Sobre a terapia RA-PUM, do povo Sandô, e a saúde pública brasileira

Este texto é uma reflexão póstuma ao meu artigo anterior, que pode ser acessado aqui. É preferível você ler primeiro este artigo do link. Daí então, volte para cá.

Vamos lá!

Imagine que para um povo (hipotético) chamado Sandô, que vive na Islândia, existe uma prática chamada RA-PUM que consiste em tipo de pulo em uma perna só praticado durante aproximadamente 5 minutos. Enquanto a pessoa pula deve repetir uma palavra de som parecido com “Rhá-pumn”, seguidamente. Na lingua Sandô, a palavra significa algo como “eu me curo e curo o outro”. A prática do RA-PUM deve ser feita – preferencialmente – em grupo e próxima a natureza. Segundo os Sandôs esta prática foi passada de geração em geração por seus ancestrais. Os Sandôs praticam RA-PUM diariamente – ao menos uma vez ao dia. Os Sandôs dizem que a prática promove saúde mental, reduzindo estresse, ansiedade, depressão, etc, sendo o RA-PUM parte do cotidiano dos Sandôs.

Uma pesquisa conduzida por pesquisadores de Harvard demonstrou que os Sandôs realmente tem o nível médio de estresse 12 pontos inferior, em média, quando comparado à população mundial. Seria devido ao RA-PUM? Os Sandôs acreditam que sim. Além disso, quando praticado em grupo, segundo os Sandôs, o RA-PUM pode alivar “traumas” de origem familiar. O praticante de RA-PUM pode, por exemplo, começar a chorar durante a prática, sendo este fato uma evidência de expurgo dos traumas. O choro seria como uma catarse das dores dos traumas familiares. Os pesquisadores de Harvard ficaram intrigados com o RA-PUM.

Há dois anos um novo grupo de “americanos” conheceu o RA-PUM, começou a praticar o RA-PUM e sentiu os efeitos positivos atribuídos ao RA-PUM. Como bons americanos, criaram um workshop de RA-PUM, adaptando ligeiramente a prática. O workshop tem duração de um final de semana, somando aproximadamente 20 hs de “curso”. Ao final, o praticante é convidado a praticar RA-PUM ao menos uma vez por dia (5 min) para manter os benefícios da prática. Uma vez ao ano devem fazer um retiro em grupo de RA-PUM, momento em que são trabalhados os “traumas”.

Daí então estes americanos criaram o grupo íbero-americano de RA-PUM e começam a dar workshops de RA-PUM pela Europa e EUA. A prática de RA-PUM cai nas graças do povo. As pessoas gostam de RA-PUM. Todos gostam de RA-PUM.

No Reino Unido, na Suíça e Na Austrália criam-se comissões de especialistas para verificar se a prática RA-PUM pode ser incluída na saúde pública de seus países, de modo que possa atuar como uma estratégia integrativa e complementar de promoção à saude. Para isso, criam comissões de pesquisa com núcleos universitários afim de fomentar pesquisas para verificar a viabilidade, a segurança e a efetividade do RA-PUM.
Ao final, depois de muita pesquisa, declaram que praticar RA-PUM pode ter efeitos colaterais (lesões de membros inferiores, alterações na pressão arterial, etc), que o RA-PUM não é superior (em termos de benefícios) do que fazer polichinelos por 5 minutos, em grupo, acompanhados da vocalização de qualquer palavra (mesmo sem sentido). Isso não significa que RA-PUM não faz bem. Faz sim, mas provavelmente tão bem quanto praticar polichinelos em grupo.
Porém, não é tão simples. Veja bem. Ninguém estava atento aos possíveis efeitos adversos. Na prática de RA-PUM em grupo, por exemplo, durante as catarses, ao menos 4 participantes demonstraram sintomas de transtorno do pânico. Daí então, Reino Unido, Suiça e Austrália resolvem não alocar dinheiro público para a prática de RA-PUM; seria muito precoce fazer isso. Porém, logicamente não proíbem a prática em seus países. Pode-se praticar RAPUM mas não haverá alocação de dinheiro público para o RAPUM, já que há verba alocada para a prática de atividade física, que inclui os polichinelos. Algumas associações emitem notas dizendo dos possíveis riscos da prática de RA-PUM.

Outra preocupação dos pesquisadores seria a respeito de quem estaria habilitado para ensinar RA-PUM, já que a prática exige disciplina, supervisão de um profissional nativo de RA-PUM e uma formação intensiva em RA-PUM, com duração média de 3 anos, realizada entre os Sandôs.

