Já parou para pensar onde está doendo? Sim, o terapeuta também é de carne e osso, capaz de se ferir emocionalmente tal como as pessoas que atende. Há a ideia de que a figura do psicólogo deve ser de alguém altamente equilibrado e implacável no que se refere aos sentimentos difíceis, isto é, não deve ser ansioso, nervoso ou impaciente. Seguindo essa premissa, a famosa “cara de paisagem” deveria predominar, bem como a manutenção da neutralidade, de modo a não se abalar diante do sofrimento alheio. Toda essa imagem
dificilmente corresponde à realidade de um profissional da psicologia, especialmente
daqueles que atuam na área clínica. A armadura que se espera pertencer ao psicólogo parece mais plausível a um herói ou personagem de histórias fictícias. Por vezes, como terapeutas, de fato gostaríamos de ter super poderes, mas não é bem assim que funciona o nosso trabalho.
Enquanto terapeutas nos deparamos constantemente com as nossas próprias limitações e as frustrações são evidenciadas. Primeiramente, não é possível obter os resultados sozinho, sem que o cliente sem se comprometa com o processo, pouco se pode alcançar. Ademais, pode o psicólogo cair na armadilha de buscar pela mudança do outro, sem que este, de fato, esteja preparado para tal, o que consequentemente tende a dificultar ainda mais o avanço da psicoterapia. Alterar a rota e sair da zona de conforto é um movimento extremante desafiador e nos cabe aceitar o tempo de cada um, acompanhar as dificuldades e caminhar junto. Por mais que se possa querer, não é viável carregar o outro nos ombros e ainda que isso fosse possível em um primeiro momento, não se sustentaria a longo prazo. Por vezes quem procura ajuda atribui toda a responsabilidade ao profissional e acredita que o fato de estar em atendimento já será suficiente para que alcance os seus objetivos, sem se mobilizar em seu cotidiano. Contudo, sem o remanejamento de contingências, como poderia o mesmo padrão comportamental, resultar em uma consequência diferente?
Além da dificuldade em conduzir casos que tomam esse rumo, há também grande dificuldade em lidar com demandas que se assemelham àquelas do próprio terapeuta. Nesse sentido, se faz necessário o constante exercício de se perguntar “o que é meu e o que é do outro?”, “o que estou sentindo, no aqui e agora da sessão, se refere à minha história ou diz respeito ao impacto que o cliente produz em mim e pode produzir também em seu ambiente natural?”, “o modo como tenho interagido com o cliente tem sido em benefício dele?”, “como a intensidade do que sinto no atendimento ou em relação ao cliente repercute em minhas intervenções?. Não necessariamente o psicoterapeuta conseguirá responder tais questionamentos sozinho, o que aponta para a importância da supervisão com outros profissionais, bem como da própria psicoterapia individual. Ambas as estratégias podem ser essenciais para que o psicólogo tenha condições de continuar conduzindo o processo ou avaliar a viabilidade de realizar encaminhamento. Não se trata de falta de capacidade ou mesmo de competência, pelo contrário, todo esse engajamento em analisar o atendimento e compreender o que se sente sobre o mesmo, denotam ética e seriedade. Enquanto ser humano, sujeito que pensa, sente e age de acordo com as interações com o meio, é esperado que a terapia do cliente impacte sobre a figura de quem o atende. Esse impacto em determinadas situações pode machucar o terapeuta e mexer com suas demandas a ponto de representar um empecilho à relação terapêutica, naquele momento.
A Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) compreende tais comportamentos do terapeuta
como T1 (comportamentos problema, os quais podem dificultar a interação com o cliente e a condução do atendimento) e T2 (comportamentos de melhora, capazes de favorecer o avanço do caso). Tanto a supervisão, quanto a psicoterapia podem ajudar o terapeuta a identificar esses fatores e a modelar os repertórios comportamentais necessários. Contudo, vale o alerta de que o psicólogo tem todo o direito de escolher não atender certos tipos de queixas ou perfis de cliente. Isso pode parecer estranho, mas não é. Por questões, inclusive éticas, é melhor que o profissional se recuse a atender um caso e proceda ao encaminhamento do que o aceite e não tenha condições de acolhe-lo devidamente. Ademais, a princípio pode não se identificar tal situação, mas com o decorrer do atendimento chegar em alguma questão que o terapeuta perceba dificuldade em prosseguir do modo adequado. Tal observação pode ser discutida com o cliente ou não, a depender da análise feita (Kohlenberg & Tsai, 2001; Tsai, etal, 2011).
