Que país é este? Sobre ciência, saúde pública, meditação e constelações

O Governo Brasileiro anunciou a ampliação de novas PICs (Práticas Integrativas e Complementares) no SUS (Sistema Único de Saúde).

Na portaria original das PICs estavam contempladas as práticas de ayurveda, homeopatia, Medicina Tradicional Chinesa, medicina antroposófica, plantas medicinais/fitoterapia, arteterapia, biodança, dança circular, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia, reflexoterapia, Reiki, Shantala, terapia comunitária integrativa, termalismo social/crenoterapia e Yoga.

No mês de março de 2018, foram incluídas novas terapêuticas: “apiterapia, aromaterapia, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, geoterapia, hipnoterapia, imposição de mãos, ozonioterapia e terapia de florais integram o rol de práticas do Ministério da Saúde.”

Assim, o site do Governo Federal descreve as novas práticas:

Apiterapia – método que utiliza produtos produzidos pelas abelhas nas colmeias como a apitoxina, geléia real, pólen, própolis, mel e outros.
Aromaterapia – uso de concentrados voláteis extraídos de vegetais, os óleos essenciais promovem bem estar e saúde.
Bioenergética – visão diagnóstica aliada à compreensão do sofrimento/adoecimento, adota a psicoterapia corporal e exercícios terapêuticos. Ajuda a liberar as tensões do corpo e facilita a expressão de sentimentos.
Constelação familiar – técnica de representação espacial das relações familiares que permite identificar bloqueios emocionais de gerações ou membros da família.
Cromoterapia – utiliza as cores nos tratamentos das doenças com o objetivo de harmonizar o corpo.
Geoterapia – uso da argila com água que pode ser aplicada no corpo. Usado em ferimentos, cicatrização, lesões, doenças osteomusculares.
Hipnoterapia – conjunto de técnicas que pelo relaxamento, concentração induz a pessoa a alcançar um estado de consciência aumentado que permite alterar comportamentos indesejados.
Imposição de mãos – cura pela imposição das mãos próximo ao corpo da pessoa para transferência de energia para o paciente. Promove bem estar, diminui estresse e ansiedade.
Ozonioterapia – mistura dos gases oxigênio e ozônio por diversas vias de administração com finalidade terapêutica e promove melhoria de diversas doenças. Usado na odontologia, neurologia e oncologia.
Terapia de Florais – uso de essências florais que modifica certos estados vibratórios. Auxilia no equilíbrio e harmonização do indivíduo.

Como é possível observar nas descrições das práticas, termos um pouco obscuros do ponto de vista da investigação científica, tais como “estados vibratórios” e “transferências de energias”, são apresentados. Estes termos não fazem parte de nenhum compêndio médico ou psicológico utilizado por universidades ao redor do mundo, incluindo – é claro – o Brasil. Talvez em algum manual esotérico ou de psicologia do senso-comum. É necessário estabelecer – e revirar de cabeça para baixo – a diferença entre ciência e pseudociência. Igualmente, precisamos voltar a debater o fato de que algo funcione ao nível de placebo justifique sua adesão como terapêutica científica. Precisamos avançar para além do placebo, em particular na medicina comportamental. Por si só, tudo isto são sérios problemas. No entanto, não vou enveredar por esse caminho, que exigiria um complexa discussão acerca de filosofia da ciência e da práxis científica nos campos médico e psicológico.

Seja ratificado aqui, ainda que sob o julgo de “energias”, “vibrações”, “chacras”, ou o que seja,  que sou um defensor da inclusão de práticas integrativas na saúde pública, por motivos mais do que óbvios apresentados exaustivamente pelas resoluções da OMS. Realizo, atualmente, meu pós-doutorado, em um renomado hospital do país, através de um estudo de verificação de efetividade de um intervenção baseada em mindfulness (prática relacionada à meditação) para promoção de saúde em indivíduos com TAG (Transtorno de Ansiedade Generalizada). Eu não poderia ser incoerente com o meu trabalho, de modo que sou favorável a inclusão de PICs para promoção de saúde.

Apoiar a inclusão de PICs não significa que eu aprove a maneira como o Ministério da Saúde vem conduzindo sua inclusão no SUS. No caso de minha pesquisa, utilizamos uma terapêutica com mais de 4 décadas de pesquisas, somando milhares de ECR (Ensaios Clínicos Randomizados), hoje desenhados dentro de um padrão-ouro (cegamento, randomização, controles adequados, etc). Conseguimos construir um nível de evidência que nos permite avançar melhor na compreensão dos mecanismos da prática de mindfulness que promovem saúde. Ainda assim, mesmo o Mindfulness, está engatinhando em termos de aplicação na saúde pública.

Precisamos fazer, ao menos, uma década de pesquisa sobre Mindfulness com a população brasileira, tão diversa do público europeu e norte-americano, para entendermos sobre sua real segurança, eficácia e efetividade (assim como viabilidade) no país. A partir destes resultados podemos pensar em oferecer em larga escala (ou não) a prática de mindfulness na atenção primária.

Até lá o que precisamos fazer é captar recursos para construirmos pesquisas de mindfulness em nossa população. Precisamos estabelecer com cuidado os níveis de segurança, eficácia e efetividade, e isso leva tempo. Mesmo os 40 anos de pesquisa já existentes são insuficientes para incorporarmos – a plenos pulmões – o mindfulness na atenção primária (a não ser que seja como parte de projetos de pesquisa).

