in dialectical behavior therapy (Doctoral dissertation).
Worrall, J. M., & Fruzzetti, A. E. (2009). Improving peer supervisor ratings of therapist performance in dialectical behavior therapy: An Internet-based training system. Psychotherapy: Theory, Research, Practice, Training, 46(4), 476.
Wilks, C. R., Lungu, A., Ang, S. Y., Matsumiya, B., Yin, Q., & Linehan, M. M. (2018). A randomized controlled trial of an Internet delivered dialectical behavior therapy skills training for suicidal and heavy episodic drinkers. Journal of affective disorders, 232, 219-228.
Lungu, A. (2015). Computerized trans-diagnostic dialectical behavior therapy skills training for emotion dysregulation (Doctoral dissertation).
Axelsson, E., Andersson, E., Ljótsson, B., Björkander, D., Hedman-Lagerlöf, M., & Hedman-Lagerlöf, E. (2020). Effect of Internet vs Face-to-Face Cognitive Behavior Therapy for Health Anxiety: A Randomized Noninferiority Clinical Trial. JAMA psychiatry.
Kobak, K. A., Wolitzky-Taylor, K., Craske, M. G., & Rose, R. D. (2017). Therapist training on cognitive behavior therapy for anxiety disorders using internet-based technologies. Cognitive therapy and research, 41(2), 252-265.
Sucala, M., Schnur, J. B., Constantino, M. J., Miller, S. J., Brackman, E. H., & Montgomery, G. H. (2012). The therapeutic relationship in e-therapy for mental health: a systematic review. Journal of medical Internet research, 14(4), e110.
Thompson, R. B. (2016). Psychology at a Distance: Examining the Efficacy of Online Therapy.
Wilks, C. R. (2018). Internet-Delivered Dialectical Behavior Therapy Skills Training for Suicidal and Heavy Drinkers (Doctoral dissertation).
Linehan, M. M., & Wilks, C. R. (2015). The course and evolution of dialectical behavior therapy. American journal of psychotherapy, 69(2), 97-110. |