Quando a história do cliente atravessa a história do terapeuta

A proposta deste artigo é descrever uma contingência clínica que pode ser bastante comum no cotidiano de trabalho de um terapeuta e, sobretudo, gerar certos conflitos e dificuldades no manejo de caso. Trata-se de uma situação na qual algumas dificuldades, queixas ou experiências que o cliente traz – ou grande parte delas – também está sendo, de algum modo, vivenciada pelo terapeuta. Optei pela narrativa de um caso fictício em que isso ocorre, buscando promover algumas reflexões sobre as possíveis formas de manejo, os encaminhamentos e a delicadeza desta situação, enfatizando a ótica do terapeuta.

Otávio (nome fictício), 34 anos, chegou a terapia com um quadro severo de depressão associado a ideias suicidas após o falecimento de sua esposa. De modo resumido, este cliente possui um histórico de punições na relação com o pai e superproteção na relação com a mãe, o que, de alguma forma, se reproduziu na relação com a esposa, embora com topografias diferentes. Refere poucas amizades desde a infância, tendo passado grande parte da sua juventude já em um relacionamento sério com a esposa então falecida. Em função deste histórico, Otávio apresenta atualmente um repertório pobre de habilidades sociais, dificultando bastante o alcance de objetivos em diversas áreas da sua vida.

Em um determinado estágio do processo terapêutico, o terapeuta também sofre uma perda importante que passa a configurar um cenário de vida semelhante ao vivenciado pelo cliente, esbarrando em dificuldades semelhantes. Isso significa que, em dado momento, a história do cliente passou a “atravessar” a do terapeuta, ou seja, os eventos trazidos pelo primeiro passaram a produzir efeitos diferentes sobre o segundo. O que antes possuía um caráter mais “neutro”, difícil de “empatizar”, passou a adquirir funções reforçadoras e aversivas que podem afetar negativamente a relação terapêutica.

Se pensarmos em termos da FAP, no entanto, estes efeitos do relato do cliente sobre o terapeuta são bem-vindos se este conseguir responder de forma apropriada, uma vez que reações mais autênticas e emocionais tendem a ser mais naturalmente reforçadoras para o cliente. (Kohlenberg & Tsai, 1991/2006). Assim, vivenciar questões semelhantes às que o cliente traz para a sessão pode ser útil em dois sentidos: 1) maior facilidade de empatizar com o problema e; 2) maior possibilidade de utilizar estas reações de forma terapêutica. Por outro lado, essa situação também implica em alguns riscos, como a esquiva do terapeuta do assunto, ou fazer comentários inadequados.

O terapeuta deve ficar atento as suas próprias reações emocionais ao cliente neste caso para não acabar emitindo suas crenças, valores ou opiniões pessoais, uma vez que a situação da díade é semelhante. Por exemplo, ao relatar a tentativa de estabelecer um novo vínculo afetivo, Otávio mostra-se perdido, confuso e frustrado em virtude de algumas decepções e falta de repertório. O terapeuta poderia cair na tentação de sugerir alguma estratégia que ele mesmo, terapeuta, fez e deu certo, sem a devida análise funcional do caso e a verificação se aquilo faz sentido para o cliente. A terapia não deve ser mais um contexto social alienador para o cliente, e sim promover a autonomia, a liberdade e tornar o cliente dono da sua própria vida (Vandenberghe & Pereira, 2005).

Uma outra condição importante de salientar aqui refere-se ao progresso ou as recaídas do cliente. Dependendo do que o próprio terapeuta estiver vivenciando e do grau de similaridade com as vivências do cliente, pode ocorrer um processo de comparação prejudicial por parte do primeiro. Ou seja, o terapeuta pode começar a comparar o desempenho e as conquistas do cliente com as suas de modo exagerado, o que provavelmente não teria utilidade terapêutica e poderia até mesmo ser uma fonte de angústia. Ao estar consciente desses sentimentos, o terapeuta pode lançar mão de estratégias de manejo dos próprios sentimentos e reações para evitar punições ao cliente e reforça-lo o mais naturalmente possível.

