Este breve (e modesto) ensaio tem como objetivo propor uma reflexão aos terapeutas que possuem formação filosófica no behaviorismo radical e alicerçam a sua prática na ciência da análise do comportamento, mas que ainda mantém alguma (ou muita) distância das chamadas “terapias comportamentais contextuais” ou de modo mais conciso, “terapias contextuais” (Lucena-Santos, Pinto-Gouveia, & Oliveira, 2015). Com inspiração no artigo de Todorov (2001), intitulado: “Quem tem medo de punição?”, esboço aqui algumas considerações sobre esse assunto, ou mais precisamente dizendo, sobre o possível medo (e consequente preconceito e afastamento) ainda existente em relação às terapias contextuais por parte de analistas do comportamento. Um assunto que apresenta, inclusive, implicações reais para a formação das futuras gerações de terapeutas.
Para situar essa discussão, faço referência ao meu próprio ponto de partida. Quando cursei a graduação em Psicologia (entre 2003 e 2007, na Universidade Federal do Paraná), a nomenclatura “Terapias Contextuais” era inexistente em nosso meio. Assim, o debate mais vívido entre os profissionais, naquela época, era: como nomear, apropriadamente, a terapia alicerçada exclusivamente na filosofia do behaviorismo radical e na ciência da análise do comportamento, produzida pelos terapeutas brasileiros? O genérico termo “Terapia Comportamental”, utilizado até então, já não cumpria mais a sua função, visto ter se ampliado demasiadamente e incorporado muitas vertentes epistemológicas e técnicas distintas (Guilhardi, 2004). Por sua vez, o termo “Terapia Cognitivo-Comportamental” também não faria sentido, visto que para os terapeutas brasileiros, a distinção entre a terapia comportamental (de visão operante) e a terapia cognitiva, era mais do que clara (Costa, 2002). Aliás, essa distinção era enfaticamente citada (era comum a utilização da expressão “terapia comportamental e cognitiva”, e similares, em diversos contextos, sendo que a função desse “e” era justamente a de separar os territórios). Essa é uma condição interessante, visto que em nosso país (ao contrário do contexto norte-americano, que parece ter incorporado as práticas cognitivas com maior naturalidade, a exemplo de Paul [2007]), houve uma reação a esse processo de mescla das intervenções comportamentais com as cognitivas (ainda que muitos terapeutas tenham se identificado e realizado tal proposta). Sobre esse tópico, o texto de Rangé (1999), “Por que sou terapeuta cognitivo-comportamental?”, é leitura obrigatória.
No entanto, voltando a questão colocada acima, é importante frisar a existência de dois termos-chave nas discussões clínicas dos terapeutas comportamentais brasileiros, nos anos 2000: análise funcional e relação terapêutica. Qualquer texto que realizasse considerações de caráter clínico, assumia um formato mais ou menos parecido com esse: apresentava o problema a ser tratado, ressaltava a necessidade de realização de uma análise funcional do comportamento em questão estabelecida no contexto de uma relação terapêutica, e por fim, trazia uma interpretação da problemática à luz dos princípios do comportamento, finalizando com um relato de intervenção (exemplos dessas publicações podem ser abundantemente consultados nos vinte e sete volumes da coleção “Sobre Comportamento e Cognição”, editados entre os anos de 1997 e 2010, pela Ed. ARBytes/ESETec). Olhando para esse roteiro hoje, é possível afirmar que esse tipo de visão condizia com uma análise do comportamento aplicada à prática clínica, com o ponto diferencial de ressaltar o papel da análise funcional e as contribuições da relação terapêutica (porém, as discussões sobre a função da relação terapêutica pareciam visar mais o fornecimento de topografias ao terapeuta, do que compreendê-la como um mecanismo de mudança comportamental do cliente, e. g., Rangé [1998]). Em certo momento, os terapeutas brasileiros optaram pela utilização da expressão “Terapia Analítico-Comportamental” (Tourinho & Cavalcante, 2001; Zamignani, Silva Neto & Meyer, 2008; Donadone, 2015) e foi assim que passamos a nos chamar, sendo que uma caracterização essencial dessa proposta pode ser vista em Borges e Cassas (2012). Mais recentemente, Leonardi (2015) realizou ponderações relevantes a respeito de qual seria o lugar ocupado pela prática realizada sob essa nomenclatura no contexto do cenário internacional e indicou a ausência da utilização do termo “terapia analítico-comportamental” em outros países, revelando uma falta de consenso sobre a caracterização desse modelo. Outras nomenclaturas para essa prática também foram propostas no Brasil, mas não apresentaram características marcantes o suficiente que justificassem uma sustentação própria (Costa, 2011). No entanto, atualmente, vimos a ascensão do termo “Terapias Contextuais”, e é aqui que gostaria de examinar algumas implicações.