Assim posto, se as 4 décadas de pesquisa em mindfulness não são suficientes para assegurar sua total e livre implementação na saúde pública brasileira, o que dizer da cromoterapia, dos florais e da constelação familiar?

Estamos falando de alocação de dinheiro para a saúde do povo brasileiro, dinheiro este que já se apresenta – há décadas – escasso. Deveríamos alocar recursos para mais e mais PICs sem antes nos assegurarmos de sua segurança? de sua real efetividade?

Será que não deveríamos – primeiro – alocar verbas da educação para pesquisarmos profundamente os efeitos destas práticas na população brasileira, para daí então incentivarmos sua massificação no SUS? Lembrem-se do caso do mindfulness que, mesmo após 40 anos de pesquisa, segue continuamente escrutinado (corretamente, porque é assim que se faz ciência) acerca de sua eficácia. Para cada uma destas “terapêuticas” precisamos de centenas de estudos, muitos dos quais longitudinais, grandes coortes, e não é o que encontramos na literatura. O Mindfulness, a Acupuntura e a Homeopatia, para citar alguns exemplos, possuem ao menos um vasto corpo de investigação teórico e empiríco (seja sustentando ou não seus efeitos benéficos). Algumas das PICs apresentadas não possuem o mínimo de estudos necessários. Podem pesquisar. Precisamos fazer pesquisa, precisamos de verbas para verificar estas práticas, antes de mais nada. Mas o que vemos acontecer no Brasil, cada vez mais, são cortes na educação! Assustador. Não bastassem os cortes, temos essas alocações atabalhoadas de recursos de dinheiro público.

Percebam que não estou dizendo que devemos ABANDONAR estas PICs, mas sim que deveríamos estar oferecendo, ao menos 80% destas PICs, sob a forma de pesquisa para a população. Alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorado ao longo de todo o país deveriam, em parceria com hospitais públicos e privados, estar investigando estas práticas (junto à população) para daí então partirmos para um novo patamar. A carroça foi colocada na frente do bois, para variar.

Vejam o caso das constelações familiares. Temos estudos escassos, publicados em periódicos duvidáveis, com métodos e análises de dados questionáveis. Estudos estes realizados com população absolutamente diversa da nossa. Não sou contra as constelações, como muitos pensam. Sou contra a adoção em massa desta terapêutica (e de outras) sem a real verificação de seus níveis de segurança, eficácia e efetividade em larga escala. Em uma breve consulta na base do PubMED utilizando o descritor “family constelation” gerou como resultado uma média de 4-5 artigos, todos do mesmo grupo de autores. Isso indica um nível absurdamente baixo de verificação científica. Isso não significa que devemos abandonar a Constelação Familiar, mas que precisamos de mais investigação de qualidade, para avançar o nível de evidência. Gente! Estamos falando de saúde pública, falando de SUS, já tão sucateado em todos os seus níveis. Precisamos de ações responsáveis, maduras, e não de uma espécie de otimismo irresponsável.

E aqui é importante falar sobre este “otimismo irresponsável”. Mesmo o mindfulness, que tem níveis de segurança relativamente bem estabelecido, pode ser danoso para a saúde de muitas pessoas. Há condições, pré-requisitos, que precisam ser estabelecidos para alguém participar de um grupo de mindfulness. Um programa de rádio da BBC, por exemplo, fez um longa reportagem apenas com pessoas que tiveram efeitos colaterais danosos praticando mindfulness. Toda a intervenção oferece riscos e benefícios e os mesmos precisam estar muito bem estabelecidos na literatura. Ciência funciona para além da opinião do nosso vizinho, e até mesmo do nosso professor. Ciência é um evento coletivo de constante revisão por pares, um exercício de montar e desmontar infinito. Não é uma igreja ( não deveria ser ao menos, pois muitos cientistas pensam e vivem a ciência como uma “religião”. Errado).

Só há uma saída. Rever essa ação do governo e, ao invés de simplesmente abandonar algumas PICs, como as constelações, por exemplo, aumentar o fomento para que pesquisas verifiquem – de fato – se a mesma “permite identificar bloqueios emocionais de gerações ou membros da família” de modo seguro, eficaz e efetivo; para além da opinião, do livro de auto-ajuda, do grupo da sua esquina, daquela prima que se “curou”. Para isso precisamos desenhar estudos científicos padrão-ouro, quantitativos e qualitativos, na Psicologia, na Medicina, nas Ciências Sociais e na Educação. Daí então, avançamos para a saúde pública. Não é tão complicado como parece. Mas – infelizmente – duvido que vá acontecer. Diante do Ministério da Saúde, e todo o nosso Governo, sigo com Renato Russo, mais uma vez: “Que país é este?”.

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Escrito por Tiago Tatton

piadista inveterado, torcedor do Flamengo e pai da Clara Luz. Nas horas vagas é psicólogo, especialista e mestre em Ciência da Religião (UFJF/MG), doutor em Psicologia (UFRGS/RS e King´s College Londres), pós-doutor em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS/RS). Diretor Geral da Iniciativa Mindfulness. Em 2016 completou o Mindfulness Advanced Teacher Intensive pela Universidade da California em San Diego (USA).

Curso de OBM – Gestão do Comportamento em Organizações

Desenvolvimento de Hábitos de Estudo