A auto revelação do terapeuta deve ser realizada com prudência e em benefício de quem está sendo atendido. Seguindo o caminho delineado para a intervenção, pode-se compartilhar sentimentos em relação ao cliente, por exemplo. Essa estratégia, quando empregada com o devido cuidado, pode favorecer a modelagem de novos comportamentos e tornar a relação terapêutica mais genuína. Obviamente, a auto revelação não significa expor os próprios problemas e emoções a ponto de inverter os papeis. Assim como não envolve a defesa de valores pessoais do terapeuta, de modo a sinalizar o que é certo ou errado. Para se colocar nesse sentido, é importante que o profissional se conheça e tenha clareza dos objetivos que justificam sua conduta. Nem sempre o terapeuta tem condições de prever como o cliente reagirá ao que foi colocado e é difícil se preparar diante desse cenário. Eventualmente, podem surgir questões inesperadas e cabe ao psicólogo buscar da melhor maneira conduzi-las. Contudo, não há uma receita que nos indique o que fazer e como proceder em cada situação,estar sensível às contingências parece um dos únicos caminhos.
Esse contexto requer bastante do profissional do ponto de vista emocional e muitas vezes a
interpretação do que ocorreu em uma sessão difere entre o terapeuta e o cliente. Ambos são impactados de formas distintas, justamente por serem pessoas singulares, com histórias particulares. Quando possível, o diálogo costuma ser uma alternativa para alinhar as perspectivas. Podem existir casos mais extremos, em que o cliente decide desistir do processo e não mais retoma contato. Para o terapeuta esse pode ser um elemento a compor a análise e o ajudar a compreender a função de alguns comportamentos. Analisar o caso ainda que ele não prossiga também possibilita aprendizado, inclusive, para que o psicólogo reavalie o que aconteceu e quais repertórios pode desenvolver a fim de evitar rupturas desse tipo. Ainda assim, não estará isento de que situações assim se repitam. Os sentimentos de fracasso ou impotência podem surgir e novamente o terapeuta pode recorrer à supervisão e psicoterapia para lidar com os mesmos.
Outro tipo de rompimento, ainda mais doloroso, pode ocorrer quando há a desistência do
processo em casos que apresentavam algum comportamento de risco e tiveram dificuldade
em formar vínculo. Nessas situações, novamente recorrendo à avaliação realizada, pode o
profissional buscar o contato de familiares ou pessoas próximas a fim de orientá-los, bem
como tentar reatar a psicoterapia. Entretanto, há um limite, e novamente não podemos
caminhar pelo outro. A consciência de que se fez o que podia ser feito, dadas as condições
vigentes pode nortear o terapeuta, ainda que todo o cenário de rompimento possa machucar. Há casos, inclusive, de tentativas de suicídio ou mesmo da efetivação de suicídio, quando o terapeuta se vê confrontado com sua limitação. O sentimento de culpa que geralmente assola as pessoas próximas, pode em alguma medida, ser vivenciado pelo psicólogo. Não se trata de simplesmente ignorar ou evitar tal emoção. Enquanto analistas do comportamento sabemos que não é assim que funciona e a mudança de ações pode demandar algum tempo. Respeitar-se é essencial.
Os psicólogos de modo geral, com o seu trabalho, objetivam promover qualidade de vida,
saúde emocional e quando possível, atenuar o sofrimento. Percebe-se esse movimento,
sobretudo, em direção ao outro. É um tanto quanto comum observamos psicólogos com uma jornada de trabalho em múltiplos lugares, inclusive terapeutas que conciliam a clínica com outras áreas de atuação. Não é raro levar trabalho para casa, não só no sentido de fazer relatórios, preparar sessões ou outras atividades, mas de carregar os impactos do atendimento na mala, para onde for. Nossa ferramenta de trabalho somos nós mesmos e nos transformamos a partir da interação com o meio, da conexão com o outro. É claro que se busca um equilíbrio nesse sentido, todavia, seria uma falácia desconsiderar que existem casos que mexem mais intensamente conosco, que tocam em nossas fragilidades. Lembra que somos feitos de carne e osso? Não existe nenhum mecanismo ou mágica que separe
completamente a função de profissional e de pessoa. Somos organismos que se modificam na relação com o mundo e o nosso trabalho faz parte do ambiente que nos afeta. Cuidar das feridas do terapeuta, envolve reconhece-las como tal e se comprometer com a própria saúde física e psicológica. Para cuidar do outro, também precisamos cuidar das próprias dores.
REFERÊNCIAS:
Banaco, Roberto Alves. (1993). O impacto do atendimento sobre a pessoa do terapeuta.
Temas em Psicologia, 1(2), 71-79. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X1993000200010&lng=pt&tlng=pt.
Kohlenberg, R. J., Tsai, M. (2001). Psicoterapia Analítica Funcional (F. Conte, M. Delliti, M. Z. Brandão, P. R. Derdyk, R. R. Kerbauy, R. C. Wielenska, R. A. Banaco, R. Starling, trads.). Santo André, SP: ESETEc (Obra publicada originalmente em 1991).
Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follete, W. C., & Callaghan, G. M. (2011). Um guia para a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP): consciência, coragem, amor e behaviorismo (F. Conte, & M. Z. Brandão, trads.). Santo André, SP: ESETEc (Obra publicada originalmente em 2009).