Naquele mesmo período em que se discutia a melhor nomenclatura a ser adotada pelos analistas do comportamento brasileiros para se referirem à sua prática clínica, já eram difundidos no nosso meio dois importantes modelos de terapia contextual: em especial, a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) e a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT). No entanto, a impressão era a de que o meio comportamental tratava tais modelos como meros “coadjuvantes”, ou simples “técnicas”. Com o passar do tempo, (felizmente) o interesse no Brasil pelas terapias pautadas na análise do comportamento (começando com FAP e ACT) foi crescendo e ganhando corpo, ao passo que a “terapia analítico-comportamental” também continuava a ocupar o seu espaço. Ainda nesse contexto, outros modelos eram pouquíssimos citados (tais como a Ativação Comportamental – BA, a Terapia Comportamental Dialética – DBT, ou a Terapia Comportamental Integrativa de Casal – IBCT, por exemplo. As abordagens baseadas em mindfulness ou compaixão, não eram divulgadas). No entanto, agora que presenciamos a ascensão clara das Terapias Contextuais no campo das psicoterapias, temos um estranho dilema a tratar.
Não é nem preciso dizer o quão difícil pode ser para um behaviorista radical “de carteirinha” digerir o modelo da ACT, por exemplo, tanto é que algumas publicações se dedicam a explicitar as relações possíveis entre essa abordagem e o behaviorismo radical (e. g., Costa [2012]. Nessa mesma linha, Abreu e Abreu [2016] também expuseram uma análise semelhante sobre a Terapia Comportamental Dialética). Assim, por qual razão as terapias contextuais, que justamente foram forjadas em bases analítico-comportamentais, ainda são alvo de repúdio por muitos analistas do comportamento? Uma possível resposta é a de que muitos acadêmicos ainda tendem a ver a FAP e a ACT (e por consequência, as Terapias Contextuais como um todo, suponho) como relacionadas a terapia cognitivo-comportamental, conforme mencionado em entrevista por Vandenberghe. O entrevistado ainda salienta que a discussão acadêmica sobre essas abordagens diminuiu logo no início dos anos 2000, ao passo que subsistiu na prática clínica de muitos terapeutas (Couto, 2013). Esse tipo de rechaço às Terapias Contextuais possui implicações diretas para a formação dos novos terapeutas da análise do comportamento, que provavelmente irão evitar (ou retardar) o seu envolvimento com as Terapias Contextuais.
A evolução no campo das Terapias Contextuais é clara. E a Análise do Comportamento fez e faz parte disso. No entanto, assim como houve uma repulsa por parte dos analistas do comportamento às terapias cognitivas (o que pode ser justificado em virtude da problemática unificação forçada das suas distintas propostas epistemológicas), algo parecido é presenciado em relação às Terapias Contextuais. É importante notar que outros terapeutas, de diferentes formações teórico-clínicas (ou seja, que não têm vinculação com a análise do comportamento) estão descobrindo esse “baú do tesouro”, e naturalmente passando a adotar as Terapias Contextuais em suas práticas profissionais. Nada mais certo. O difícil é ainda presenciar uma resistência infundada em alguns analistas do comportamento justamente em relação à essas terapias de base analítico-comportamental, e que hoje estão ganhando corpo e espaço sob um outro rótulo: Terapias Contextuais.
O que explica tal fenômeno? Muito provavelmente, o que está sendo produzido e reproduzido dentro dos ambientes de formação acadêmica ou profissional é apenas mero preconceito. Nesse sentido, saliento a importância de que todo aprendiz fique atento aos discursos críticos existentes para verificar o quão próximos ou distantes essas falas estão dos princípios teórico-clínicos expostos nos manuais dos modelos. Isso significa que todo estudante de análise do comportamento, que tenha interesse na área clínica, deve fazer um esforço de estudo e contato idôneos com as abordagens contextuais (por meio da compreensão das suas racionais-teóricas, realização de treinamento e supervisão com terapeutas experientes dessas abordagens). Outra postura, também problemática, ainda encontrada na comunidade analítico-comportamental é a de que a constituição de um saber a respeito dos princípios do comportamento e da noção de análise funcional são mais do que suficientes para lidar com todo e qualquer fenômeno clínico. Note: eles sempre serão conceitos fundamentais, no entanto, lidar com fenômenos clínicos, mesmo dentro do referencial analítico-comportamental, pode exigir ir além em termos de criatividade na interpretação dos princípios (para fora do contexto experimental) e desenvolvimento de (ou conjugação com outras) estratégias de intervenção. Muitos entendem que isso significa repudiar a análise do comportamento. Nada mais equivocado.