Os pesquisadores começam a perceber que não tem controle sobre o RA-PUM. Academias de ginástica, parques públicos, pessoas interesseiras ($$$), começam a ensinar RA-PUM da forma como bem entendem. Começam a aparecer cursos online de RA-PUM. Surgem aplicativos de smartphone de RA-PUM. A BBC de Londres lança um programa de rádio onde pessoas começam a denunciar malefícios que sofreram ao praticar RA-PUM sem a devida orientação.

Enquanto isso, a prática do RA-PUM também chega ao Brasil. O país vive um momento efervescente de inclusão de prática integrativas em seus sistema de saúde pública. Indiferente ao procedimento dos demais países, em investigar primeiro em pesquisa, o Brasil resolve simplesmente incluir o RA-PUM como uma nova PIC (Prática Integrativa e Complementar). Nenhum grupo de especialistas da área de saúde e epidemiologia é constituído para verificar se o RA-PUM possui evidência suficiente para que ocorra alocação de dinheiro público para fomentar a prática. O ministro do Brasil disse:”Bem, está todo mundo fazendo RA-PUM. Mal não pode fazer. Vejo as pessoas rindo, felizes. Além disso, uma cientista disse hoje que devemos ‘quebrar esse cartesianismo’ que vigora na nossa ciência”.

Outra cientistas dá uma declaração dizendo que temos que ter um nova “racionalidade médica”, promotora de saúde, integrativa e – para não perder o clichê – que seja “bio-psico-sócio-espiritual”, ou seja, integrativa mesmo. Fala mal dos médicos dizendo que os mesmos querem apenas “entupir” as pessoas de remédios e procedimentos cirúrgicos. As pessoas aplaudem a cientista. Viva o RA-PUM. Viva o Brasil.

No entanto, esquece a nobre cientista que outras PICs, que também vêm de outra “racionalidade médica”, passaram igualmente por um longo processo de verificação de seus níveis de segurança, eficácia e efetividade. São os casos, por exemplo, da Acupuntura e da Meditação Mindfulness. São PICs orientadas por referências teóricas não-ocidentais, e nem por isso se furtaram do benefício de utilizar métodos científicos para melhorar o bem comum. Devido a estas pesquisas, sabemos melhor quando, onde e para quem a Acupuntura e a Meditação funcionam melhor. Sabemos dos níveis de segurança. Sabemos melhor dos mecanismos de funcionamento. Essas PICs passaram por – ao menos – 30 anos de investigação. Durante esta investigação milhares e centenas de pessoas foram beneficiadas através dos Ensaios Clínicos que participaram. Ao mesmo tempo, foram atendidas, e alavancaram o avanço da ciência. É um ganha-ganha, para no final o povo ganhar uma prática segura e efetiva em sua saúde pública. Se a não se sustentar ao longo dos 30 anos – ou mais – de pesquisa, talvez não seja realmente interessante alocar dinheiro público para tal fim. O dinheiro público deve – inicialmente – ser alocado para a pesquisa (onde a população será igualmente atendimento, inclusive com mais segurança), e não diretamente na saúde.

Para cada PIC (florais, geoterapia, constelação familiar, terapia de abelhas, etc) precisamos de, pelo menos, 10 anos de pesquisa. Importante salientar que ao longo desses anos as pessoas estarão sendo atendidas através de pesquisas (como foi o caso da Acupuntura e da Meditação Mindfulness). Vale salientar que não é nada pessoal contra o RA-PUM. A ciência não pode ser preconceituosa. Se as pessoas estão fazendo uso, devemos pesquisar para entender melhor. Se o RA-PUM se mostrar eficaz e segura, vamos “rapunzear”, por que não?

Entretanto, no Brasil, parece que tudo é sempre muito estranho. O Brasil é exótico, único, não somente em sua fauna e flora mas também na má ciência e nas políticas públicas atrapalhadas. Não somos apenas a terra do samba, do povo mais simpático do mundo e da corrupção; somos terra onde a má ciência – por vezes – tem triunfos inigualáveis. Será que ninguém vê. Todo mundo aplaude. Bom RA-PUM para todos.

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Escrito por Tiago Tatton

piadista inveterado, torcedor do Flamengo e pai da Clara Luz. Nas horas vagas é psicólogo, especialista e mestre em Ciência da Religião (UFJF/MG), doutor em Psicologia (UFRGS/RS e King´s College Londres), pós-doutor em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS/RS). Diretor Geral da Iniciativa Mindfulness. Em 2016 completou o Mindfulness Advanced Teacher Intensive pela Universidade da California em San Diego (USA).

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