Um dia desses conversando com uma amiga, também psicóloga, surgiu um questionamento por parte dela que me fez refletir muito. “Nós, terapeutas, podemos ter ojeriza de cliente”? Foi exatamente esse o termo que ela utilizou. Isso me remete às diversas vezes que tive sentimentos não agradáveis em relação a clientes e, então, respondi que sim levando em consideração o que eu já havia sentido nesses anos de experiência e as consequências disso nos atendimentos realizados até então. Na grande maioria das vezes consegui colocar esse sentimento em um lugar adequado durante a terapia desses clientes não fazendo do que eu sentia impedimento para a continuidade do processo terapêutico, mas nem sempre foi assim.
Nós, profissionais da psicologia, principalmente da área clínica, nos deparamos em nossos consultórios com vários tipos de clientes com os mais variados comportamentos, falas, jeitos, valores morais e éticos e outros. É bem possível que muitos desses clientes evoquem muitos sentimentos bons e também outros desagradáveis no momento em que nós os atendemos. E o que fazemos com o que sentimos durante o processo terapêutico?
O processo terapêutico envolve no mínimo duas pessoas e o terapeuta é peça fundamental, participando ativamente desse processo íntimo que é a terapia (Delitti, 1993). Esse processo favorece e constrói uma intimidade entre terapeuta e cliente. Vamos chamar de intimidade comportamentos que se refere a compartilhar e se revelar para o outro sem medo e sem rejeição, e isto acontece num ambiente particular de afeição, confiança, carinho e compreensão (Oliveira 2002, citado em Vandenbreghe & Pereira 2005). Intimidade também envolve sensibilidade aos efeitos do comportamento do outro que proporcionam o estabelecimento da empatia. A terapia é um exemplo de relação íntima, levando em consideração que o comportamento íntimo é verbal e isso significa ser reforçado por outra pessoa, no caso um ouvinte/terapeuta, onde a interação acontece de maneira carinhosa, atenta e reforçadora (Vandenberghe & Pereira, 2005)
Mesmo diante da empatia e intimidade na relação terapeuta-cliente, alguns sentimentos desagradáveis podem surgir e controlar o comportamento do terapeuta. Os encobertos durante as sessões podem controlar seu comportamento de ser empático, vulnerável e de ter uma relação de intimidade com o cliente, o que pode interferir na terapia.
Devemos lembrar que assim como o cliente, o terapeuta também tem comportamentos encobertos que também chamamos de comportamentos privados (Skinner, 1953). Os comportamentos encobertos são atividades de um organismo, porém, a observação desse comportamento não é pública, o que pode dificultar o trabalho do psicólogo caso não consiga ter acesso aos encobertos do cliente, tornando o conteúdo acessado insuficiente para trabalhar demandas expostas pelo cliente. Segundo Banaco (1993), o terapeuta precisa estar atento aos próprios encobertos e se achar que o que sente é algo muito forte pode ser sinal de que algo está errado e que suas emoções e sua história de vida podem estar concorrendo com o fato de ter comportamentos adequados para seguir o atendimento.
Partimos do princípio de que o cliente que se coloca numa condição de fazer terapia, se dispõe a relatar sobre seus comportamentos privados com a finalidade de promover um entendimento por parte do terapeuta do que lhe traz sofrimento e também favorecer a relação terapêutica. Entretanto, o contrário não acontece. O terapeuta não expõe seus comportamentos privados e muitas vezes controlam os públicos durante a sessão terapêutica.
O terapeuta deve estar atento e responder a estímulos relacionados ao cliente durante a sessão terapêutica e não a estímulos que não fazem parte do contexto do atendimento. Então se esse cliente evoca sentimentos desagradáveis no terapeuta e este fica sobre controle disso, pode não estar sendo controlado pela queixa e sofrimento do cliente e sim pelos sentimentos gerados nele. Quando experimentamos sentimentos em relação a clientes de maneira forte pode ser um sinal de que o terapeuta esteja reagindo a contingências de sua própria história, ou seja, pode ser que existam semelhanças entre as contingencias da história de vida do cliente e do terapeuta (Banaco, 1993).
Terapeutas que trabalham com a FAP – Terapia Analítico Funcional, podem lançar mão da “auto revelação”, que seria o comportamento emitido pelo terapeuta de falar sobre suas próprias experiências e sentimentos ao cliente. Quando o terapeuta expõe suas próprias experiências e o que sente, se torna vulnerável na relação com cliente e isso consiste em compartilhar crenças, emoções e sentimentos em relação ao que acontece na terapia. Claro que ao se tratar de uma abordagem que é funcionalista, para ocorrer esse comportamento precisa existir uma função na terapia, fazer auto revelação não é falar sobre a própria vida ao cliente de forma deliberada.
A terapia certamente é um ambiente que favorece a vulnerabilidade, o que significa estar aberto a críticas ou a punição. Nesse caso, o nível de exposição se relaciona ao nível de punição apresentada pelo terapeuta, quanto menor a punição maior a probabilidade de o cliente se revelar. Se o terapeuta tem sentimentos desagradáveis em relação ao cliente essa relação pode ficar prejudicada, mas o terapeuta pode também ter habilidade de não deixar que isso seja um impedimento para a relação terapêutica ocorrer de maneira a produzir ganhos para o processo.
O terapeuta pode também expor ao cliente o que sente após avaliar a função e os benefícios dessa exposição para o processo terapêutico e também fazer a opção de encaminhar o cliente para um outro terapeuta ou mesmo fazer supervisão com a intenção de lidar de maneira mais efetiva com tais sentimentos. Ter habilidade de não deixar o que sente interferir no processo é um comportamento modelado ao longo dos anos de atendimento. As muitas experiências do terapeuta podem levá-lo a sobrepor o que sente em detrimento do cliente, mas para alguns terapeutas, talvez isso possa ser um limite a ser considerado e respeitado.
Diante da pergunta da minha colega, questiono o quanto a intimidade dessa relação permite o terapeuta falar dos seus próprios sentimentos, mesmo que desagradáveis, em relação ao cliente. Em muitos textos e artigos o foco sempre são os comportamentos dos clientes e o que os leva a terapia. Entretanto, considero de grande importância, pensarmos nos dois lados envolvidos no processo. Precisamos nos preocupar com o que acontece dentro dos consultórios, favorecer pesquisas onde o comportamento do terapeuta seja também estudado porque os seus comportamentos que ocorrem na sessão são de extrema importância para a adesão ao tratamento do cliente, para o estabelecimento de uma boa relação terapêutica e consequentemente a bons resultados.
Referências bibliográficas:
Banaco, R. A. (1993). O impacto do atendimento sobre a pessoa do terapeuta. Temas em Psicologia, vol. 1 (2), pp. 71-80.
Delitti, M. (1993). O uso de encobertos na clínica. Temas em Psicologia, Vol. 1 (2), pp.
Vandenberghe, L., & Pereira, M. B. (2005). O papel da intimidade na relação terapêutica: Uma revisão teórica à luz da análise clínica do comportamento. Psicologia: Teoria e Prática, vol. 7 (1), pp. 127-136.
Skinner, B.F. (1953) Ciência e comportamento Humano