De tempos em tempos nós, seres humanos, assombrados pela nossa incapacidade de lidar satisfatoriamente com o sofrimento, descobrimos novas igrejas e salvações terapêuticas. As religiões – estes bálsamos – estiveram sempre por aí, e seguem firmes. Gênios como Nietzsche, Freud e Max Weber falharam miseravelmente em suas profecias de um futuro progressivamente secular onde, tomados pela eficiência científica, não precisaríamos mais do ópio religioso ou espiritual. O homo religiosus teria seu fim breve.
Nada mais equivocado. Nunca fomos tão “espirituais”. Para cada ateu admirador de Carl Sagan ou Richard Dawkins temos outros trinta praticantes de mindfulness, constelações familiares, tarot terapêuticos ou frequentadores de curas quânticas. Tal é a beleza da sociedade em sua total diversidade de seres em busca de sentido, mais ou menos alinhado a valores espirituais. Mesma a Filosofia de hoje serve como uma espécie de espiritualidade sem Deus, horizontalizada ao nível do amor ao próximo e à família. Há o que sempre houve: não uma colmeia de agentes da mesma espécie voando em uníssono, com o mesmo propósito, mas um ecossistema absurdamente complexo e diverso de seres em sofrimento que incluem eu, você, São Francisco de Assis, o coaching da esquina, e o homem-bomba de 18 anos que se explodiu há dois anos atrás. Seres diferentes mas que – a seu modo – querem deixar de sofrer indo na direção daquilo que preenche suas vidas de sentido.
De fato, não apenas as religiões institucionais seguem firmes mas também as espiritualidades não-religiosas, as pseudociências quânticas e os sincretismos, que se alastram como pílulas cotidianas de embate contra a imposição do sofrimento. Nós queremos achar a solução definitiva para o sofrimento porém seguimos envelhecendo, adoecendo e morrendo. Seguimos com insucesso relativo em nossos casamentos, profissões e aparências. Quando o sucesso vem ele é precário, limitado pelo tempo. Logo surge uma topada na quina de um móvel que nos lembra que o sofrimento é condição sem esquiva. Seguimos, portanto, na busca de soluções. Para isso seguimos rezando, meditando, fazendo arte, medicando, sabe-se lá desde quando. Fato é que o sofrimento – essa sombra imóvel e pesada – segue firme em sua imposição contra a vida plenamente feliz. Começamos a morrer quando nascemos e nossas células entram em processo finito de reprodução. Uma hora elas envelhecem, perdem força e morrem. Se um câncer não nos acometer precocemente, chegamos aos 80. Para que isso ocorra – mais uma vez – seguimos rezando, meditando, medicando.
Obviamente, quando jovens, e com os corpos e mentes eficientes, a imposição deste cenário é menos pungente. A saúde que a juventude traz – e ela pode se estender até os 40-50 anos dependendo da vida que levou e de sua história genética – nos afasta da imposição do sofrimento, ao menos por algum tempo. Há período em que estamos conectados com a felicidade, não há dúvida. Mas talvez isso dificulte as coisas, pois sentimos que é possível que ela perdure ad infinitum. As vezes, é claro, as coisas vão bem, e queremos que continue assim, mas daí nos deparamos com uma gripe, com nosso corpo ficando velho e com a morte de um bichinho de estimação. É impositiva – quiçá cruel – a realidade do descontentamento. E – de fato – queremos nos livrar da dor e fazer durar o prazer, a alegria, o bem estar.
Buda, assim como Cristo e o profeta Mohammad, foi um desses líderes religiosos que encontrou uma “saída” para o sofrimento. Ele trilhou uma espécie de método – que supôs aprimorar – deixando um legado de ensinamentos para a humanidade. Nos anos 80 um biólogo molecular americano, praticante do budismo, Jon Kabat-Zinn, resolveu adaptar os ensinamentos de Buda, fazendo um mix de meditação budista, yoga e método científico, criando o “movimento mindfulness”. A idéia era mostrar – assim com o Budismo já fazia – a inevitabilidade do sofrimento e um caminho para sua solução, porém não através de um “nirvana”, uma solução definitiva, mas algo menos audacioso. Diferente do Budismo, com suas metafísicas sobre karma e ciclos de renascimento e morte ao longo de vidas e vidas, no mindfulness de Kabat-Zinn temos uma versão secular, científica, “pé-no-chão”, mastigada até, da meditação budista. Não se fala muito no Buda, em Samsara (ciclo de renascimentos), espiritualidade, e nem se recitam mantras. É um budismo higienizado de qualquer “espiritualidade”. Budismo de-generado ao gosto do Tio Sam e sua pragmaticidade óbvia. Budismo para médicos e psicólogos. A idéia do mindfulness científico é que em 8 semanas, através de exercícios (bem práticos e adaptados) de meditação, somadas a psicoeducações e trocas em grupo, você tenha uma transformação positiva e duradoura em sua saúde e nível de bem estar. A promessa, em geral, é uma boa redução no seu estresse (segundo a OMS, o “mal do século”).
Para garantir que essa transformação não seja uma mera promessa, as pessoas do mindfulness mostram para os curiosos resultados positivos de 30 anos de pesquisa, incluindo estudos realizados com padrão-ouro de investigação, incluindo imagens de ressonância magnética, demonstrando que o cérebro de quem “medita” é um cérebro melhor – mais eficiente, mais feliz, mais saudável. Meditar faz bem. Essa é a mensagem. Portanto, inscreva-se o quanto antes em um grupo de mindfulness para, ao longo de 8 semanas, transformar sua vida, transformar seu cérebro, reduzir seu estresse. Quem pratica mindfulness acredita no poder da experiência. É só você conversar com quem frequentou estes grupos.