Parece-me inegável de que as Terapias Contextuais ganharam excelente projeção no campo das psicoterapias, e a despeito deste (novo) rótulo empregado para nomeá-las, mais me interessa a sua disseminação e aplicação (e implicação) prática para a vida profissional dos terapeutas e de seus clientes. Trata-se de um momento relevante para a comunidade da análise do comportamento, no qual vemos modelos terapêuticos alicerçarem as suas bases em princípios comportamentais. No entanto, muitos analistas do comportamento ainda necessitarão cultivar abertura para se apropriarem dessas abordagens, e aqueles que ocupam papel formativo podem (e devem) estimular a crítica em seus aprendizes, mas jamais o mero preconceito.
Referências Bibliográficas:
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Borges, N. B., & Cassas, F. A. (Orgs.). (2012). Clínica analítico-comportamental: Aspectos teóricos e práticos. Artmed.
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Costa, N. (2011). O surgimento de diferentes denominações para a terapia comportamental no Brasil. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 13(2), 46-57. http://abpmc.org.br/arquivos/artigos/1467831243a4faee7290.pdf
Costa, N. (2012). Terapia de aceitação e compromisso: É uma proposta de intervenção cognitivista? Perspectivas em Análise do Comportamento, 3(2), 117-126. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-35482012000200004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
Couto, A. (2013). [Entrevista Exclusiva] Terceira onda da terapia comportamental – Prof. Luc Vandenberghe – [III Encontro Goiano de Terapia Analítico-Comportamental]. Comporte-se. https://comportese.com/2013/03/entrevista-exclusiva-terceira-onda-da-terapia-comportamental-prof-luc-vandenberghe-iii-encontro-goiano-de-terapia-analitico-comportamental
Donadone, J. C. (2015). O trabalho do analista do comportamento em psicoterapia. In C. S. M. Bandini, L. M. M. Postalli, L. P. de Araújo, & H. H. M. Bandini (Orgs.), Compreendendo a prática do analista do comportamento (pp. 97-121). EdUFSCar.
Guilhardi, H. J. (2004). Terapia por contingências de reforçamento. In C. N. de Abreu, & H. J. Guilhardi (Orgs.), Terapia comportamental e cognitivo-comportamental: Práticas clínicas (pp. 3-40). Roca.
Leonardi, J. L. (2015). O lugar da terapia analítico-comportamental no cenário internacional das terapias comportamentais: Um panorama histórico. Perspectivas em Análise do Comportamento, 6(2), 119-131. http://dx.doi.org/10.18761/pac.2015.027
Lucena-Santos, P., Pinto-Gouveia, J., & Oliveira, M. da S. (2015). Primeira, segunda e terceira geração de terapias comportamentais. In P. Lucena-Santos, J. Pinto-Gouveia, & M. da S. Oliveira (Orgs.), Terapias comportamentais de terceira geração: Guia para profissionais (pp. 29-58). Sinopsys.
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Rangé, B. P. (1999). Por que sou terapeuta cognitivo-comportamental? In R. A. Banaco (Org.), Sobre comportamento e cognição: Vol. 1. Aspectos teóricos, metodológicos e de formação em análise do comportamento e terapia cognitivista (2ª ed. rev., pp. 17-26). ARBytes.
Todorov, J. C. (2001). Quem tem medo de punição? Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 3(1), 37-40. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-55452001000100004
Tourinho, E. Z., & Cavalcante, S. N. (2001). Por que terapia analítico-comportamental. ABPMC Contexto, 23, 10.
Zamignani, D. R., Silva Neto, A. C. P. e, & Meyer, S. B. (2008). Uma aplicação dos princípios da análise do comportamento para a clínica: A terapia analítico-comportamental. Boletim Paradigma, 3, 9-16. https://docs.wixstatic.com/ugd/fdb184_a751d866c8884c099d63d50d5fbadf45.pdf