Vejamos um exemplo de manejo inadequado por parte do terapeuta. Em uma dada sessão, Otávio relata que vem tentando se relacionar, conhecer novas pessoas, mas sem obter êxito. O terapeuta, vivenciando situação semelhante, ao invés de acolher e reforçar o comportamento do cliente de aprofundar o assunto, muda de assunto, de forma sutil ou explícita, punindo este CRB2 de relatar eventos íntimos. Isso certamente não trará consequências favoráveis para a relação terapêutica. Por outro lado, o terapeuta pode utilizar a sua vivência semelhante à do cliente para melhor compreendê-lo e auxiliá-lo de forma mais efetiva do que um terapeuta que nunca tenha passado por tal experiência. Talvez o dito popular “só sabe quem já passou” se aplique aqui, com ressalvas.

Um último apontamento. Como bem ressaltam Tsai, Callaghan, Kohlenberg, Follete e Darrow (2011), a supervisão é um espaço fundamental para o desenvolvimento do repertório clínico de qualquer terapeuta e, especificamente, para aqueles que utilizam a FAP, os autores comentam que “a supervisão FAP bem-sucedida produz uma experiência profunda e melhora as habilidades terapêuticas […] a supervisão FAP enfatiza o desenvolvimento pessoal do terapeuta” (p. 212). Portanto, estar em um processo de supervisão é altamente recomendado em uma situação como essa e pode ser decisivo para a manutenção da terapia.

Além da supervisão, a situação descrita aqui demanda também que o terapeuta esteja fazendo sua própria terapia, pois poderá trabalhar suas questões “mal resolvidas” de modo que isso não afete negativamente o seu trabalho com um cliente que apresenta questões semelhantes. Afinal de contas, o terapeuta também é um ser humano e está sujeito as mesmas adversidades que seus clientes vivem. A diferença é que o primeiro – pressupõe-se – possui recursos técnicos e pessoais para lidar com elas, ou pelo menos consciência de que deve buscar constantemente melhorar enquanto pessoa e profissional. No caso do terapeuta ainda se sentir muito desconfortável com o cliente ou perceber que seu trabalho está sendo improdutivo mesmo com todos os esforços para superar estas dificuldades, é aconselhável encaminhar o caso para outro terapeuta, sem traumas, entendendo suas limitações e que isso faz parte da profissão.

 

Referências

Tsai, M., Callaghan, G. M., Kohlenberg, R. J., Follete, W. C., & Darrow, S. M. (2011). Supervisão e desenvolvimento pessoal do terapeuta. Em M. Tsai, R. J. Kohlenberg, J. W. Kanter, B. Kohlenberg, W. C. Follete, & G. M. Callaghan. Um guia para a psicoterapia analítica funcional (FAP): Consciência, coragem, amor e behaviorismo (F. C. S. Conte & M. Z. S. Brandão, Orgs. Trads.). Santo André: ESETec.

Kohlenberg, R, J., & Tsai, M. (1991/2006). Psicoterapia analítica funcional: Criando relações terapêuticas intensas e curativas. Santo André: ESETec.

Vandenberghe, L., & Pereira, M. B. (2005). O papel da intimidade na relação terapêutica: Uma revisão a luz da análise clínica do comportamento. Psicologia: Teoria e Prática, vol. 7 (1), pp. 127-136.

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Classificação do artigo

Escrito por Pedro Gouvea

Psicólogo. Especialista em Análise Comportamental Clínica pelo Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento. Especialista em Docência do Ensino Superior pela AVM Educacional/UCAM. Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental pelo Centro de Psicologia Aplicada e Formação/UCAM. Atua como psicólogo clínico e em instituição de acolhimento para idosos. Tem interesse principalmente pelos seguintes temas: Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) e Psicopatologias/Comportamentos que envolvem a ansiedade social, como o transtorno de ansiedade social (fobia social), timidez, introversão e personalidade evitativa. E-mail para contato: pedrow.gouvea@gmail.com

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