Comportamento entre as Estrelas

“Primeiro não havia nada/

Nem gente, nem parafuso/

O céu era então confuso/

E não havia nada”

(Doces Bárbaros – 1976)

Há muito tempo atrás numa galáxia muito distante, ou nesta mesma terra a nem tanto tempo assim, um micróbio em algum lugar assimilou outro e desta conjunção surgiu algum parente perdido seu e meu. Será que esse assimilar foi um mero acidente ao acaso, ou um ato planejado? Será que isso deveria ter sido apenas mais uma refeição, mas um ato desesperado de esperteza fez com que nosso amigo devorado optasse por cooperar com seu devorador de modo a ter abrigo e conservar sua própria existência? Será essa assimilação uma das primeiras negociatas políticas que se viu sobre este chão quente (há época, fervente)?

https://www.youtube.com/watch?v=vWF1glZWQa8

Figura 01: Also sprach Zarathustra, composição de Richard Strauss, 1896. Tema do Filme 2001: Uma Odisséia no Espaço (2001: A Space Odissey, dirigido por Stanley Kubrick, EUA, 1968).

A história da vida da terra deve ter passado por isso em algum momento, ou ao menos pensamos assim desde que cunhamos a hipótese simbiótica para origem das mitocôndrias. Todavia, para chegar até aí, a vida já tinha uma história por aqui (Quinlan, 2015). Uma história que é difícil de traçar, em parte porque não sabemos definir exatamente pelo que estamos procurando.

Skinner (1981) sugeriu que a história do comportamento se confunde com a história da vida, e se assim for, por onde começamos? Buscando processos operantes e pavlovianos em protocélulas extintas há bilhões de anos? Como fenômeno evanescente, o comportamento precisa de observação bem mais atual do que as nossas especulações sobre organismos protocelulares poderiam nos oferecer. Mas se você é um curioso por essa história natural do comportamento, não fique tão triste de cara. Seu destino pode estar nas estrelas.

Se não podemos voltar ao passado, podemos olhar com entusiasmo para o futuro. A cada novo satélite em órbita ou sonda lançada ao espaço estamos um passo mais próximo da astropsicologia¹. Se você ficou cético quando leu “astropsicologia” ou já está preparando seu horóscopo para checar se tem a ver com sua constelação guardiã, me dê um minuto para tentar colocar meu ponto de outra forma. Não tenho pretensões de fundar nenhuma ciência ou pseudociência. O objetivo aqui é apenas nos fazer pensar sobre uma questão primordial: o que é comportamento? O que procuramos na natureza quando queremos definir comportamento de organismos vivos?

Figura 02: Cena do Filme “A Chegada” (Arrival, dirigido por Denis Villeneuve (2016, EUA, 118 min).

Comumente usa-se o termo para falar de uma ação ou relação entre organismo e o ambiente. Descrevemos condições ambientais e relações de controle causal ou contingencial entre eventos do mundo e a conduta de um organismo, quer seja de ações abertas ou por cadeias de eventos ocorrendo sob a pele (será que isso funciona dentro de membranas também?). Essas definições são controversas, mas por um critério ou por outro, parecem satisfazer nossas necessidades cotidianas no uso do termo “comportamento”. Mas para um viajante espacial ou mochileiro das galáxias, uma toalha seria mais útil do que as noções atuais de comportamento que usamos aqui no terceiro planeta do sistema solar.

A vida não é fato necessário e, talvez, nem exclusivamente terreno. Isto quer dizer que nem nós estamos aqui por um propósito específico ou finalidade natural e nem tão pouco nossa condição é um atributo somente possível neste planeta dadas estas condições específicas de temperatura, pressão, composição atmosférica, etc. O mais provável é que tudo isso aconteceu antes e acontecerá novamente.

O que é a vida? Um sistema capaz de se autoconservar e reproduzir pela interação com o ambiente e outros de seu mesmo tipo? Algo além disso? Quando vista do ponto de vista de um terráqueo, as especificidades da vida na terra podem fazê-la parecer algo tão frágil, que a autoconservação pode parecer o primeiro imperativo de qualquer organismo vivo. Contudo, mesmo entre os organismos daqui, podemos encontrar provas de resistência para bem além da fragilidade que vemos à primeira vista. Ultracentrifugação, hipervelocidade, pressão por choque, altas variações de temperatura e diferentes intensidades de radiação ultravioleta e ionizante são todas situações extremas que desafiam a integridade das moléculas orgânicas que definem a vida como conhecemos (Rampeloto, 2010). E, ao mesmo tempo, são condições que – se superadas – podem servir de base para viagem interplanetária de organismos unicelulares (Rampeloto, 2010) ou, quem sabe, protocelulares. Esse tipo de organismo vivo pode sobreviver nessas condições mediante mudanças em seu metabolismo. Mas enquanto à comportamento? Seria o comportamento dos organismos terrenos impossível ou nocivo à sua integridade se ocorrerem em ambiente extra-terrestre?