Mas enquanto os budistas podem levar vários e vários renascimentos (reencarnações) para absorver a experiência “iluminada” de um ensinamento, no mindfulness científico você pode – em 8 semanas – se livrar do estresse tóxico do cotidiano. Harvard afirma isso. Oxford afirma isso. Quem é você para contrariar? Que força você tem? São milhares de estudos em centenas de periódicos acadêmicos.
Pautados nessa lógica (quase impositiva) da promoção de bem-estar, cientistas e professores de Harvard e Oxford que ensinam mindfulness insistem que você comece a praticar. São apenas 8 semanas. O seus amigos e amigas já se inscreveram em um grupo de mindfulness que começará na semana que vem em sua cidade. Sabia? Todo mundo está fazendo. Muitas destas pessoas estão mudando para uma alimentação vegana, concluindo o curso de Comunicação Não-Violenta (CNV) e iniciando, logo mais, um processo de constelação familiar. Elas estão trocando o “obrigado” pelo “gratidão” e, quando possível, fazem seus Ho‘oponoponos – um tipo de higiene mental havaiana – para perdoar aquele colega babaca e misógino do trabalho. E quando tudo dá errado e as pessoas se percebem duras consigo mesmas, é simples: elas praticam auto-compaixão, que também aprenderam em um curso de 8 semanas. Os coachs de YouTube dão o toque final de ajuda em nossa jornada de livramento do maldito estresse.
Bom Deus! Seguimos incapacitados – como sempre – de lidar com o sofrimento, porém, agora temos uma toolbox fantástica de receitas anti-sofrimento. Se antes só existiam as orelhas dos padres nos confessionários, e elixires de ervas das avós, agora existem as curas quânticas, O Segrego, os 10 hábitos das pessoas altamente eficazes, as Barras de Access, o TethaHealing, o Preto-velho, a roda de oração dos empresários, a glossolalia do Espírito Santo, o Acro-Yoga, o Renascimento e, claro, o Mindfulness e a Autocompaixão. É certo que o velho consultório de Psicanálise, a missa de domingo e – até mesmo – as dicas do Lair Ribeiro, incluindo sua água ionizada, seguem firmes e fortes. Não vamos esquecer dos conselhos dos Exus e Zé-Pilintras, dos passes espíritas, de Chico Xavier e – é claro – dos Signos. Não confie em pessoas de Escorpião, lembra?
Estamos mais malucos e sofridos do que nunca. Talvez, essa nossa hiper-exposição a todo tipo de crença e terapêutica seja um sinal de que estamos, simplesmente, tentando manejar melhor nosso profundo sofrimento. QUAL A SAÍDA? QUAL A FÓRMULA? É um sofrimento terrível que une minha confiança em Lair Ribeiro com o coaching da esquina e o curador quântico; mas também me une à receita do Preto-Velho e as palavras da minha analista; por fim, me une ao mapa astral que a mãe do meu genro fez para mim. No mapa, a cabeça do dragão, está em uma casa desfavorável para este ano. Muita atenção. Marte retrógrado.
Perdidos em um mar de terapias, das mais bizarras, como reprogramações de DNA (!), saunas indígenas e re-vivências de vidas passadas, até as mais tradicionais, como um bom e velho consultório de psicanálise, passando pelas Igrejas e pelos índios da Umbanda, seguimos em busca de botões de emergência que possam parar o elevador da dor para a gente sair. É muita frustração com a realidade IMPOSTA do sofrimento. Por isso, em nossa incapacidade de lidar com tudo, há tanta toxicodependência, tanto Netflix, tanta pornografia, tanta barra de chocolate, tanta confusão. E é compreensível. Lidamos mal com o sofrimento. Somos crianças apertando botões quase que aleatoriamente. O foguete partiu. Só não se sabe para onde.
Ao mesmo tempo poucos são aqueles que topam sentar para meditar no Budismo, sem garantia alguma, sabendo que um glimpse de “realização” pode ser conquistado (no próximo minuto) ou provavelmente daqui 12 reencarnações. Ou pode não ser conquistado. Não há nada ÓBVIO a conquistar. Ninguém absorve isto! Aliás, nem mesmo abandonar a noção de eficiência parece simples, ou seja, de que posso me sentar no chão apenas para me contemplar sentado. Meu corpo. Minha mente. Meu coração. Apenas para contemplar o silêncio ou a bagunça nisso tudo. Sei que isso soa muito distante da PRESSA e da performance dos dias de hoje. Me dê as 8 semanas do mindfulness científico e – talvez – a garantia de algum benefício – uma reduçãozinha de estresse – mas não me venha com Budismo, afirmações inconclusivas, ou falta de garantias. Não me venha com anti-promessas. Chute suas metafísicas, mantras e samsaras para lá. Não há oportunidade para o incerto e para o “demorado”. Eu quero MESMO é parar de sofrer com algumas semanas de mindfulness. Se não há nada próximo, dê-me de volta o meu Rivotril que vou dormir. Aliás, 8 semanas de mindfulness já começam a parecer demais. Não tem um aplicativo legal, não? Mais prático? Um curso online? Gravado?
Portanto, não se inscreva no próximo grupo de mindfulness que irei oferecer em outubro, aqui em Porto Alegre. Me convide para um cerveja ou uma partida de ping-pong. Ao menos daremos boas risadas e nos livraremos do sofrimento por algumas horas.
Mindfulness é encontrar na lucidez do sofrimento, e LÁ DE DENTRO, as condições para a felicidade, e isso é contraintuitivo demais para o rush do nosso relógio, do nosso celular, do nosso YouTube, do nosso Netflix. A Sociedade do Cansaço é aqui e agora. No pain no gain, diz o ditado na porta da academia que invade nossas vidas. Inverta o ditado agora e não faça um grupo de mindfulness. Saia da roda.