Identificando demandas terapêuticas em linguagem ACL

No dia-a-dia da prática clínica e no contato com cada caso específico a/o terapeuta se depara com uma infinidade de dados e informações. Trabalhar com tudo isso não é uma tarefa fácil, principalmente quando a agenda vai ficando mais cheia. Esse contexto de trabalho exige de profissionais da área (que atuam com base no Behaviorismo Radical) habilidade de analisar funcionalmente e sistematizar dados importantes. Para a/o terapeuta FAP, esses dados importantes são os comportamentos clinicamente relevantes (CRBs ou CCRs – mais detalhes aqui https://comportese.com/2012/08/psicoterapia-analitica-funcional-fap-entendendo-o-cliente-na-relacao-terapeutica). Essa organização de dados, chamada de conceitualização ou formulação do caso, esclarece os caminhos que a/o terapeuta deve seguir. O resultado dela é um mapa das demandas terapêuticas da/do cliente, ou seja, os comportamentos alvo a serem desenvolvidos (CRB2 e O2) para enriquecer seu repertório e concorrer com os comportamentos entendidos como problemáticos (CRB1 e O1). Uma vez identificadas as demandas, a/o terapeuta pode intervir sobre elas sempre que tiver oportunidade.

A literatura da FAP ressalta que a qualidade das relações interpessoais tem grande interferência na saúde das pessoas (Silveira & Guenzen, 2013; Vandenberghe & Pereira, 2005; Tsai, Kohlenberg, Kanter, Kohlenberg, Follete & Callaghan, 2009/2012). Somos naturalmente sensíveis a essas experiências e elas tem grande impacto em nossas histórias, podendo gerar sofrimento e sensação de felicidade. Dito isso, sabe-se que o desenvolvimento social faz parte do ciclo de vida humano (Holman, Kanter, Tsai, & Kohlenberg, 2017). Comportamentos das/dos clientes que permitam acesso aos reforçadores relacionados a intimidade, suporte emocional e conexão interpessoal devem fazer parte das demandas terapêuticas de um processo orientado por essa abordagem.

Como parte da FAP, tem sido descrito e discutido o modelo ACL – Awareness, Corage and Love ou Consciência, Coragem e Amor (Tsai & cols, 2009/2012; Holman & cols, 2017). Trata-se de uma tríade que, quando traduzida em ações concretas, contribui para a construção e manutenção de relações mais próximas, intensas e curativas. A forma como as demandas terapêuticas serão descritas estará sob o controle do próprio comportamento de Consciência da/do terapeuta na condução do caso. Isso quer dizer que as demandas mapeadas pela/pelo terapeuta, apesar de necessariamente deverem passar por uma análise funcional tecnicamente sólida, podem variar de acordo com a atenção que determinado profissional dá a determinada nuance do repertório da/do cliente e que, quanto mais sensível/atento a CRBs relacionados as classes de Consciência, Coragem e Amor estiver, melhores condições terá de fazê-lo sob os moldes da ACL.

A proposta a seguir é descrever brevemente a relevância clínica dessas classes de resposta e o possível impacto de seu treino na vida das/dos clientes, além de exemplificar como terapeutas podem identificar demandas tendo-as como referência.

CONSCIÊNCIA: Um terapeuta deve criar condições para que a/o cliente faça descrições fidedignas da interrelação de suas ações públicas e privadas e seu ambiente externo (especialmente outras pessoas). Estas descrições podem adquirir função de regra alteradora de função, logo, uma operação estabelecedora, que tornará a emissão de CRB2s e O2s mais provável (Holman & cols, 2017).

A modelagem do comportamento de atenção ao momento presente, tende a tornar a/o cliente mais habilidoso(a) em acessar reforçadores compatíveis com seus valores e que permitem a manutenção do contato com o que é importante para si, ou seja, o que em sua história foi condicionado a sensações de prazer e felicidade. A pessoa que se comporta de maneira consciente em suas relações interpessoais tem melhores condições de reconhecer oportunidades (identificar estímulos discriminativos – Sds) para agir corajosamente e para oferecer amor, tornando suas relações mais íntimas (Holman & cols, 2017). A sensibilidade ao impacto no outro faz parte da operacionalização de intimidade feita pelos autores da FAP (Kohlenberg & Tsai, 1991/2001).

Diante disso, poderiam ser demandas em nível de Consciência: identificar regras imprecisas no controle de seus comportamentos; estar atento aos seus sentimentos e sensações em experiências significativas como, por exemplo, de rejeição (extinção e/ou punição); ao que busca/precisa em seus relacionamentos e aos seus comportamentos sociais incompatíveis com seus valores (esquiva de intimidade, por exemplo); ao seu impacto nas pessoas relevantes de sua vida e em pessoas menos próximas; as necessidades do outro, ainda que sutilmente ou indiretamente expressas (comportamentos da classe “empatia”); entre outras muitas possibilidades.

CORAGEM: De acordo com a FAP, é também importante que clientes emitam comportamentos dessa classe. Ela engloba habilidades de expressão profunda, apropriada e efetiva em contextos interpessoais, apesar da sensação aversiva de vulnerabilidade e incerteza quanto as consequências que serão dispostas pelo ouvinte (Holman & cols, 2017). A relação terapêutica deve, então, ser ambiente evocativo de respostas socialmente arriscadas, mas que aumentam as chances de clientes construírem relações íntimas e intensas. Esse repertório concorre com respostas sob o controle de reforço negativo (esquiva).  Por exemplo, uma/um cliente que no início da terapia relata recusar muitos convites a reuniões sociais (O1 com função de esquiva de interação), ao mesmo tempo que responde vagamente a perguntas pessoais durante as sessões (CRB1 com função de esquiva de interação próxima), passa a, gradativamente, responder as perguntas da/do terapeuta de uma forma mais fluida e emotiva (CRB2).