Em termos evolutivos, a reprodução é um dos comportamentos mais decisivos para manutenção da vida. Contudo, se por um lado as condições da terra tornaram amplamente frequente a reprodução sexuada, experimentos em órbita mostram que a produção de esporos em vegetais e a mobilidade de gametas animais reduz a tal ponto que torna a reprodução sexuada pouco provável em ambientes diferentes das condições terrestres (Doninck, 2003). O impacto disso sobre a diversidade comportamental da vida pode ser dramático, dado que rituais de corte e acasalamento, cuidados parentais e diversos outros padrões de comportamento que incluem territorialidade e organização social estão proximamente conectados com a evolução do comportamento sexual e, em última instância, da reprodução sexuada em espécies animais.

A evolução da cognição e do comportamento em uma biota em que a reprodução é majoritariamente assexuada pode ter sido completamente diferente daquela que observamos na terra. Como seria? Especular neste nível seria apenas futurologia. O importante, como cientistas, é pensarmos sobre como poderíamos reconhecer em um contexto tão distinto que um dado fenômeno ainda seria digno da alcunha de comportamental. O que seria aprendizagem neste novo mundo? Seriam essas novas espécies sencientes? Sentiriam dor ou prazer? Por onde começaríamos a olhar se planejamos verdadeiramente construir uma ciência natural do comportamento?

Vivemos um momento histórico em que o desenvolvimento de máquinas “inteligentes” nos desafia a pensar o comportamento para além das fronteiras da vida. Mas seria porque nosso conhecimento sobre o comportamento de organismos vivos está quase esgotado? Quando olhamos para a Astrobiologia, ou sua prima Astropsicologia, não estamos querendo lotear mais uma área do conhecimento. Ao contrário, queremos usar os achados e reflexões que se pode nutrir ao olhar para o espaço para repensar a psicologia e as ciência do comportamento que fazemos hoje e que queremos construir nas próximas gerações.

A fronteira final! Explorar o universo nos confronta com sistemas e circunstâncias para muito além do corpo, cérebro ou espírito. O cosmos tem o incrível poder de reduzir preconceitos aos seus blocos mais elementares. Um pouco de medo, um pouco de encanto e um assombro e espanto infinitos. A infinitude, o acaso e a diversidade podem nos ensinar sobre as arbitrariedades das nossas filosofias, mas será que estaremos prontos para aprender? Hoje, em boa parte do tempo, os limites da ciência são os limites da evidência empírica. Porém, é no encontro da ciência e da filosofia que faremos o exercício reflexivo que nos preparará para as descobertas que poderão nos permitir aprender sobre os fundamentos da natureza: da sutileza esquecível dos midichlorians² à quase ininteligível interação entre fungos cósmicos e tardígrados³.

A ciência do comportamento do século XXX começa a ser pensada na ontologia e epistemologia do século XXI, e as ciências do comportamento e da cognição poderão ser o freio ou o catalisador que poderá nos permitir conhecer a natureza da vida e do comportamento para além do que conhecemos. O fiel da balança será nossa capacidade de dialogar e debater entorno das condições necessárias e suficientes para se conceber o comportamento como uma função da vida, um fenótipo modulador de relações ecológicas e determinado por circunstâncias históricas, ambientais e socioculturais.

O comportamento nasce da vida, somente nela ele floresce. Mas quem define quem? Aquele que existe no mundo ou aquele que atua sobre este mundo? Estamos amarrados a uma prisão de dicotomias. Usamos nossos conceitos como âncora, enquanto devíamos usá-los como luneta. Afinal, para compreender o cosmos começamos com os olhos bem abertos, uma boa cabeça e um bom conjunto de lentes.

Figura: 03: Música Astronomy Domine, lançado no álbum The Piper at the Gates of Dawn, Pink Floyd, Composição de Syd Barrett, 1967. Destaque para o trecho: “(…) Around the icy waters underground/ Jupiter and Saturn, Oberon, Miranda and Titania/Neptune, Titan, stars can frighten”.

¹O uso do termo aqui se refere à relação entre ASTRONOMIA e PSICOLOGIA.

²Midichlorians são seres microscópicos do universo fictício de Star Wars (mencionado no Episódio I) que catalisam A Força e permitem aos organismos vivos interagir com ela e controlar alguns aspectos desse poder.

³ A interação entre fungos cósmicos e tardígrados gigantes é uma relação simbiótica fictícia do universo da série de TV Star Trek: Discovery (2017-atual).

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Escrito por Luiz Henrique Santana

Psicólogo (UFPA). Mestre em Neurociência e Cognição (UFABC). Doutorando em Psicologia Experimental (USP). Pesquisador do Departamento de Psicologia na University of California in Los Angeles e Analista de Pesquisa Freelancer na Pearson Educacional. Ex-professor de Neuropsicologia e Psicologia Experimental (Análise do Comportamento) em Universidades pública e privada no Brasil. Ex-pesquisador visitante no Institute of Neuroscience (Chinese Academy of Sciences). Membro e Coordenador Estudantil de assuntos de Pesquisa (Student Research Coordinator) da Association for Psychological Science Student Caucus. Diretor do projeto The Online Museum of Psychological Science.

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