Uma vez que aprenda a se comunicar de maneira efetiva, falando do que é realmente importante para ela/ele e esse comportamento é consequenciado com a atenção genuína da/do terapeuta em detrimento de julgamentos ou afastamento, a tendência é que passe a se expor mais e esquivar menos. Quando em alta frequência, comportamentos de esquiva implicam restrição do repertório e, consequentemente, do acesso a reforçadores, inclusive dos relacionados a conexão social (ex.: compreensão, empatia, confiança). Sendo assim, torna-se grande a importância de que comportamentos corajosos sejam agregados ao repertório do cliente.

Poderiam ser demandas em nível de coragem: quando em contexto favorável (ou seja, diante de Sd), expressar ideias e opiniões de maneira assertiva e genuína (ao invés de negar valores ou evitar situações sociais); falar sobre si mesmo ou expressar de outras formas seus pensamentos e sentimentos permitindo que outro a/o veja verdadeiramente, sem máscaras ou edições; comunicar necessidades (proximidade, ajuda, feedback) e limites fazendo pedidos específicos e claros (emitir mandos diretos); entre outros.

A conduta terapêutica indicada pelo modelo ACL para aumentar a frequência dos comportamentos corajosos de clientes é responder a eles emitindo comportamentos da classe “amor terapêutico”. Fazendo isso, a/o terapeuta está colocando em prática a modelagem e dando modelo de comportamentos que seriam CRB2s e O2s para determinado cliente em contextos interpessoais.

AMOR: Essa classe funcional está intimamente ligada a classe de coragem. Comportamentos de coragem de outra pessoa são oportunidade (Sd) para a emissão de comportamentos amorosos e, quando isso de fato acontece, é configurada uma interação íntima (Vandenberghe & Pereira, 2005). Pode-se dizer que agir amorosamente é prover consequência reforçadora ao comportamento corajoso do outro. Como já apontado, comportamentos da classe consciência tornam mais provável que interações desse tipo sejam estabelecidas, especialmente no ponto que se refere a consciência do impacto e necessidades de si e de outro. O modelo ACL propõe que esta seja a troca básica da relação terapêutica.

Assim, poderiam ser demandas em nível de amor: diante da expressão vulnerável do outro, dar atenção, se dispor a ouvir, se interessar e expressar compreensão e validação (ao invés de julgar, tentar solucionar, explicar ou se afastar); diante de pedidos (razoáveis e possíveis de ser atendidos), ainda que sejam sutis e disfarçados (indiretos), se dispor a essa aproximação com contato visual, relatando diretamente interesse ou de quaisquer outras formas; diante da expressão de outro sobre seus limites, respeitar, dando espaço (afastamento momentâneo), desculpando-se ou fazendo promessas realistas; diante da disposição de outro em se mostrar, expressar admiração (quando genuína), apontando qualidades específicas e/ou retribuindo a exposição vulnerável e real.

As classes descritas no modelo ACL são desejáveis tanto de terapeutas quanto de clientes, no contexto da terapia e em generalizações para o contexto de vida diária da/do cliente, como forma de potencializar as relações interpessoais. É necessário equilíbrio entre consciência, coragem e amor e, na prática, há fluidez e complementariedade entre as classes. Buscar no repertório de clientes os déficits (CRB1S e O1s) e, principalmente, os comportamentos a serem desenvolvidos (CRB2s e O2s) dentro dessas classes funcionais otimiza a intervenção terapêutica e a eficácia geral do processo.

 

 

REFERÊNCIAS

Holman, G., Kanter, J., Tsai, M., & Kohlenberg, R. (2017). Social Connection and the Therapeutic Relationship as Contexts for Change. In. G. Holmam, J. Kanter, M. Tsai, R. Kohlenberg. (Eds.), Functional Analytic Psychotherapy Made Simple: A Practical Guide to Therapeutic Relationships. (pp. 13-26). Oakland, New Harbinger Publications.

Kohlenberg, R. J. & Tsai, M. (1991/2001). Psicoterapia Analítica Funcional: Criando relações terapêuticas intensas e curativas (F. Conte, M. Delliti, M. Z. Brandão, P. R. Derdyk, R. R. Kerbauy, R. C. Wielenska, R. A. Banaco, & R. Starling, trads.). Santo André: ESETec.

Silveira, J. M. & Guenzen, L. de C. (2013). Intimidade na relação terapêutica: Uma caracterização da palavra por terapeutas analítico-comportamentais. Psicologia Argumento, 31(74), 547-559.

Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follete, W. C., & Callaghan, G. M. (2012/2009). Um guia para a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP): Consciência, coragem, amor e Behaviorismo (F. Conte, & M. Z. Brandão, trads.). Santo André: ESETEc.

Vandenberghe, L. & Pereira, M. B. (2005). O papel da intimidade na relação terapêutica: Uma revisão teórica à luz da Análise do Comportamento. Psicologia: Teoria e Prática, 7(1), 127-136.

 

 

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Escrito por jessicagomes

Psicóloga graduada pelo UniCEUB. Pós-graduada em Análise Comportamental Clinica pelo Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC). Formação em FAP e ACT pelo Instituto Continuum. Coordenadora da coluna de FAP do Comporte-se. Atua como psicóloga clínica em Brasília sob a perspectiva da Psicoterapia Analítico Funcional. Atendimento individual a adultos.

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